Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02/23-CP
Data do Acordão:02/07/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONSULTA DE JURISDIÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
RELAÇÃO CIVILÍSTICA
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:É da competência dos Tribunais Judiciais conhecer de um litígio na qual particulares demandam uma seguradora com fundamento em responsabilidade civil, uma vez que no momento da propositura da acção, face aos termos em que os Autores configuraram na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o réu que demandaram, está-se perante um litígio de natureza tipicamente civilística, e não perante uma relação jurídica administrativa ou litígio enquadrável no art 4º do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P31879
Nº do Documento:SAC2024020702
Recorrente:CONSULTA DE JURISDIÇÃO (ART° 16° Nº 2 DA LEI 91/2019), SUSCITADA PELA SECÇÃO ADMINISTRATIVA DO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA NO PROCESSO N° 852/20.8BELRA
REQUERENTE: AA E OUTRA
REQUERIDO: A..., S.A.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Consulta Prejudicial nº 2/23

Acordam no Tribunal dos Conflitos

Por despacho da Sra. Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (doravante TAF de Leiria), de 17.10.2023, foi decidido suscitar a consulta prejudicial deste Tribunal dos Conflitos, ao abrigo do artigo 15º, nº 1, da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, por ter entendido que a questão da jurisdição competente para conhecer da causa levanta fundadas dúvidas.
A presente acção de condenação foi intentada por AA e BB no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Competência Genérica do Entroncamento, contra B..., SA [actualmente A..., SA] com fundamento em responsabilidade civil por danos na sua propriedade causados pela actividade da AR – Águas do Ribatejo, EM, SA e que são indemnizáveis pela ora Ré para quem aquela empresa transferiu a responsabilidade.
A Ré contestou e, além do mais, suscitou a incompetência material do Tribunal Judicial, considerando serem competentes os tribunais administrativos por o litígio respeitar a actos ou omissões praticados no desempenho de funções administrativas.
Os Autores, em resposta, pugnaram pela improcedência dessa excepção e suscitaram a intervenção principal provocada da AR – Águas do Ribatejo, EM, SA.
O Juízo de Competência Genérica do Entroncamento do Tribunal Judicial de Santarém proferiu sentença em 13.07.2020 na qual se declarou incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, argumentando que “(…) afigura-se-nos que a AR - Águas do Ribatejo, EM, S.A., entidade cuja responsabilidade se pretende accionar através da respectiva seguradora, constitui uma empresa municipal à qual incumbe a exploração e a gestão do sistema público de abastecimento de água, o que inclui, naturalmente, a concepção, a construção das obras e equipamentos, bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção, sendo que para o efeito goza dos poderes públicos previstos no art. 31º dos respectivos estatutos.
Face ao exposto, afigura-se que o regime da responsabilidade aplicável aos actos daquela entidade no âmbito da sua actividade, deflui do n.º 5 do art. 1º da Lei 67/2007, pelo que a competência para apreciação de questões emergentes daquela responsabilidade cabe aos Tribunais Administrativos e Fiscais, nos termos do art. 4º, al. f), do ETAF [certamente por lapso é mencionada al. f) quando se queria dizer h)].
A isto não obsta a circunstância de a demandada na presente acção ser uma entidade privada, a seguradora para a qual foi transferida a responsabilidade emergente de tais actos, porquanto, tal responsabilidade pressuporá sempre a aferição da responsabilidade daquela empresa municipal no quadro normativo indicado.
No TAF de Leiria para o qual os autos foram remetidos, os Autores, na sequência de convite para o efeito, apresentaram nova petição inicial passando também a demandar a AR – Águas do Ribatejo, EM, SA [doravante AR – Águas do Ribatejo].
