Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:027/14
Data do Acordão:09/25/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FERNANDES DO VALE
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO.
Sumário:Para decidir uma típica e paradigmática acção de reivindicação são competentes os tribunais comuns. *
Nº Convencional:JSTA00068910
Nº do Documento:SAC20140925027
Data de Entrada:04/30/2014
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE CELORICO DE BASTO E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:CONFLITO NEGATIVO JURISDIÇÃO TAF BRAGA - TJ CELORICO DE BASTO.
Decisão:DECL COMPETENTE TJ CELORICO DE BASTO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - CONFLITO COMPETÊNCIA.
Legislação Nacional:LOFTJ99 ART24 ART26 N1.
CPC13 ART66 ART91 N1.
CONST76 ART211 N1 ART212 N3.
ETAF02 ART1 N1.
CCIV66 ART1311.
Referência a Doutrina:FREITAS DO AMARAL - CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOLII 2001 PAG518.
VIEIRA DE ANDRADE - A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 3ED PAG79.
Aditamento:
Texto Integral: (Rel. 173)
Acordam, no Tribunal de Conflitos

1A………… e mulher, B…………, instauraram, no decurso do ano de 2012, na comarca de Celorico de Basto, acção declarativa, com processo comum e sob a forma sumária, contra “EDP — Energias de Portugal, S. A.”, pedindo a condenação desta a:

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I – Reconhecer que os AA. são proprietários e possuidores do prédio id. no art. 1º da p.i.;
II – Reconhecer que a parcela por si ocupada e descrita nos arts. 13º a 20º faz parte integrante do mencionado prédio dos AA.;
III – Restituir aos AA. a dita parcela de terreno, no estado anterior à sua ocupação, livre de pessoas e coisas, com as obras descritas nos arts. 20º e 21º destruídas e o terreno aplainado; e
IV – Reconstruir o muro de pedra na parte em que fez o muro de betão e reparar todo o muro de vedação do prédio do lado da estrada, a Poente, calçando-lhe os alicerces e reparando todos os desalinhamentos, rachadelas e desaprumos.
Fundamentando a respectiva pretensão, alegaram os AA., em resumo e essência, actos consubstanciadores da respectiva aquisição originária, por usucapião, do prédio em causa, beneficiando, por outro lado, da presunção decorrente do respectivo registo predial a seu favor, sendo certo que a sobredita parcela integra o mesmo prédio e que a R., aí, realizou as obras e alterações cuja remoção é, igualmente, peticionada, sem qualquer autorização ou conhecimento dos AA., antes aproveitando a ausência destes, na Suíça.
A acção foi contestada.
No despacho saneador, decretou-se a absolvição da R. da instância, por incompetência, em razão da matéria, do tribunal demandado, imputando-se tal competência aos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do disposto no art. 4º, nº 1, al. d) do E.T.A.F. (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Porém, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga veio, por seu turno, a declarar a respectiva incompetência, em razão da matéria, para o conhecimento da mesma acção, com a inerente absolvição da R. da instância.
Ambas as decisões (de 01.04.13 e de 07.02.14, respectivamente) transitaram em julgado, estribando-se, essencial e respectivamente, na invocação pela R. da existência duma servidão administrativa sobre o prédio dos AA., da qual emerge o direito de, aí, estabelecer, instalar e manter em exploração a instalação eléctrica, concretamente um posto de transformação e, no último caso, no facto de a R. não ter, no caso, actuado ao abrigo de normas de direito administrativo, sendo a questão a dirimir de mera reivindicação de propriedade privada por parte dos AA.
Impondo, pois, a situação descrita a resolução do inerente conflito negativo de jurisdição, requerida pelo Dig. mo Agente do Mº Pº no S. T. A.
Dispensados os vistos legais e nada obstando ao conhecimento, cumpre decidir.

