Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:011/16
Data do Acordão:09/22/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
DESAFECTAÇÃO
BEM DO DOMÍNIO PÚBLICO
Sumário:I - Numa acção em que estão em causa problemas jurídicos atinentes a um bem do domínio público que foi objecto de permuta com particulares torna-se imprescindível avaliar se a desafectação desse bem cumpriu o disposto na lei.
II - Acrescendo a isso que a questão em apreço tem que ver com a necessidade de reparação de uma alegada violação “a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional (art. 4.º, n.º 1, do ETAF), dúvidas parecem não restar de que a questão jurídica controvertida, tal como acima delimitada, se situa no âmbito do Direito Administrativo.
Nº Convencional:JSTA000P20935
Nº do Documento:SAC20160922011
Data de Entrada:02/25/2016
Recorrente:A... E MARIDO E OUTRA, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DE BRAGA, CABECEIRAS DE BASTO, INSTÂNCIA LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1 E OS TAFS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 11/16

Acordam no Tribunal de Conflitos


1. Relatório

1. B……………….., devidamente identificado nos autos, deduziu, no Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, acção popular para tutela do domínio público contra A……………. e marido C……………, Junta de Freguesia ……….. (………….) e Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto (ulteriormente, o A. desistiu da instância contra esta câmara municipal). Nela formulou, a final, os seguintes pedidos:

“a) – Declarar-se que o caminho melhor identificado nos artigos 10º a 12º da p.i. pertence ao domínio público das freguesias ……….. (…………) e …………, deste concelho;

b) – Declarar-se que o troço do caminho melhor identificado nos artigos 25º e 26º da p.i. continua a ter carácter público;

c) – Declarar-se nulo o contrato de permuta entre os 1os R.R. e a 2a Ré, referindo no artigo 37º deste articulado e no documento adjunto sob o n.º 6;

d) – Condenar-se os 1os R.R. a retirarem o portão referido no artigo 31º deste articulado e a não obstarem, por qualquer outro modo, ao trânsito de pessoas, animais e veículos pelo identificado troço de caminho;

e) – Condenar-se os R.R. nas custas do processo”.

Alega, em síntese, que o caminho público vicinal em questão estabelece a separação entre as freguesias …………. (…………..) e ……….. (art. 9.º da p.i.), e que “Desde tempos que escapam à memória dos vivos e dos mortos que os vivos conheceram sempre foi utilizado para trânsito dos moradores da freguesia ……… (………….), designadamente nos lugares de ………., ……….. e …………, e por quem lá quisesse passar, (art. 16.º da p.i.), estando no uso directo e imediato do público em geral, (art. 17.º da p.i.) sem entraves ou embaraços”. Pertence, pois, dito caminho vicinal ao domínio público das freguesias ………. (…………….) e ………… Alega ainda que no caminho em apreço foi colocado pelos primeiros RR. “um pilar à entrada do identificado tracto de caminho” (art. 30.º da p.i.), e os mesmos “preparavam-se para o fechar com um portão – como, depois, veio a suceder” (art. 31.º da p.i.).

Perante uma tal actuação dos primeiros RR., o ora A. popular apresentou uma reclamação à terceira Ré – que seria arquivada – que mereceu a seguinte resposta: “Em virtude do esclarecimento prestado pela Junta de Freguesia ……….., […] foi constatado que o caminho vicinal em questão é pertença da Sr.a D. A…………… por troca com terrenos cedidos pela mesma à Junta de Freguesia ……….. para alargamento do caminho vicinal de ligação dos lugares do ………., …………, ………… e ……….. a partir das imediações da rotunda de saída da variante às EENN 205210, conforme documento próprio elaborado e assinado pelas partes envolvidas e após aprovação da Assembleia de Freguesia ………….”. Inconformado, o A. enveredou pela via judicial.

2. Por sentença de 28.02.14, o Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, dando como não verificada, para o que ora interessa, a excepção de incompetência material da jurisdição comum, deduzida pelo Município de Cabeceiras de Basto, decidiu julgar a acção parcialmente procedente, e, em consonância: 1) “Declarar que o caminho descrito nos pontos 12) e 13) dos factos provados é do domínio público em toda a extensão ainda existente, incluindo o troço de 100 metros referido em 5) dos factos provados; 2) Condenar os primeiros réus A………………. e C…………….. a retirarem o portão que colocaram, referido em 7) dos factos provados, bem como a não obstarem, por qualquer modo, ao trânsito de pessoas, animais e veículos no referido troço de caminho; 3) Absolver os réus do demais peticionado”.
Nesses mesmos exactos termos se decidiu na sentença de 19.09.14, prolatada na sequência da realização de nova audiência de discussão e julgamento, tornada necessária em virtude da verificação da nulidade invocada pelos primeiros e segundo réus.

