Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0371/02
Data do Acordão:02/27/2002
Tribunal:CONFLITOS
Relator:J SIMÕES DE OLIVEIRA
Descritores:CONTRATO DE TRABALHO.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS.
Sumário:I - A competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, nomeadamente face ao pedido formulado.
II - Se a Autora alega que foi admitida ao serviço da Imprensa Nacional - Casa da Moeda, E.P. no regime do contrato individual de trabalho, e que foi despedida sem justa causa nem indemnização, e pede que o tribunal condene a Ré a reintegrá-la no cargo, ou em alternativa a pagar-lhe a indemnização de antiguidade, mais remunerações vencidas e vincendas e indemnização por danos não patrimoniais e juros de mora, o tribunal de trabalho é competente para conhecer da acção.
III - Não altera os termos desta questão a circunstância de a Autora também afirmar, no início da petição, que, sendo funcionária pública, foi trabalhar na referida empresa em regime de comissão de serviço autorizada por despacho ministerial.
III - Envolve o conhecimento do mérito da acção saber se, na situação descrita, existia um contrato individual de trabalho e se, em função disso, houve verdadeiro despedimento.
Nº Convencional:JSTA00057248
Nº do Documento:SAC200202270371
Data de Entrada:05/15/2001
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO JURISDIÇÃO ENTRE O TRIB TRABALHO LISBOA E O TAC DE LISBOA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO.
Objecto:AC RL.
Decisão:DECL COMPETENTE.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONTRATO.
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:L 3/99 DE 1999/01/13 ART85 B.
Jurisprudência Nacional:AC TCF DE 1996/09/26 IN AP-DR PAG59.; AC STA DE 1988/01/12 IN AP-DR PAG106.; AC STJ DE 1978/06/06 IN BMJ N278 PAG122.
Referência a Doutrina:MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL 1963 PAG89-90.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:
- I -
A... recorre do Acórdão da Relação de Lisboa que, em acção declarativa de condenação com processo comum e sob forma ordinária, emergente de contrato individual de trabalho, proposta contra a Imprensa Nacional – Casa da Moeda, E.P., julgou procedente o recurso de agravo interposto pela Ré da sentença condenatória do 2º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa, e declarou o tribunal do trabalho absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer da acção, absolvendo a Ré da instância.
Nesta acção, a Autora e ora recorrente alegava ter sido admitida ao serviço da Ré, em 1.10.92, para exercer o cargo de Directora do Departamento de Edições e Lojas, em regime de comissão de serviço, autorizada por despacho do Secretário de Estado do Tesouro, uma vez que era funcionária pública, exercendo funções na Direcção-Geral do Tesouro. A admissão da Autora fez-se nos termos do art. 32º do Dec-Lei nº 260/76, de 8.4 e 53º do Dec-Lei nº 331/81, de 7.12, sendo-lhe aplicável o regime dos trabalhadores ao serviço das empresa públicas, ou seja, o do contrato individual de trabalho. Exerceu a sua actividade até 24.10.96, data em que lhe foi comunicado pela administração da Ré que, por deliberação do Conselho de Administração, lhe tinha sido dada por finda a comissão de serviço a partir do dia 28 desse mês, com o que a Autora foi alvo de despedimento com simples pré-aviso de 4 dias, sem qualquer explicação ou indemnização, em total oposição a critérios de ordem moral e legal.
Devia, assim, ser reconhecido à autora o seu vínculo jurídico-laboral à empresa Ré, que devia ser condenada:
- a reintegrá-la no cargo de Directora do Departamento de Edições e Lojas da Ré, ou em alternativa a pagar-lhe a indemnização de antiguidade.
- A pagar-lhe a quantia de 4.225.196$00 de prestações vencidas e não pagas, até 31.12.96 e devolução de descontos indevidamente efectuados por ela em vencimentos da Autora, bem como as prestações que se vencerem posteriormente, sem prejuízo das prestações vincendas;
- A pagar-lhe 2.000.000$00, por danos não patrimoniais e juros de mora à taxa legal.
