Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:015/10
Data do Acordão:10/28/2010
Tribunal:CONFLITOS
Relator:CUNHA BARBOSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
RESPONSABILIDADE POR ACTO JUDICIAL
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS COMUNS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA00066661
Nº do Documento:SAC20101028015
Data de Entrada:06/29/2010
Recorrente: MINISTÉRIO PÚBLICO NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A 1ª SECÇÃO DA GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL (JUIZ 3) DA COMARCA DA GRANDE LISBOA-NORDESTE, JUÍZOS DE SINTRA E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO.
Objecto:NEGATIVO JURISDIÇÃO TJ SINTRA - TAC LISBOA.
Decisão:DEC COMPETENTE TJ.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - REC JURISDICIONAL.
CONFLITO JURISDIÇÃO.
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:ETAF02 ART4 N1 G N2 N3 A.
CPC96 ART115 N1.
Referência a Doutrina:MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL PAG91.
FREITAS DO AMARAL E OUTRO GRANDES LINHAS DA REFORMA DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO 3ED.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n°. 15/10 (Cons. Cunha Barbosa (Relator))
Acordam no Tribunal de Conflitos em:
1. Relatório:
A…, casado, estucador, reformado, residente na Avenida de …, n° …, …, 2665 Milharado, intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra o Estado Português, pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) a título de indemnização.
Fundamenta o seu pedido alegando, em essência e síntese, que:
- Foi testemunha no âmbito do proc. nº 111/03.OTBMFR, que correu termos no 2° Juízo do Tribunal da Comarca de Mafra;
- No dia 17.6.2004, numa das sessões de julgamento desse processo, foi inquirido pelo Senhor Dr. …, na qualidade de Juiz de Círculo de Torres Vedras;
- Foi comproprietário do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra, sob o nº 3152 e inscrito na matriz predial da freguesia de Milharado no artigo 223 da Secção G;
- Tal prédio veio a ser vendido por si e outros a um tal B…;
- Interrogado e instado, tanto pelo mandatário dos AA., nesse processo, como pelo Senhor Juiz Dr. … sobre se a parte mais alta desse prédio fora cultivada, como alegavam aqueles AA., repetiu sempre que dizia a verdade e que nunca essa parte do dito prédio havia alguma vez sido cultivada;
- O Senhor Juiz Dr. … ordenou que o, ora, A. fosse presente ao M°P° para ser julgado em processo sumário pela prática de um crime de falsas declarações;
- O, ora, A. não obstante as ameaças do Senhor Juiz de o ‘mandar prender’ e de dizer ‘o Sr. sai já daqui com um par de algemas nos braços e vai responder em processo sumário’, manteve que não estava a mentir;
- Nesse dia 17.6.2004, o, ora, A. foi formalmente detido, seguidamente constituído arguido e recolhido aos calabouços do Tribunal, onde permaneceu horas e almoçou do rancho do Quartel da Escola Prática de Infantaria;
- Tendo-se procedido a inquérito, com a realização das mais diversas diligências, nele o M°P° concluiu ‘... que inexistem nos autos indícios suficientes da verificação do preenchimento do tipo de ilícito imputado ao arguido, antes que o mesmo com a sua conduta não terá pretendido produzir declarações desconformes à realidade’ e determinou o arquivamento do inquérito;
- Por isso, é indesmentível que o Senhor Dr. Juiz …, no exercício das suas funções e por causa delas, agiu com negligência grosseira;
- Tem 73 anos, sendo pessoa de condição humilde mas digna;
- Sofreu a humilhação de ter sido detido e metido nos calabouços do Tribunal, onde são recolhidos os criminosos de toda e da pior espécie;
- Sofreu e sofrerá a humilhação de já não poder dizer, como todo o cidadão honesto e digno, que nunca esteve ‘preso’ nem ‘respondeu em tribunal’;
- Fixa os danos que lhe foram causados pelo Senhor Juiz … em € 15.000,00.
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Tal processo veio a ser distribuído sob o n° 251/06.4TBMFR, Comarca da Grande Lisboa-Noroeste / Sintra — Juízo de Grande Instância Cível — 1ª secção — Juíz 3.
Aí, veio, então, a ser proferido despacho, na parte que releva, do seguinte teor:
«... Como já se disse o Autor formula pedido de indemnização contra o Réu por danos morais decorrentes da actividade jurisdicional, sendo o Estado civilmente responsável, de forma solidária com titulares dos seus órgãos, por acção ou omissão no exercício das suas funções ou por causa desse exercício, de que resulte a violação de direitos, liberdades e garantias — art. 22° da Constituição da República Portuguesa.
Dispõe o artigo 4°, n° 1, g) do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), aprovado pela Lei n° 13/2002 de 19-02, em vigor desde 1/1/2004, que ‘compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios que tenham por objecto: (...) g) questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e legislativa (...)’.
O citado artigo 4° alargou o âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais em relação ao que previa o anterior ETAF aprovado pelo DL n° 129/84 de 27/04. Desde a data da entrada em vigor do actual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que o critério diferenciador da competência entre a jurisdição administrativa e a jurisdição comum deixou de se centrar na existência de actos de gestão pública ou privada. Actualmente compete à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual emergente de órgão da Administração Pública independentemente de estarem em causa actos de gestão pública ou actos de gestão privada.
Estando em causa nestes autos a responsabilidade extracontratual por facto ilícito praticado por um titular de órgão de soberania, neste caso, por acto praticado no exercício da actividade jurisdicional teremos de concluir pela procedência da excepção invocada.
Nestes termos e ao abrigo das normas já mencionadas, impõe-se julgar este tribunal incompetente em razão da matéria, sendo competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa e, consequentemente, absolver as Rés da instância (art. 105°, 1 e 493°, 2 CPC).