3. Inconformados, os réus A…………….. e seu marido C……………… e Junta de Freguesia ………….. interpuseram recurso daquela sentença para o Tribunal da Relação de Guimarães, o qual, por decisão de 12.03.15, concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e absolvendo os réus da instância. Entendeu este tribunal que “No caso dos autos estamos claramente no âmbito de uma relação jurídica em que um dos sujeitos é uma entidade pública, a freguesia, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas tarefas de realização do interesse público, pelo que a competência em razão da matéria para conhecer do seu objecto é dos tribunais administrativos” (fl. 569v.).

4. Desta última decisão foi interposto recurso de revista para o STJ pelo Autor popular B………….., recurso em que se peticiona a procedência do mesmo, com a consequente revogação do acórdão recorrido e a sua substituição “por outro que julgue o Tribunal competente em razão da matéria” (cfr. fl. 582). Nas suas alegações os recorridos pugnam pela improcedência do recurso e pela confirmação do acórdão recorrido (cfr. fl. 588v.).
O recurso foi admitido como sendo de revista, com efeito meramente devolutivo. Porém, tendo em conta o disposto do n.º 2 do artigo 101.º do CPC, entendeu-se que “o recurso destinado a conhecer e a definir qual o tribunal competente deveria ter sido interposto para o Tribunal dos Conflitos e não para este Supremo Tribunal, ao qual está vedado tal conhecimento”, razão pela qual se decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso, determinando-se, no entanto, a remessa dos autos ao Tribunal de Conflitos ao abrigo dos princípios da economia processual, do aproveitamento máximo dos actos processuais e da adequação formal.

5. Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


2. Enquadramento e apreciação do conflito

2.1. De facto:

Factualmente releva o que se mencionou no antecedente Relatório.

2.2. De direito:

2.2.1. Pode extrair-se da apreciação das várias pretensões constantes do petitório e relacionadas com o caminho vicinal objecto da discórdia entre o A. e os RR. que a questão essencial a decidir é a da pertença de um tal caminho ao domínio público. Mais concretamente, uma vez que ele foi objecto de uma permuta entre os primeiros RR. e a segunda Ré, importa saber se houve prévia desafectação, tácita ou expressa, do caminho vicinal em questão, tendo o mesmo passado a integrar o domínio privado do titular (e não mais, por conseguinte, o domínio público), questão à qual está associada uma outra, que é a da possibilidade de desafectar os bens ou certos bens do domínio público das freguesias e os termos em que pode ocorrer uma tal desafectação.

2.2.2. Antes de avançarmos, temos que, neste particular domínio dos conflitos de jurisdição, há que considerar, a título de enquadramento genérico da questão sub judice, alguns preceitos, como, desde logo, o artigo 211.º, n.º 1, da CRP, o qual dispõe que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.

Por sua vez, o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, estipula que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

No plano legislativo, interessa aludir, antes de mais, ao artigo 64.º do CPC, segundo o qual “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

A mencionar, ainda, artigo 1.º, n.º 1, do ETAF, nos termos do qual “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Por último, cabe fazer referência ao artigo 4.º do ETAF, que exemplifica vários tipos de litígios sujeitos, ou, ao invés, excluídos do foro administrativo. Destacamos as alíneas a) e l) do seu n.º 1. Nelas se dispõe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a “Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal” (al. a); e “Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional” (al. l)).

Feito este enquadramento prévio e genérico, há que dizer que se mostra consensual o entendimento de que a competência do tribunal em razão da matéria se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida – em princípio, tal como definida pelo autor no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio –, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido. Em nada releva, para o caso, saber se a pretensão formulada é ou não procedente ou se as partes são ou não legítimas.