A sentença do Tribunal de Trabalho de Lisboa julgou a acção parcialmente procedente, e, declarando ilícito o despedimento, condenou a Ré :
- a reintegrar a Autora ao serviço, com a categoria que tinha em 96.10.28;
- a pagar-lhe a retribuição mensal de 376.300$00, desde 96.10.28 até à data de hoje;
- a pagar-lhe 450.000$00, a título de participação nos lucros;
- a pagar-lhe os montantes não apurados e referidos supra sob II.13 e que vierem a liquidar-se em execução de sentença;
- caso opte pela indemnização de antiguidade, até ao trânsito em julgado desta decisão, a pagar-lhe 1.881.500$00;
- A pagar-lhe a quantia de 1.500.000$00 por danos não patrimoniais.
O acórdão recorrido, conhecendo do recurso de agravo do despacho saneador que tinha julgado improcedente a excepção de incompetência material do tribunal, declarou o tribunal do trabalho absolutamente incompetente em razão da matéria, e absolveu a Ré da instância, considerando prejudicado o conhecimento dos recursos de apelação interpostos por ambas as partes.
Contra esta decisão se insurge a recorrente, que nas suas alegações termina enunciando as seguintes conclusões:
“A – A Ré IMPRENSA NACIONAL CASA DA MOEDA, E.P., é uma Empresa Publica sujeita ao regime previsto no Decreto-Lei nº 260/76 de 8 de Abril que aprovou o Estatuto das Empresas Públicas e do Decreto-Lei nº 333/81 de 7 de Dezembro que aprovou o Estatuto da Ré INCM,E.P.
B – No acto de Admissão da Autora ao serviço da Ré e da comunicação efectuada ao Exmo Senhor Director Geral do Tesouro foram invocados os artigos 53º do Decreto-Lei nº333/81 e artigo 32º do Decreto Lei nº 260/76.
C – Os artigos 52º do Decreto- Lei nº 333/81 e 30º do Decreto-Lei nº 260/76 definem o regime jurídico aplicável ao pessoal das empresas públicas em geral e da INCM, E.P. em particular, e que é o regime do contrato individual de trabalho.
D – Nos presentes autos discute-se apenas o vinculo laboral criado entre as partes por força da contratação da Autora pela Ré, nas condições propostas pela Ré e aceites pela Autora, sem estipulação de qualquer prazo.
E – Contratação essa que foi feita com a competente autorização de Sua Excelência o Secretario de Estado do Tesouro.
D – O Decreto-Lei 260/76 (artigo 32º), ao abrigo do qual a Autora foi nomeada estipula que a comissão de serviço não pode ser exercida por período superior a um ano, ou pelo período do mandato nos casos em que existir. Nos presentes autos não se verifica nenhuma das situações tendo a Autora prestado o seu trabalho na Ré por um período de 4 anos e 24 dias.
E – O Estatuto da Função Pública e o Decreto-Lei 323/S9 de 26 de Setembro não são aplicáveis às relação de trabalho entre a Autora e a Ré INCM, E.P..
O Decreto-Lei nº 323/89 define no seu artigo 1º - Objecto e âmbito – Que o mesmo estabelece o Estatuto do pessoal dirigente dos Serviços e Organismos da administração central, local do Estado e regional, bem como, com as necessárias adaptações, dos institutos públicos que revistam a natureza dos serviços personalizados ou de fundos públicos, e mais adiante, no nº5 do mesmo artigo exclui do seu âmbito de aplicação os que estão subordinados ao Estatuto do Gestor Público e aqueles que estejam sujeitos ao regime do Contrato Individual do Trabalho ou a regimes de direito público privativo.
F - O Decreto-Lei 437/89 também nos seus artigos 1º e 2º - objecto e âmbito – estipula que o regime aí previsto estipule a Constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública e não inclui no seu âmbito as empresas públicas sujeitas ao regime do contrato individual do trabalho.
G – Estão excluídas de jurisdição administrativa as acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja de direito público (artigo 4º nº1 alínea f) do E.T.A.F. – Decreto-Lei nº 129/84 de 2S de Abril).
H – E a Ré INCM-E.P., não tem capacidade nem legitimidade para a prática de um acto administrativo ao contrário do que transparece do Acórdão ora recorrido.
I – A livre mobilidade dos funcionários públicos do Estado tem regras próprias e especificas quando esta mobilidade se opera dentro da própria função pública, ou para fora dela. No caso dos presentes autos as regras aplicáveis não foram cumpridas. Operou-se assim a contratação da Autora sem estipulação de qualquer prazo.
J - O que consubstancia uma relação de trabalho subordinado entre a A e a Ré INCM, E.P, pelo que é o Tribunal de Trabalho competente em razão da matéria para conhecer desta acção.
