Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:07/22.7YFLSB
Data do Acordão:04/19/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Sumário:Cabe aos tribunais judiciais o conhecimento de uma acção que decorre entre particulares e na qual se pede a reposição de imóveis no estado em que se encontravam antes de serem ilegalmente alterados, em violação de normas urbanísticas, bem como uma indemnização pelos danos causados em consequência dessas alterações.
Nº Convencional:JSTA000P29330
Nº do Documento:SAC2022041907
Recorrente:GUIA SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES E TURISMO, S.A.
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 17 de Março de 2021, GUIA - Sociedade de Construções e Turismo, S.A. intentou no Juízo Central Cível de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste uma ação contra AA, formulando os seguintes pedidos:
1. Ser a Ré condenada a demolir totalmente as obras realizadas no seu imóvel sem controlo prévio e em violação das normas e prescrições urbanísticas aplicáveis, por serem insuscetíveis de legalização;
2. Ser a Ré condenada a repor o seu imóvel (terreno e edificação original) nas condições em que se encontravam antes do início das obras ou trabalhos ilegais, nos exatos termos das licenças que hajam sido validamente emitidas pela Câmara Municipal ... para o imóvel da Ré;
3. Ser a Ré condenada a pagar à Autora, a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos, a quantia de EUR 109.001,98”.
Segundo alega, com a presente ação, a autora “visa obter o reconhecimento e a declaração judicial de que a ré realizou, ou mantém, obras de construção, de alteração e de ampliação no seu imóvel, que constitui a ... (Moradia) n.º ..., sita no ... da ..., em ..., sem a licença ou comunicação prévia legalmente exigidas e em violação dos Alvarás de Loteamento e dos instrumentos de gestão territorial aplicáveis.”
Mais alega pretender, também, “obter o reconhecimento e a declaração judicial de que a situação atual do imóvel propriedade da ré, resultante da realização das indicadas obras, configura um ilícito urbanístico que provoca, e continuará a provocar, danos à autora suscetíveis de serem indemnizados”, que, designadamente, sem excluir, (í) desvalorizam o valor comercial dos imóveis propriedade da Autora vizinhos do imóvel propriedade da Ré e (ii) afetam o exercício da atividade comercial da Autora de rentabilização dos imóveis de sua propriedade, quer por via da sua locação, quer por via da sua comercialização.”
Acrescenta que a presente ação visa apurar a responsabilidade civil extracontratual da ré para com a autora.
A ré contestou, excepcionando, além do mais, a incompetência material do Tribunal, por não estar em causa, nem “uma relação de vizinhança ou qualquer outra questão de natureza civil”, nem “uma questão de natureza incidental face às restantes pretensões formuladas pela autora”, mas antes um pedido de natureza administrativa, “que consiste em saber se as licenças emitidas para o imóvel comportam a realização de obras de construção, alteração ou ampliação e se a eventual falta de licenciamento para tais obras implica a sua demolição; só a partir deste ponto é possível falar em responsabilidade por actos ilícitos”.
Concretizou que “a relação jurídica envolvida nos pedidos (…) de demolição das obras e reposição do imóvel no estado anterior ao início das obras reconduz-se, em primeira fase, na apreciação da relação urbanística entre a contestante e a Administração Pública e à qualificação jurídica dos actos subjacentes e, só depois de esta ser certa para o direito, a, em segunda fase, à reparação da lesão do interesse público, que só em situações extremas passará pela demolição (102.º a 106.º do RJUE) e só mais tarde, depois de ter sido dirimida a questão jus publicista e havendo a prática de ato ilícito pelo particular, assim declarado pelas autoridades competentes, poderá haver lugar ao apuramento da eventual responsabilidade da contestante pela ofensa a direitos e interesses legalmente protegidos da demandante”.
Concluiu que, estando em causa uma relação jurídica administrativa, a competência para julgar a acção cabe à jurisdição administrativa, nos termos dos artigos 212.º, n.º 3, da CRP e 4.º, n.º 1, alínea k), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, “pois os actos das autarquias locais, no exercício de funções públicas, são da competência dos tribunais administrativos e fiscais”.
Notificada, a autora respondeu à excepção.