Porém, aquele Tribunal, após prévia audição dos AA. que reconheceram ter extravasado o âmbito do convite ao aperfeiçoamento da primitiva petição inicial apresentada, indicaram que a acção deveria prosseguir apenas contra a Companhia de Seguros, para quem a AR – Águas do Ribatejo «havia transferido a responsabilidade por danos causados a terceiros no âmbito da sua actividade» (cfr. requerimento de 19.01.2023), decidiu que “se dê como não escrito na petição inicial a Entidade Demandada para além da Seguradora, atendendo à posição sufragada pelos Autores, e por cumprimento ao princípio da estabilidade da instância”.
Remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos, face ao pedido de consulta prejudicial, nos termos ao nº 1 do art. 15º da Lei 91/2019, foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º daquele diploma.
A Exma Procuradora Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de dever ser emitida decisão que atribua a competência material para conhecer da presente acção à Jurisdição Administrativa, no caso ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211.º, n.º 1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. n.º 08/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo».
Os Autores intentaram a acção supra indicada alegando que são proprietários de um imóvel que confina com arruamentos servidos por abastecimento público de águas para consumo doméstico gerido por AR – Águas do Ribatejo, EM, SA. Num desses arruamentos ocorreu uma ruptura num cano de abastecimento, ruptura essa que provocou infiltrações e danos na propriedade dos Autores.
Mais alegam que, contactada aquela empresa municipal para efeitos de reparação dos danos, por ela foram informados que essa questão deveria ser tratada com a companhia de seguros para a qual tinha sido transferida a responsabilidade. Por seu lado, a seguradora, após peritagens, remeteu aos Autores um recibo no valor de €1950,00 para ressarcimento dos danos, mas com o qual não concordam pois, no seu entender, tal quantia não cobre minimamente os danos reais e orçamentados e, por isso, peticionam a condenação da Ré seguradora no pagamento de 49.200,00€, a título de danos patrimoniais causados, acrescida de juros desde a citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
Como já se disse a competência do tribunal fixa-se “no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente” – cfr. art. 5.º, nº 1 do ETAF e igualmente o artigo 38º da LOSJ.
Importa, portanto, determinar se a acção, tal como foi configurada pelos Autores, quer na jurisdição comum, quer inicialmente no TAF [neste só em petição corrigida a convite do Tribunal vieram a indicar como Ré a AR – Águas do Ribatejo, EM, SA] se deve incluir na competência da jurisdição administrativa e fiscal ou se estamos perante um litigio para cujo conhecimento sejam competentes os tribunais judiciais.
No caso, os Autores optaram por propor a presente acção unicamente contra a companhia de seguros, peticionando um valor a título de indemnização por discordarem do montante da indemnização proposto.
Ora, sendo a Ré um sujeito de direito privado e constatando-se que a esta não podem ser imputadas acções ou omissões no “exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”, como estipula o nº 5 do art. 1º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, não se pode enquadrar a situação dos autos na alínea h) do art. 4 º do ETAF que respeita a “Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público” de modo a atribuir competência aos tribunais administrativos para a apreciar, como foi decidido pelo Juízo de Competência Genérica do Entroncamento.
Por outro lado, a acção não vem inicialmente proposta contra a AR – Águas do Ribatejo, EM, SA e, ainda que venha a ser admitida a sua intervenção principal provocada, tal intervenção ocorrerá posteriormente à propositura da acção, através de uma modificação de facto legalmente irrelevante para a fixação da competência, nos termos dos supra citados normativos.
Assim, no momento da propositura da acção, face aos termos em que os Autores configuraram na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o réu que demandaram, não há dúvida de que se está perante um litígio de natureza tipicamente civilística, e não perante uma relação jurídica administrativa ou litígio enquadrável no art 4º do ETAF (cfr., em situações paralelas, os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 20.09.2012, Proc. 07/12 e de 23.03.2022, Proc. 040/21).
Pelo exposto, e nos termos do disposto no art. 17º da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, acordam em emitir pronúncia no sentido de que cabe aos Tribunais Judiciais conhecer da presente acção, no caso ao Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Competência Genérica do Entroncamento, Juiz 2.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024. -Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Nuno António Gonçalves.