K- O Acórdão ora recorrido violou o disposto nos artigos 64º alínea b) do Decreto-Lei nº 38/87 de 23 de Dezembro, 30º e 32º do Decreto-Lei nº 260/76 de 8 de Abril, artigo 52º do Decreto-Lei nº 333/81 de 7 de Dezembro e o artigo 1º do Decreto nº 49.408 de 24 de Novembro”.
Não houve contra-alegações.
O Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“Vem interposto recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa fls. 212 que julgou procedente o recurso de agravo, julgando o Tribunal de Trabalho incompetente em razão da matéria para conhecer da acção proposta a fls. 2.
A questão a decidir consiste, pois, em saber qual o tribunal competente para conhecer de uma acção proposta pela autora em que esta, invocando a existência de um contrato individual de trabalho a que foi posto termo pela Ré, pede a condenação desta - Imprensa Nacional-Casa da Moeda, EP – a proceder à sua reintegração no cargo que ocupava como Directora de Departamento de Edições e Lojas, bem como o pagamento de diversas prestações vencidas e vincendas e, ainda, no pagamento de uma indemnização a título de danos morais.
É sabido que a competência do tribunal se afere em função dos termos em que a acção é proposta, sendo de atender aos seus elementos objectivos ( natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, ou o facto ou acção donde teria resultado esse direito ) – cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1963, páginas 89 e 90, e acórdãos do STA de 12-01-88, proc.º n.º 24880, in Ap. DR de 8-1093, 106 e do STJ de6-06-78, in BMJ 278,122.
No caso em apreço, como se disse, na petição invoca como fundamento do pedido regime jurídico do contrato individual de trabalho, não sendo o facto de a R. ter, na contestação, oposto que o regime aplicável era de direito administrativo obstáculo á competência dos tribunais de trabalho.
A questão de saber se a configuração jurídica que a recorrente dá à pretensão é ou correcta, i. e. se lhe é ou não aplicável o regime do contrato individual de trabalho ou não regida pelo direito laboral, é questão que contende com o mérito da acção.
Face ao exposto – e no sentido já decidido por este Tribunal de Conflitos (cfr. acórdão de 26-09-96, Proc.º n.º 267, in Ap. DR de 20-11-97, 59) - somos de parecer que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se o douto acórdão recorrido, decidindo-se ser competente para a presente acção o Tribunal de Trabalho de Lisboa, tal como se havia considerado a fls. 85, e ordenando-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para conhecer dos recursos de apelação interpostos pelas partes”.
O processo correu os vistos legais, cumprindo agora decidir.
- II -
Para atingir a conclusão de que o tribunal do trabalho era incompetente para conhecer da acção, o acórdão recorrido estribou-se numa série de considerandos, que podem resumir-se do seguinte modo:
A Autora e ora recorrente era desde 8.4.80 funcionária pública do Estado, por nessa data ter ingressado no quadro do pessoal dos Serviços Centrais da Direcção-Geral do Tesouro. Na altura em que iniciou funções ao serviço da Ré, a Autora desempenhava, no regime de comissão de serviço, o cargo de chefe de divisão na mesma Direcção-Geral. O ingresso na empresa Ré deu-se no regime de comissão de serviço, autorizado por despacho do Secretário de Estado do Tesouro, o que implica o exercício temporário de funções diversas da sua categoria profissional, com regresso às funções anteriores quando a comissão terminasse. Das disposições legais ao abrigo das quais a Autora foi nomeada – arts. 32º do Dec-Lei nº 270/76, de 8.4 (Bases Gerais das Empresas Públicas) e 53º do Dec-Lei nº 331/81, de 7.12 (Estatuto da INCM) resulta que à Autora teria de contar-se todo o tempo prestado em comissão de serviço naquela empresa pública como prestado no quadro de origem do funcionalismo público, logo sujeito ao regime do Estatuto disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Pública, não lhe sendo aplicável o regime da comissão de serviço regulada no Dec-Lei nº 404/91, de 16.10, nem a LCCT aprovada pelo Dec-Lei nº 64-A/89, de 27.2. Não se estabeleceu entre Autora e Ré qualquer vínculo jurídico-laboral ou de contrato individual de trabalho, pois a aquela nunca perdeu a sua condição e estatuto de funcionária pública pelo facto de, por um acto administrativo, ter passado a exercer , temporariamente, funções numa empresa pública, sem nunca ter sido contratada por esta. Terminada a comissão voltou, naturalmente, ao lugar de origem, sem qualquer quebra do respectivo vínculo. Como qualquer outro funcionário nomeado, em comissão de serviço, para exercer funções numa empresa pública, a Autora jamais poderia passar ao quadro dessa empresa – tal como o trabalhador de empresa pública chamado a exercer funções em comissão de serviço no Estado não adquire por esse facto vínculo à função pública. Não havendo, assim, sujeição ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, o tribunal competente não pode ser o tribunal do trabalho.