Sustentou, em suma, serem irrelevantes para o julgamento da presente acção as consequências administrativas da realização de obras sem licenciamento prévio, afirmou estar em causa uma relação puramente civil e reafirmou a competência dos tribunais comuns para a apreciação da causa.

2. Por despacho de 23 de Janeiro de 2022, o Juiz ... do Juízo Central Cível de Cascais, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, dirigiu oficiosamente ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça consulta prejudicial ao Tribunal dos Conflitos sobre a questão da jurisdição competente para conhecer da presente acção.
Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 16 de Fevereiro de 2022, admitiu a consulta, nos termos do artigo 16.º, n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).
Notificada, a autora reiterou o entendimento de que cabe aos Tribunais comuns a competência para o conhecimento da causa, alegando, em suma, que os seus pedidos se fundam numa relação de vizinhança entre as partes (privadas) e nos danos que o imóvel da ré (no estado de construção em que se encontra e pela desvantagem económica que representa) provocam na sua esfera patrimonial.
Notificada para os mesmos efeitos, a ré pronunciou-se pela atribuição à jurisdição administrativa da competência para o conhecimento da lide, reafirmando estar em causa uma relação jurídica administrativa, porquanto a acção assenta na alegada clandestinidade, ilicitude ou ilegalidade na realização de obras de construção, alteração ou ampliação no imóvel da propriedade da ré.
Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de competir à jurisdição comum o conhecimento da presente acção, uma vez que, “tal como a A. configura a acção, verifica-se que os pedidos são dirigidos contra sujeito privado e respeitam à condenação da R. na demolição de certas obras e na reposição do imóvel no estado anterior às referidas obras, para que a A. deixe de ter os alegados prejuízos decorrentes dessas obras, alegadamente ilegais, bem como na condenação da R. em indemnização pelos danos patrimoniais alegadamente causados pelas ditas obras. O sujeito privado demandado não actuou no exercício de prerrogativas de poder público nem ao abrigo de disposições de direito administrativo (segundo a A., terá actuado contra essas disposições do direito administrativo). Deste modo, a acção não se inscreve em nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF".
Cumpre, assim, definir se a competência em razão da matéria para a apreciação do litígio cabe aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.
Os factos relevantes para a decisão constam do relatório.

3. Está pois em causa, apenas, determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos, “por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº 508/94, de 14.07.94, in Processo nº 777/92; e AC TC nº 347/97, de 29.04.97, in Processo nº 139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 2 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 1.º e artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 52-53, o legislador deveria esclarecer o que se entende como “relação jurídica administrativa”, nomeadamente para ser possível saber, com segurança, como delimitar o âmbito da jurisdição administrativa: “De facto, face à complexidade actual das relações entre o direito público e o direito privado no âmbito da actividade administrativa, a questão (…) transformou-se numa decisão, numa opção política entre soluções igualmente defensáveis” (nota 68).
«Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».

4. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção; ou, ainda, no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, processo n.º 020/18, “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…) A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.