2.2.3. Igualmente importante se mostra tecer algumas breves considerações sobre os bens de domínio público e a sua desafectação.
Assim, os caminhos públicos, designadamente os vicinais, pertencem, como é bom de ver, ao domínio público, devendo ser garantido o seu acesso e uso à generalidade da população (e respectivos veículos e animais). Deste modo, não é permitida a colocação por particulares de qualquer obstáculo à sua fruição, como sejam barreiras ou portões. Nos termos do artigo 21.º (Autotutela) do DL n.º 280/07, cabe à Administração, no exercício dos seus poderes de uso, administração, tutela, defesa e disposição (art. 15.º - “Titularidade” – do citado diploma), ordenar aos particulares que cessem eventuais “comportamentos abusivos, não titulados, ou, em geral, que lesem o interesse público a satisfazer pelo imóvel” – in casu, que ponham em causa a plena fruição do caminho público – “e [que] reponham a situação no estado anterior” –, aqui se podendo observar o exercício, por parte da Administração, de poderes de autoridade no exercício de um poder público enquadrado o mesmo por normas de direito público.
Num outro plano, o artigo 18.º (Inalienabilidade) do diploma em análise estipula que os “imóveis do domínio público estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objecto de direitos privados ou de transmissão por instrumentos de direito privado”.
A utilidade pública do caminho, como facilmente se percebe, consubstancia condição substancial do estatuto da dominialidade, pelo que, perdida essa utilidade pública, poderá ocorrer a sua desafectação. Com efeito, esta possibilidade está expressamente consagrada no artigo 17.º (Desafectação). Com a desafectação, “os imóveis deixam de integrar o domínio público, ingressando no domínio privado do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais” (art. 17.º).
Como, no caso dos autos, está em causa um bem do domínio público de uma freguesia, a competência para a desafectação pertence à respectiva assembleia, por iniciativa própria ou a solicitação da junta (art. 17.º, n.º 1, al. r), da Lei n.º 169/99, de 18.09, actualmente, art. 9.º, n.º 2, al. k), da Lei n.º 75/13, de 12.09), e deve ser exercida quando se constate que o caminho vicinal perdeu a sua utilidade pública, ou seja, quando se constate que o mesmo deixou de ser usado de forma habitual pela generalidade da população. A decisão de desafectação deverá ser publicitada em editais a afixar na freguesia (art. 91.º da Lei n.º 169/99, actualmente, art. 56.º da Lei n.º 75/13).

2.2.4. Retomando agora o caso dos autos, apesar de não incidir, por exemplo, sobre uma questão relativa ao uso dos bens do domínio público pelos particulares (v.g., mediante prévia concessão), antes se questionando a permuta de um bem que alegadamente, no entender da Junta de Freguesia, tinha sido objecto de desafectação, não pertencendo já ao domínio público, a verdade é que o A., na p.i., questiona, desde logo, o próprio acto de desafectação, e, na medida em que o considera ilegal – pois, em seu entender, a finalidade de utilidade pública que justifica a dominialização do tal caminho ainda persiste –, a própria permuta igualmente o seria. Com o que as obras realizadas pelos primeiros réus – relembre-se, “um pilar à entrada do identificado tracto de caminho” e, ulteriormente, um portão, que, como afirma o A., impede a passagem de pessoas, animais e veículos – teriam que ser mandadas demolir pela Junta de Freguesia. Neste sentido, há que averiguar se um determinado caminho vicinal, de que é, ou foi titular uma pessoa colectiva pública, que é ré no presente processo, foi devidamente desafectado – no fundo, há que apurar se o acto de desafectação, que reveste a forma de acto administrativo, cumpriu o preceituado nas normas do DL n.º 280/07, de 07.08 (com as sucessivas alterações, as últimas das quais introduzidas pela Lei n.º 82-B/2014, de 31.12), designadamente, se respeitou os artigos 17.º (Desafectação) e 107.º (Permuta), fazendo ambos parte do regime jurídico do património imobiliário público, o qual pode ser classificado como regime de direito público. Se a isto acrescer que a questão em apreço tem que ver com a necessidade de reparação de uma alegada violação “a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional (art. 4.º, n.º 1, do ETAF), dúvidas parecem não restar de que a questão jurídica controvertida, tal como acima delimitada, se situa no âmbito do Direito Administrativo. Nesta conformidade, é de excluir a competência dos tribunais comuns para a conhecer.

3. Decisão

Face ao exposto, os juízes do Tribunal de Conflitos resolvem o presente conflito negativo de jurisdição considerando os tribunais administrativos competentes, em razão da matéria, para conhecer da pretensão formulada pelos autores.

Sem custas.

Lisboa, 22 de Setembro de 2016. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – José Inácio Manso Rainho – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Francisco Manuel Caetano – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – João Moreira Camilo.