Pelo exposto e nos termos das disposições legais citadas julgo esta Grande Instância Cível de Sintra incompetente em razão da matéria, sendo competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra e, consequentemente, absolvo o Réu da instância. …»
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No Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, proferiu-se despacho julgando este tribunal incompetente territorialmente para julgar a acção e, por sua vez, competente territorialmente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, para onde foi ordenada a remessa dos autos.
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No Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, foi proferido, no que releva para a decisão do conflito, despacho do seguinte teor:
«... A decisão que funda a causa de pedir desta acção foi alegadamente tomada pelo juiz do processo n° 111/03.OTBMFR, do 2° juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Mafra e no âmbito desse processo. Ora, o Tribunal Judicial da Comarca de Mafra não se integra na jurisdição administrativa e fiscal. Por conseguinte, está excluído do âmbito desta jurisdição o conhecimento do presente litígio, o qual tem por objecto uma decisão jurisdicional proferida por um tribunal da jurisdição comum.
Pelo exposto, declaro este TAC incompetente, em razão da matéria em causa, para conhecer da presente acção, nos termos dos artigos 4º, n° 1, alínea g) e 2, alínea b) do ETAF. …».
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Determinou-se que os autos seguissem a forma abreviada, não se ordenando que os autos fossem aos vistos face à simplicidade da questão a resolver e, consequentemente, que os autos voltassem, após emissão do competente parecer do Exmo. Magistrado do Ministério Público.
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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer a fls. 57 e 58 dos autos, em que conclui da seguinte forma:
«…, encontram-se expressamente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição — art° 4°, n° 3, a) do ETAF.
Assim sendo, nos termos do disposto no art° 212°, nº 3 da CRP e dos arts. 1° e 4°, n° 1, g), n° 2 e n° 3, ambos do ETAF, deverá, em nosso parecer, julgar-se competente para conhecer da acção a Grande Instância Cível de Sintra. …»
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Ora, como flui do supra exposto, encontram-se em conflito, no que respeita à competência em razão da matéria, uma decisão proferida por um tribunal da jurisdição comum e outra pelo tribunal da jurisdição administrativa, sendo que ambas rejeitam a sua competência para conhecer da acção e atribuem-se reciprocamente a competência para conhecer da mesma, integrando, assim, um conflito negativo de jurisdição.
Cumpre conhecer e decidir do mencionado conflito.
Assim:
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2. Conhecendo do conflito:
a) — Os factos:
A factualidade a ter em conta na resolução do conflito haverá de ser a constante do relatório que antecede, designadamente a vertida na petição formulada na acção em causa e proposta contra o Estado Português.
b) — O direito:
A questão a resolver é tão só a de saber que tribunal é competente, em razão da matéria, para conhecer da acção instaurada contra o Estado Português pelo supra identificado A…, se o tribunal da jurisdição comum ou se o tribunal da jurisdição administrativa, o que constitui, portanto, um conflito negativo de jurisdição — cfr. art° 115º, nº 1 do CPCivil.
Vejamos.
Como é consabido, a competência (jurisdição) de um tribunal não se encontra dependente « ... da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão. …» (Manuel A. Domingues de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 91.)

No caso concreto, temos que um particular instaurou uma acção contra o Estado Português pedindo a sua condenação numa indemnização, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por facto cometido no exercício de actividade jurisdicional, ou mais propriamente, praticado por juiz no exercício da sua função (jurisdicional).
Ora, dispondo-se no art. n° 1, al. g) do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, que « 1. — Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: ... g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;…», pareceria que a questão que nos ocupa estaria, desde logo, resolvida no sentido de que a competência para conhecer da acção caberia à jurisdição administrativa.
Porém, a tal regra de cariz geral opõem-se as exclusões previstas expressamente nos n°s 2 e 3 da mencionada norma legal, designadamente, no que importa à resolução da questão que nos ocupa, o disposto na al. a) do n° 3, em que se prescreve expressamente que: «Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso; …»; de tal preceito legal crê-se poder concluir, sem qualquer dificuldade, que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e a correspondente acção de regresso fundada em erro judiciário apenas deve ser conhecida pela jurisdição administrativa desde que respeitem a facto resultante da actividade dos tribunais administrativos.
Aliás, tal normativo legal mereceu, por parte de Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, o seguinte comentário: «... É, enfim, atribuída à jurisdição administrativa a competência para apreciar as questões de responsabilidade resultantes do (mau) funcionamento da administração da justiça. É, no entanto, excluída a apreciação das questões de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das acções de regresso contra magistrados que daí decorram: artigo 4º, n° 3, alínea a). …» (In Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª edição revista e actualizada.)
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Sucede que, no caso em apreço, o autor da acção contra o Estado Português, como fundamento do pedido indemnizatório formulado, imputa a um Juiz do tribunal da jurisdição comum a prolação de uma decisão (determinando a submissão do mesmo a julgamento sumário, com a imediata detenção até à sua realização, levando a que aguardasse nos calabouços do tribunal) com manifesta negligência, ou dito, com mais precisão, ‘... com negligência grosseira: ...’, portanto, integrando erro judiciário.
Assim, parece não subsistir qualquer dúvida de que cumpre ao tribunal da jurisdição comum o conhecimento da acção que contra o Estado Português veio a ser proposta por A….
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3. Decisão:
Concluindo, atento tudo quanto se deixou supra exposto, acorda-se em julgar competente, para conhecer da acção em causa, o tribunal da jurisdição comum.
Sem custas.
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Lisboa, 28 de Outubro de 2010. - José da Cunha Barbosa (relator) - João Moreira Camilo - Gonçalo Xavier Silvano - Luís Pais Borges - Alberto Acácio de Sá Costa Reis - Rosendo Dias José.