No caso dos autos, a autora fundamenta o seu pedido nos seguintes factos:
– Enquanto “entidade promotora e exploradora do Aldeamento ..., em ..., instalado em três lotes de terreno (Lotes ...)”, a autora mantém “actualmente a qualidade de titular dos Alvarás de Loteamento n.ºs .../80 e .../84, que abrangem a Quinta...”;
“Enquanto loteadora original da Quinta..., a autora suportou o custo de todas as infraestruturas instaladas e contrapartidas acordadas, cumprindo escrupulosamente todas as regras urbanísticas que lhe eram impostas, designadamente no tocante às áreas de construção, à composição dos espaços exteriores, à definição dos caminhos exteriores e de evacuação”;
“A autora licenciou a construção de 29 [39] moradias no Lote ..., edificou-as e obteve autorização para a sua utilização”;
­– A autora vendeu a totalidade daquelas 39 moradias e “é, actualmente, proprietária e titular de opções de compra de 47 imóveis localizados na Quinta..., destinados à construção e/ou venda imobiliária”;
– “A ré é proprietária da moradia identificada pelo número 8 (…), construída no Lote ...”, que foi objecto da realização de obras de ampliação e de alteração do espaço envolvente, sem a licença ou comunicação prévia legalmente exigidas e em violação dos Alvarás de Loteamento e dos instrumentos de gestão territorial aplicáveis, contando com uma área de construção ilegal de 81,2 m²;
“Ao longo dos anos, após a venda pela autora da totalidade das moradias instaladas no Lote ...”, onde se incluiu o imóvel da ré, os proprietários respectivos “foram realizando obras clandestinas de ampliação, de alteração e de construção de edificações novas com impermeabilização e vedação de logradouros, tendo aumentado em 66%, no seu conjunto, a área edificada total no Lote ..., sem que para tal tivessem solicitado e obtido o necessário licenciamento exigido por lei junto das entidades competentes”;
“Com o objectivo de procurarem e adoptarem uma solução conjunta para os problemas individuais de cada um dos proprietários das moradias do indicado Lote ..., decorrentes da realização de obras ilícitas nos seus imóveis, a grande maioria dos proprietários constituiu entre si uma associação (…), denominada Associação de Moradores e Proprietários do Lote ...da ... ("...")”;
– Em Junho e Julho de 2017, a autora e a ... celebraram dois Protocolos com vista a estabelecer um procedimento que permitisse legalizar as construções que os proprietários das moradias promoveram clandestinamente. Tais Protocolos destinavam-se a regular, entre outras matérias, “a transferência de edificabilidade a favor dos associados da ...”, que nisso viessem a demonstrar interesse, “a título oneroso, de áreas de construção atribuídas pela licença de loteamento dos ... e/ou ..., ambos, então, da propriedade da autora”;
“Em concreto, as partes estabeleceram nos referidos Protocolos os procedimentos, além do mais, para (i) a elaboração e apresentação conjunta de um pedido de informação prévia junto da Câmara Municipal ... sobre a viabilidade das operações urbanísticas de alteração ao alvará de loteamento e das regularizações urbanísticas do interesse dos proprietários do referido Lote ... e (ii) a elaboração futura de uma minuta de contrato-promessa de transferência onerosa de edificabilidade a celebrar entre a autora, como promitente transmitente, e os proprietários das moradias do ... da ... que, individualmente, viessem a aderir a tal contrato-promessa, como promitentes transmissários”;
– Tal “pedido de informação prévia deveria ser elaborado” com “articulação das partes e apresentado conjuntamente, com a adesão expressa da autora”;
– Porém, “após a celebração dos indicados Protocolos a ... e/ou os proprietários do Lote ...da ..., entre os quais a ré”, não observaram o ali estipulado, designadamente no que respeita à articulação para efeitos de apresentação do pedido de informação prévia;
– Apesar de “a autora e a ... não terem concluído qualquer acordo na sequência das negociações que encetaram após a celebração” dos aludidos Protocolos, “a ..., à total revelia da autora, submeteu à Câmara Municipal ..., em 19 de Junho de 2019, um pedido de informação prévia que visava a legalização das construções e ocupações ilegalmente realizadas em imóveis dos seus associados no aludido Lote ..., nomeadamente na ..., propriedade da ré”;
– Naquele pedido de informação prévia foi proposto pela ... “que a legalização das construções ilegais dos ... se fizesse por via da transferência de edificabilidade atribuída pelos Alvarás de Loteamento ao Lote ... da ... (da propriedade da autora);
“A autora recusa (…) proceder a essa transferência de edificabilidade (que implicaria uma alteração ao Alvará de Loteamento de que é titular), não está vinculada e não assume “qualquer obrigação relativa à regularização urbanística das obras que os proprietários de imóveis no Lote ... realizaram sem licença e em violação dos Alvarás de Loteamento e dos instrumentos de gestão territorial em vigor”, posição que já levou ao conhecimento da Câmara Municipal ...;