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2 - Como decorre do exposto, a questão que demanda apreciação e decisão por parte deste Tribunal consiste em determinar qual a jurisdição competente, em razão da matéria, para o conhecimento da presente acção: se a administrativa, como decidido pelo Tribunal Judicial da comarca de Celorico de Basto; se, pelo contrário, a comum, como decretado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga. Questão esta que deve ser analisada e decidida em função do pedido formulado na acção e emergente da factualidade em que o mesmo se estriba (respectiva causa de pedir), vertida pelos AA. na p. i. e supra elencada, ainda que sumariamente.
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3 - Constitui entendimento pacífico o de que a competência do tribunal se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como a configura o A. E aquela fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa (arts. 24º da Lei nº 52/08, de 28.08 - L.O.F.T.J.Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - e 5º, nº 1, do ETAFEstatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
De conformidade com o preceituado nos arts. 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), 26º, nº 1 da L.O.F.T.J. e 66º do CPC, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Ou seja, os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não discriminada, por isso sendo chamados de competência genérica, gozando os demais, tribunais especiais, de competência limitada às matérias que lhes são especialmente cometidas. Que o mesmo é dizer que a competência dos tribunais judiciais se determina por um critério residual, ou de exclusão de partes - tudo o que não estiver atribuído aos tribunais especiais - Profs. Palma Carlos (in “CPC Anotado”, pags. 230) e A. dos Reis (in “Comentário”, Vol. I, pags. 146 e segs.).
Cumprindo, deste modo, atentar nos termos em que a lei delimita a competência material dos tribunais administrativos, não olvidando, para além do já assinalado, que, para a determinação do tribunal competente, em razão da matéria, há, em princípio, que atender à causa de pedir e ao expresso na p. i.
Por outro lado, impõe-se acentuar que o caso em apreço se encontra submetido à disciplina legal introduzida pelas Leis nº/s 13/2002, de 19.02, alterada pelas Leis nº/s 4-A/2003, de 19.02, 107-D/2003, de 31.12, 1/2008, de 14.01, 2/2008, de 14.01, 26/2008, de 27.06, 52/2008, de 28.08 e 59/2008, de 11.09 (“Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais” - ETAF), com início de vigência genérica (e na parte que, aqui, interessa), em 01.01.04.
A jurisdição administrativa é exercida por tribunais administrativos, aos quais incumbe, na administração da justiça, dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (arts. 1º, nº 1, do ETAF e 212º, nº 3, da CRP).
Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa.
Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que, «por via de regra, confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração» (Cfr. Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. II, 2001, pags. 518) (...), outro não sendo o entendimento de J. C. Vieira de Andrade, quando, depois de afirmar que à justiça administrativa só interessam «as relações jurídicas administrativas públicas, ou seja, aquelas que são reguladas por normas de direito administrativo», acentua que devem ser consideradas relações jurídicas administrativas «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» (in “A Justiça Administrativa” - Lições, 3ª Ed., 2000, pags. 79)”.
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4 - No caso em apreço, confrontamo-nos com uma típica e paradigmática acção de reivindicação (envolvendo a pronuntiatio - reconhecimento do direito de propriedade reivindicado - e a condemnatio - condenação do R. na restituição do bem reivindicado ao A.), a qual tem a sua sede legal nos arts. 1311º e segs. do CC, submetida, exclusivamente, ao âmbito do direito privado, como claramente dimana quer do pedido formulado pelos AA., quer da factualidade em que o mesmo se mostra estribado, ou seja, a respectiva causa de pedir (Muito embora coexista, em cumulação, uma outra causa de pedir consubstanciada no facto ilícito praticado pela R. e legitimadora da condenação desta no demais peticionado pelos AA., em pura sede e âmbito, igualmente, do direito privado).
Como, acertadamente, considerou o TAF de Braga “...porque a relação jurídica em causa nos presentes autos não se enquadra no art. 1º, nº 1 ou em qualquer das als. do art. 4º, nº 1 do ETAF, uma vez que as pretensões formuladas radicam no direito real de propriedade invocado pelo autor, sendo a questão da propriedade a questão prevalecente da relação jurídica destes autos, a competência material para decidir a presente acção cabe ao tribunal judicial e não a este tribunal administrativo e fiscal”.
Aliás, não pode olvidar-se que, nos termos preceituados pelo art. 91º, nº 1, do CPC, “O tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa”.
Ou seja, a prévia determinação, a montante e nos termos que ficaram assinalados, da competência, em razão da matéria, legitima sempre, nos termos do disposto neste art. e com a compressão constante do respectivo nº 2, a extensão da correspondente competência ao tribunal, originariamente, tido por competente, retirando qualquer relevância, na perspectiva considerada, aos termos em que a R. possa contestar a respectiva acção.
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5 - Em face do exposto, acorda-se em resolver o caracterizado conflito negativo de jurisdição, declarando competente, em razão da matéria, para o conhecimento da presente acção a jurisdição comum.
Sem custas.
Lisboa, 25 de Setembro de 2014. - José Augusto Fernandes do Vale (relator) – Maria Fernanda dos Santos Maçãs – Gabriel Martim dos Anjos Catarino – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Gregório Eduardo Simões da Silva de Jesus – António Bento São Pedro.