Os fundamentos do acórdão impugnado, que acabam de sintetizar-se, não enfermam, em si mesmos, de qualquer incorrecção ou desacerto que os sujeite a uma censura directa. O que acontece é que não são idóneos para alicerçar o julgamento quanto à competência do tribunal, que terá de ser determinada por critérios diferentes.
Efectivamente, é em função dos termos em que a acção é proposta, mormente do pedido que perante o tribunal se formula, que se afere da competência - cfr. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1963, páginas 89 e 90, Acórdão do Tribunal de Conflitos de 26.9.96 (Ap. D.R., p. 59), Acs. do STA de 12-01-88, proc.º n.º 24.880, in Ap. D.R., p. 106 e do STJ de 6-06-78, in BMJ 278,122. O pedido do autor corresponde ao quid disputatum, ou quid decidendum, ou seja, a providência concreta que ao tribunal vem solicitar-se.
A competência não depende, assim, da legitimidade das partes nem da procedência da acção e, por isso, o que o réu vem alegar na contestação não pode servir de contributo para o juiz fixar a competência do tribunal. Esta depende, isso sim, do modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo.
Ora, os pedidos que a Autora formulou na presente acção eram, como resulta do que atrás se relatou, pedidos típicos de uma acção emergente de contrato individual de trabalho – condenação da Ré na sua reintegração na empresa, no pagamento de remunerações mensais vencidas e vincendas, incluindo participação nos lucros, no pagamento de uma indemnização por danos morais ou, em alternativa à reintegração, uma “indemnização legal” pela cessação do contrato sem justa causa.
Como pressuposto desse pedido, a Autora invocava expressamente ter ficado sujeita ao regime do contrato individual de trabalho desde o momento em que passou a exercer a sua actividade ao serviço da Ré, e bem assim que foi “despedida” pela Ré, “sem qualquer explicação ou indemnização”. Chega, inclusivamente, a afirmar que lhe “deve ser reconhecido o seu vínculo jurídico-laboral à empresa Ré”.
Ora, para conhecer de uma tal pretensão, nos termos em que assim ficou delineada, seguramente que o tribunal do trabalho era competente, ex vi do art. 85º, alínea b), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro.
É certo que a Autora também incluía na exposição dos factos que serviam de fundamento à acção a afirmação de que era funcionária da Direcção-Geral do Tesouro, e que fora admitida na INCM no regime de comissão de serviço, autorizada por despacho ministerial - trazendo com isso alguma perturbação à coerência interna da causa de pedir e sua articulação com o pedido, que numa perspectiva rigorosa podia ser sancionada com a ineptidão da petição.
Porém, na sequência dessa narração, a Autora asseverava, claramente, ter mantido com a Ré um contrato individual de trabalho, ao qual fora a dada altura posto termo por declaração unilateral da Ré, que qualificou de despedimento, optando desse modo por fazer o desenho da relação jurídica em que assentava o pedido abstraindo por completo de qualquer componente de direito público. E, a encerrar a petição, formulou o pedido da forma que já se viu, o que tem de considerar-se decisivo para o estabelecimento do quid decidendum.
Saber se, para o Direito, as relações entre Autora e Ré se reconduziam a um contrato individual de trabalho, como vinha alegado, ou se, pelo contrário, decorreram sob a égide de normas de direito administrativo, era questão que transcendia já a da competência do tribunal, para se prender com o mérito da acção proposta.
Em face do exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, declarando a competência do tribunal do trabalho para conhecer da presente acção, e determinando a baixa dos autos à Relação de Lisboa, para conhecer dos recursos de apelação interpostos pelas partes.
Sem custas.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2002.
J. Simões de Oliveira – Relator – Costa Reis – Sousa Inês – Macedo de Almeida