Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:08/15
Data do Acordão:06/25/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:SÃO PEDRO
Descritores:CONFLITO DE JURISPRUDÊNCIA
ACORDO
Sumário:I - Para julgamento dos litígios emergentes da execução de um acordo de comercialização e colaboração celebrado entre um Município e a empresa construtora de imóveis, com vista a criar condições para a promoção de habitação a custos controlados que favorecem a diminuição das carências habitacionais no respectivo concelho são competentes os Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
II – Tal competência mantém-se ainda que o objecto da pretensão do Município seja a anulação ou declaração de nulidade de um contrato de compra e venda, com fundamento no incumprimento do aludido acordo.
Nº Convencional:JSTA000P19242
Nº do Documento:SAC2015062508
Data de Entrada:05/25/2015
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 1º JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES E DE COMARCA DE PORTIMÃO E O TAF DE LOULÉ
AUTOR: MUNICÍPIO DE LAGOA
RÉU: A......, LDA E OUTRO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 8/15-70.

Acordam no Tribunal de Conflitos

1. Relatório

1.1. O MUNICÍPIO DE LAGOA intentou a presente ACÇÃO DECLARATIVA, SOB A FORMA DE PROCESSO ORDINÁRIO contra A………, LDA. e B……….., pedindo que seja declarado nulo, ou, se assim se não entender, anulado o contrato celebrado entre os aqui réus, por violação manifesta e inequívoca do Acordo de Colaboração e Comercialização em causa nos autos. O autor veio mais tarde requerer a intervenção provocada de C………. e D……….. (por ter sido dissolvida a ré A………, LDA”, por serem gerentes desta sociedade e tendo sido eles a praticar os actos relativos à assinatura, discussão e aprovação dos contratos e protocolos com o aqui autor.
1.2. Por despacho de 4 de Junho de 2013, o juiz do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Portimão (1º Juízo Cível) declarou o tribunal incompetente em razão da matéria. Esta decisão transitou em julgado e os autos foram remetidos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.

1.3. Por despacho de 30 de Setembro de 2014, o juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé declarou o Tribunal incompetente em razão da matéria, tendo a decisão transitado em julgado.

1.4. Neste Tribunal de Conflitos, o Ex. mo Procurador - Geral Adjunto emitiu parecer considerando competente a jurisdição administrativa.

1.5. Colhidos os vistos legais, cumpre resolver o conflito negativo de jurisdição.

2. Fundamentação
2.2. Matéria de facto

Os factos e ocorrências processuais relevantes para julgamento deste conflito são os seguintes:

a) A autora pede, na presente acção, a declaração de nulidade ou anulação de um contrato de compra e venda celebrado entre os réus por violação de um acordo de colaboração para a comercialização respeitante a 38 fogos de promoção habitacional a custos controlados.

b) O referido acordo está junto aos autos – fls. 84 a 88 – foi celebrado “com vista a criação de condições institucionais e técnico-financeiras para a promoção de habitação a custos controlados que favoreçam a diminuição de carências habitacionais de agregados familiares de mais parcos recursos ao abrigo de contratos de desenvolvimento para habitação com vista a atenuar as carências sentidas na área de diversos sectores sociais (…)” – fls. 85.

c) Dá-se aqui por reproduzido o aludido Acordo, do qual constam, além do mais as seguintes cláusulas:
“(…)
QUINTA
O segundo outorgante compromete-se a comercializar em propriedade plena os 38 fogos estando subjacentes os seguintes princípios enquadrados na política de habitação do Município de Lagoa em particular e na promoção de habitação a custos controlados em geral, devendo para o efeito remeter a título informativo ao Primeiro Outorgante um Relatório de Vendas que descreva o seguinte:
a) Residência dos agregados familiares;

b) Localidade de trabalho ou entidade empregadora;

c) Actividade profissional ou exercício económico no concelho de Lagoa;

d) Número de elementos do agregado familiar.
SEXTA
O segundo outorgante fica obrigado a respeitar as normas relativas à promoção de habitação a custos controlados definidos pelo IRHU-Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana e respectiva legislação habilitante, comprometendo-se ainda a dar o direito de preferência a todos os agregados familiares que reúnem as seguintes condições:

a) Residência na freguesia de Ferragudo ou concelho de Lagoa;

b) Aquisição para habitação própria permanente do agregado familiar;

c) Exercício da sua actividade profissional ou económica no concelho de Lagoa;

d) Agregados familiares jovens ou que se enquadrem na informação referida na cláusula primeira;

e) Capacidade económica e financeira dos agregados familiares para a aquisição da respectiva habitação.

