Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:09/21
Data do Acordão:04/06/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
RESTITUIÇÃO DE POSSE
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:A competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe na esfera dos Tribunais Judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P29204
Nº do Documento:SAC2022040609
Data de Entrada:03/04/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA OESTE, JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CASCAIS - J3 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA UO3
RECORRENTES: A......... E OUTROS.
RECORRIDO: B........
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 9/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A………. e mulher C……….., identificados nos autos, com residência na Rua ………., Bairro …………., Cascais, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de Cascais – Juiz 3, acção “declarativa de condenação de manutenção e restituição da posse”, contra B……….., pedindo:
a) Que os A.A. sejam restituídos aos espaços da sua casa referidos nas alíneas 7 e 9 da p.i.
b) Sendo os factos alegados subsumíveis ao esbulho violento, sejam os A.A. restituídos provisoriamente à sua posse sem audiência do esbulhador”.
Em síntese, alegam ser legítimos possuidores do imóvel sito e designado por Casa nº ……….., Rua …………, Bairro …………, Cascais, de propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Cascais e, onde vivem desde 2016. Mais alegam que há cerca de 6 meses o R. se introduziu na casa, que é constituída por um piso, ocupando um quarto, uma sala, a casa de banho e o acesso à entrada principal, dela se recusando a sair. Estando os AA. remetidos a viver num anexo da casa, estando esbulhados da posse da mesma.
Em 28.11.2019, no Juízo Local Cível de Cascais, Juiz 3, foi proferida decisão a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação e julgamento da acção intentada, absolvendo o Réu da instância [cfr. fls. 53 dos autos].
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (TAF de Sintra), foi aí proferida sentença em 22.01.2021 a declarar a incompetência em razão da matéria para conhecer do objecto dos autos [cfr. fls. 58 a 66].
Suscitada oficiosamente pelo TAF de Sintra a resolução do conflito negativo de jurisdição foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019 e nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída aos tribunais comuns.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.


3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de Cascais e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.
Entendeu o Juízo Local Cível de Cascais ser a jurisdição comum incompetente, em razão da matéria para conhecer do litígio, “Atento a natureza de habitação social mencionada no relatório e a circunstância da propriedade da mesma se encontra inscrita a favor de pessoa colectiva pública, e visando os presentes autos o reconhecimento de posse derivada de ocupação sobre o imóvel, nos termos do art. 202.º, n.º 2 do Cód. Civil, verifica-se que o bem em causa não pode ser objecto de direitos privados, motivo pelo qual, o fundamento para o reconhecimento de qualquer eventual ocupação deverá ser compatibilizado no âmbito da legislação que disciplina o uso daquele equipamento, cuja apreciação dos referidos pressupostos, não é da competência dos tribunais comuns.
Por sua vez o TAF de Sintra – Juízo Social também se considerou incompetente em razão da matéria. Chamou à colação a norma da alínea i) do nº 1 do art. 4º do ETAF, que com a reforma de 2015 passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a “condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”, no sentido de determinar se a jurisdição administrativa e fiscal seria competente para apreciar este litígio por neste se discutir uma situação constituída em “via de facto”.
No entanto, entendeu que a competência dos tribunais administrativos apenas se verificava ao abrigo daquele preceito nas acções em que está em causa a remoção de actuações ilegais da Administração (o que não é o caso).
Conclui, assim, que: “(…), a competência da jurisdição administrativa reconduz-se exclusivamente ao conhecimento das situações de ocupação, sem título de imóveis, pela Administração, em «via de facto» [que já se verificava antes de 2015 e que a alteração legislativa só veio reforçar [por se estar, ainda, perante atuações materialmente administrativas da Administração e que não prejudica a competência dos tribunais judiciais para os casos em que a questão da titularidade do bem for controvertida].
Pelo que, assim sendo como é, e aferindo-se a competência dos tribunais em razão da matéria à luz da configuração da relação controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do Autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos, concluímos que a relação material controvertida – tal como é caracterizada – não se inscreve em nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, designadamente na medida em que é invocado ter o imóvel em questão ter sido (alegadamente) esbulhado por particular, em consequência, pedindo-se a condenação na restituição da sua posse (cfr. em sentido análogo, Acórdãos do Tribunal dos Conflitos, de 30.11.2017, processo n.º 011/17, de 13.12.2018, processo n.º 043/18, de 23.05.2019, processo n.º 048/18 e de 23.01.2020, processo n.º 041/19, in www.dgsi.pt).”

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está concretizada no art. 4º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio que não é regulado por normas de direito administrativo. Com efeito, aquilo que os Autores pedem na presente acção, invocando o seu direito de posse sobre o imóvel, é que o R. lhes restitua essa posse que reivindicam, sendo que, conforme alegam, este ocupou a sua casa de habitação (cfr. arts. 2º a 11º da petição inicial), pretendendo que este reconheça aquela posse sobre o imóvel, desocupando-o.
Estamos, pois, perante um litígio regulado por normas de direito privado em que a situação descrita e que está em questão não envolve uma qualquer actuação ou conduta que resulte disciplinada ou regida por normas de direito administrativo, sendo que para o que se discute na acção é de todo irrelevante o facto de o imóvel ser de propriedade de uma pessoa colectiva de direito público, a qual é inteiramente alheia ao litígio.

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Local Cível de Cascais, Juiz 3.
Sem custas.

Lisboa, 6 de Abril de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.