Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:07040/22.7T8PRT.S1
Data do Acordão:11/22/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Sendo o réu uma pessoa coletiva de direito público e fundando-se a causa em responsabilidade civil extracontratual, a competência para conhecer da acção de indemnização cabe aos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Nº Convencional:JSTA000P30342
Nº do Documento:SAC2022112207040
Recorrente:A......
Recorrido 1:INSTITUTO DA HABITAÇÃO E REABILITAÇÃO URBANA, I.P.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito de Jurisdição

Acordam, no Tribunal dos Conflitos:


1. Em 22 de Abril de 2021, AA instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto uma acção administrativa comum contra o IHRU - Instituto Habitação Reabilitação Urbana, IP, pedindo a condenação do réu a proceder à reparação dos danos existentes na fracção autónoma de que é proprietário, que alega terem sido causados por uma inundação ocorrida na fracção de que o réu é proprietário, situada por cima da sua, cuja reparação é urgente.
O réu contestou, impugnando os factos e o valor da causa e excepcionando a ineptidão da petição inicial. Concluiu que devia ser absolvido da instância ou, se assim se não entendesse, do pedido.
Notificado, o autor replicou.
Por despacho de 22 de outubro de 2021, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto suscitou oficiosamente a exceção da incompetência em razão da matéria (“estamos perante um litígio emergente de uma relação de vizinhança, regida pelo direito privado”) e ofereceu o contraditório às partes.
Por sentença de 12 de Fevereiro de 2022, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto absolveu o réu da instância, por incompetência dos Tribunais Administrativos, por pertencer a causa ao âmbito de jurisdição dos tribunais judiciais.
Para o efeito, e em síntese, reiterou o fundamento de estar em causa um litígio emergente de uma relação de vizinhança, de natureza estritamente privatística, regida pelo direito privado.
Notificado, o autor requereu a remessa dos autos ao Juízo Local Cível do Porto.
Por decisão de 18 de Maio de 2022, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto – Juiz ..., absolveu de novo o réu da instância, por entender que, estando em causa responsabilidade civil extracontratual de pessoa coletiva de direito público, a competência para conhecer do litígio caberá aos Tribunais Administrativos, nos termos do art. 4.º, n.º 1, al. f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Por despacho de 20 de Junho de 2022, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto – Juiz ... requereu ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a resolução do conflito negativo de jurisdição.

2. Determinado pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos), o Ministério Público proferiu parecer, nos termos do n.º 4 do respectivo artigo 11.º, no sentido de caber à jurisdição administrativa a apreciação da acção, concretamente ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais): “Não restam dúvidas que, na acção proposta, se discute uma questão de responsabilidade civil extracontratual duma pessoa colectiva de direito público, dado que o IRHU é um instituto público e a causa de pedir, na acção, é o ressarcimento dos prejuízos causados por uma inundação ocorrida por negligência do ocupante do imóvel propriedade do R.”.

3. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.
Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido do autor, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Como este Tribunal tem repetidamente recordado, esta forma de delimitação obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. f) do nº 1 deste artigo 4º, cabe aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal julgar os litígios respeitantes a “responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (…)”.


Tem-se uniformemente observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, que a competência se determina tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).
Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se escreveu no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.

4. No caso dos autos, o autor alega, em suma, que a fração de que é proprietário sofreu vários danos em consequência directa e necessária de uma inundação ocorrida na fracção pertencente ao réu IHRU, I. P., dada de arrendamento a terceiro.
Na sua decisão, como se viu, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto afirma que está em causa um litígio emergente de uma mera relação de vizinhança, regida pelo direito privado, cuja natureza não se altera pela circunstância de o proprietário do prédio vizinho ser um instituto público: “É certo que o réu é um instituto público e que até pode ter celebrado algum contrato administrativo ou de direito público com o seu arrendatário. Mas entre a inundação de base e os danos alegados pelo autor não se intersecciona nenhum acto administrativo, nenhum poder administrativo, nenhum interesse público envolvido, nenhuma função administrativa, em suma, nenhuma realização jurídico-administrativa. Tal causa de pedir é, por conseguinte, estritamente privatística, reconduz-se aos quadros das relações de vizinhança ou de condomínio, e é nos tribunais judiciais que há-se de ser decidida (…)”.
Diferentemente, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto – Juiz ..., decidiu que, fundando-se o pedido do autor em responsabilidade civil extracontratual de pessoa coletiva de direito público, a competência caberá aos Tribunais administrativos, por força do art. 4.º, n.º 1, al. f), do ETAF.
O IHRU – Instituto Habitação Reabilitação Urbana IHRU, I. P., é um instituto público de regime especial e gestão participada, integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio (art. 1.º do Decreto-Lei n.º 175/2012, de 2 de Agosto).
Enquanto instituto público, o IHRU, I. P., é uma pessoa coletiva de direito público (art. 4.º, n.º 1, da Lei n.º 3/2004, de 15 de Janeiro).
Decidiu-se no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 10 de Março de 2011, www.dgsi.pt., proc. n.º processo n.º 013/10: «De referir ainda que, “o novo ETAF (aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro) unificou a jurisdição no tocante à responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, desinteressando-se da questão de saber se o direito de indemnização provém de acto de gestão pública ou de gestão privada, e, do mesmo modo, integrou no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, bem como a resultante do deficiente funcionamento da administração da justiça, dissipando todas as dúvidas que pudessem colocar-se, no futuro, quanto à fronteira entre a jurisdição dos tribunais administrativos e dos tribunais comuns (cfr. artigo 4°, n.º 1, alínea g)” - acórdão do Tribunal de Conflitos de 18-12-2003, Proc.° n.° 15/03. (…)».
No mesmo sentido, pronunciou-se o Acórdão do STJ, de 1 de Março de 2018, www.dgsi.pt., processo n.º 1203/12.0TBPTL.G1.S1: “III. Com a Reforma do Contencioso Administrativo, operada pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, alterou-se, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.”.
E veja-se, ainda, mais recentemente, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 5 de Maio de 2021, www.dgsi.pt, processo n.º 03461/20.8T8LRA.S1:
“(…) o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, veio trazer para o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal todas as acções de responsabilidade civil extra-contratual instauradas contra entidades públicas, incluindo a responsabilidade resultante do exercício da função jurisdicional, tornando-se desnecessário apurar se o acto indicado como fonte da obrigação de indemnizar, como tal indicado pelo autor, deve ser considerado um acto de gestão pública ou de gestão privada”.
Essa ampliação da jurisdição administrativa, por confronto com a legislação anterior à reforma de 2002, vem aliás explicitada na Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei n.º 93/VIII/2 e da qual veio a resultar a Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: “Ao mesmo tempo, e dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios em que, tradi­cio­nal­mente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns.
A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado; já em relação às pessoas colectivas de direito privado, ainda que detidas pelo Estado ou por outras entidades públicas, como a sua actividade se rege fundamentalmente pelo direito privado, entendeu-se dever manter a dicotomia tradicional e apenas submeter à jurisdição administrativa os litígios aos quais, de acordo com a lei substantiva, seja aplicável o regime da responsabilidade das pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função administrativa.”
Assim, sendo o réu uma pessoa coletiva de direito público e fundando-se a causa em responsabilidade civil extracontratual, a competência para conhecer do presente litígio caberá aos Tribunais Administrativos, nos termos do disposto na al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; concretamente (n.º 5 do art. 14.º da Lei n.º 91/2019) ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (n.º 1 do artigo 18.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Sem custas (n.º 2 do artigo 5.º da Lei n.º,91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 22 de Novembro de 2022. Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.