(…)”.

c) Alega a autora ter elaborado uma listagem com identificação dos agregados familiares com perfil para aquisição das habitações;

d) Alega ainda que a primeira ré comprometeu-se, naquele Acordo, a enviar um relatório de vendas de onde constassem os elementos que permitissem monitorizar o procedimento de comercialização de fogos, o que não aconteceu.

e) Mais alega a autora que o 2º réu, adquirente de uma das habitações em causa, não preenche os requisitos mínimos previstos no aludido Acordo.

2.2. Matéria de Direito

O autor pretende a declaração de nulidade ou anulação de um contrato de compra e venda de um imóvel (habitação) celebrado entre A……… LDA (1º Réu) e B………. (2º réu) por ter sido violado o Acordo de Colaboração celebrado entre o Município de Lagoa e a sociedade A……….., Lda.

No Tribunal Judicial entendeu-se que o “thema decidendum” e o pedido formulado assentam em regras de direito público, ou seja, diz respeito ao “incumprimento do clausulado contratual, referente a regras e normas previamente definidas para a política nacional de aquisição de habitação a custos controlados (…)”.

No Tribunal Administrativo considerou-se que o contrato de compra e venda celebrado entre os réus é regulado exclusivamente por normas de direito privado. “Deve, por isso, concluir-se que a relação jurídica contratual cuja validade se discute nestes autos é de natureza privada, sem que existam normas de direito público (de Direito Administrativo) a que esteja sujeito o regime que a disciplina”.

O Ex. mo Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal de Conflitos, considera que a resolução do litígio cabe à jurisdição administrativa uma vez que o fundamento da invalidade do contrato de compra e venda invocado funda-se na alegada inobservância dos propósitos de uma política de habitação para o concelho de Lagoa (art. 70º da petição) a que a ré se vinculou nas cláusulas 5ª e 6ª e cujo incumprimento lhe é imputado.

Vejamos.

Como é entendimento generalizado deste Tribunal de Conflitos a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”- MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 91 e acórdãos do Tribunal de Conflitos de 4-7-2006, proc. 11/2006, de 26.9.96 (Ap. D.R., p. 59), 27.2.02, procº. nº 371/02, 9.3.04, proc.º nº 4/03, 23.9.04, proc.º nº 5/04, Acs. do STA de 12-01-88, proc.º n.º 24.880, in Ap. D.R., p. 106 e do STJ de 6-06-78, in BMJ, 278, 122. No mesmo sentido ver ainda o Ac. do STJ de 14-5-2009, proc. 09S0232, sublinhando todavia que o tribunal, apesar de atender apenas “aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada (causa de pedir e pedidos) não está vinculado às qualificações jurídicas do autor”.

No caso em apreço, a pretensão do autor coloca essencialmente duas questões jurídicas: (i) saber se ocorreu o incumprimento do Acordo de Colaboração; (ii) determinar se, em caso de incumprimento, o mesmo tem a virtualidade de provocar a invalidade do contrato de compra e venda.

A primeira questão diz claramente respeito à execução de um contrato de direito administrativo e, portanto, para o seu conhecimento são competentes os tribunais da jurisdição administrativa.

Não há, efectivamente, qualquer dúvida de que o referido acordo tem natureza pública, tendo em conta a sua finalidade, a existência de um sujeito de direito público e ainda as obrigações assumidas pela Sociedade Construtora. As referidas cláusulas, designadamente, a quinta e sexta – transcritas na matéria de facto - são cláusulas cuja razão de ser é a vinculação da construtora às finalidades prosseguidas pelo Município no âmbito de políticas habitacionais no concelho. Tais cláusulas prosseguem finalidades de interesse público impondo deveres só compreensíveis em vista desta finalidade (v.g. a obrigação de respeitar as regras relativas à promoção da habitação a custos controlados definidas pelo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana, bem como o compromisso a dar preferência a pessoas residentes ou a exercer a sua actividade económica no concelho de Lagoa). A natureza pública do acordo é, assim, indiscutível.

Assim, a competência da jurisdição administrativa para dirimir o litígio – quanto a esta questão - decorre claramente do disposto no art. 4º, n.º 1, al. f) do ETAF, por estar em causa uma questão relativa à execução de um contrato administrativo.

A competência para apreciar a segunda questão (invalidade do contrato de compra e venda) é menos evidente.

Julgamos, todavia, que jurisdição competente para apreciar a validade do mesmo é também a administrativa.

Vejamos porquê.

O que está verdadeiramente em causa, nesta segunda questão, é determinar uma das consequências jurídicas do incumprimento de um contrato de direito público. Mais precisamente, saber se, uma vez assente o incumprimento do acordo de colaboração, esse incumprimento tem, efectivamente, como consequência jurídica a invalidade do contrato de compra e venda. Dito de outro modo, o contrato de compra e venda só é inválido (pela causa de invalidade que lhe é imputada neste processo) se essa consequência jurídica decorrer do regime jurídico aplicável ao incumprimento do acordo de colaboração.

Portanto, também esta segunda questão, apesar de ter como objecto apreciar a validade de um contrato de direito privado, não busca aferir a validade do mesmo face ao seu conteúdo, mas sim quanto da sua formação. No essencial, a autora considera que a vendedora (primeira ré) não poderia ter celebrado aquele contrato por estar vinculado a determinadas obrigações assumidas num contrato de direito público, que o não permitiam. E são essas razões (impeditivas a seu ver da celebração daquele contrato) que pretende ver apreciadas pelo tribunal e que este, por força delas, declare a invalidade do contrato.

O Ex.mo Procurador - Geral Adjunto sublinha precisamente este aspecto quando diz:

Concretamente, o presente litígio relativo à invalidade deste contrato funda-se na alegada inobservância dos “propósitos de prossecução de uma política de habitação para o concelho de Lagoa” (cfr. art. 70º da petição) e dos “objectivos da fixação e apoio a famílias jovens e com menos capacidades económicas, assim como àquelas que habitam ou trabalham no concelho (cfr. art. 71º da petição inicial), a que a ré se vinculou na relação jurídica constituída com o A. por via do referido Acordo, em particular nos termos das respectivas cláusulas 5ª e 6ª cujo incumprimento se lhe imputa (cfr. art.s 43º e 44º da petição inicial)”.

Em suma, a validade do contrato de compra e venda é posta em causa, nesta acção, porque a autora entende (i) que o vendedor estava vinculado por um contrato de direito público, (ii) que esse contrato impedia aquela concreta compra e venda, e (iii) que a sanção jurídica para esse incumprimento é a invalidade da compra e venda. Esta pretensão é apreciada, como não pode deixar de ser, face ao regime jurídico que define as consequências do incumprimento do acordo de colaboração. Esta 2ª questão é, portanto, ainda uma questão relativa ao regime jurídico do acordo de colaboração, mais concretamente, às consequências jurídicas do seu incumprimento. Ora, a delimitação do regime jurídico do incumprimento de um contrato de direito público é uma questão relativa à sua execução e, portanto, a jurisdição administrativa é a competente, nos termos do art. 4º, 1, al. f) do ETAF.

3. Decisão

Face ao exposto, os Juízes do Tribunal de Conflitos acordam em considerar competente para o julgamento dos presentes autos a jurisdição administrativa.

Sem custas.

Lisboa, 25 de Junho de 2015. – António Bento São Pedro (relator) – Nuno de Melo Gomes da Silva – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – João Manuel da Silva Miguel – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Manuel Tomé Soares Gomes.