“As edificações clandestinas determinam riscos directos em matéria de segurança urbanística e ambiental, designadamente os que resultam de uma pressão acrescida sobre as infraestruturas urbanísticas, dimensionadas de acordo com o Alvará de Loteamento, bem como o elevado risco de incêndio resultante das novas áreas edificadas, da impermeabilização de espaços exteriores e da construção de vedações ilegais com ocupação dos caminhos de acesso e evacuação”;
– Assim, “a realização das obras clandestinas pela ré, em conjunto com as demais obras clandestinas realizadas pelos proprietários do Lote ...da ...”, colocaram em risco “o património imobiliário vizinho, propriedade da autora”;
– “Por outro lado, a realização dos indicados ilícitos urbanísticos realizados pela ré e pelos demais proprietários do Lote ...da ... ofende grosseiramente o interesse da autora de cumprimento da legalidade urbanística em toda a área do loteamento em que se insere o seu património imobiliário, de cujos alvarás de licença a autora é titular”;
“As obras clandestinas” e a utilização de área de construção ilegal “promovidas pela ré, assim como pelos demais proprietários das moradias do ... da ..., provocam uma alteração do enquadramento global dos imóveis da autora no conjunto urbanístico que constitui a Quinta...”, afectam e desvalorizam o respectivo valor;
– Em 30 de Outubro de 2019, a ... “requereu contra a autora uma providência cautelar com o objetivo de (i) que seja judicialmente apreendido o direito de disposição do ..., (ii) que a autora seja inibida de realizar negócios jurídicos sobre o identificado ... e (iii) que a autora seja inibida de realizar ou desenvolver operações urbanísticas no mencionado ...”;
“A referida providência cautelar encontra-se pendente” em Tribunal e “constitui preliminar de ação futura a propor pela ..., contra a autora, de execução específica dos protocolos celebrados entre ambas (…), visando garantir a satisfação do direito invocado pela ... em benefício dos proprietários, de estes adquirirem à autora direitos de edificabilidade para o ... da ...”;
“O mero requerimento da providência cautelar (…) e respectivo registo junto da Conservatória do Registo Predial em que se encontra descrito e inscrito o indicado ... constitui uma limitação inadmissível ao exercício dos direitos da autora, designadamente do seu direito de propriedade, na medida em que, independentemente de qualquer decisão judicial que venha a ser proferida, restringe a disposição do referido ... em benefício da actividade da empresa”;
“O que, inevitavelmente, acarretou, acarreta e continuará a acarretar prejuízos económicos e financeiros relevantes e de gestão da própria empresa”;
“A demolição das obras clandestinas é a única solução que porá definitivamente termo aos danos sofridos pela autora”, sem embargo da reparação integral dos prejuízos sofridos com a desvalorização dos seus imóveis, através de “indemnização em dinheiro na medida do ilícito e do dano verificado”.

5. Como forma de pôr definitivamente termo aos danos que tal ilegalidade lhe tem causado, segundo alega, a autora pede, portanto, a demolição das obras clandestinas realizadas no imóvel da ré, com a consequente reposição nas condições em que se encontrava anteriormente.
Pede, ainda, a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 109.001,98 euros, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos.
Alega que aquelas obras diminuem o valor comercial dos seus imóveis, vizinhos do imóvel da ré, e afectam o exercício da sua actividade comercial de rentabilização dos mesmos, locando-os ou comercializando-os.
Refere também a inobservância de dois protocolos celebrados entre si e a ..., com vista, além do mais, ao estabelecimento de um procedimento que permitisse legalizar as mencionadas construções clandestinas.
Salienta o elevado risco de incêndio resultante das novas áreas edificadas, da impermeabilização de espaços exteriores e da construção de vedações ilegais com ocupação dos caminhos de acesso e evacuação, bem como a alteração do enquadramento global dos seus imóveis no conjunto urbanístico que constitui a Quinta..., o que, segundo alega, afecta e desvaloriza o valor dos imóveis de sua propriedade.
Invoca, ainda, os danos decorrentes da providência cautelar requerida contra si pela ..., e respectivo registo junto da Conservatória do Registo Predial, na qual, além do mais, é pedida a apreensão judicial do ..., de sua propriedade.
Assim, ainda que partindo da afirmação de que a ré realizou obras clandestinas, os danos que a autora alega e cujo ressarcimento pretende – desvalorização dos imóveis e prejuízo da sua actividade económica – são meramente privados.
É todavia sabido que podem ser da competência da jurisdição administrativa e fiscal acções de indemnização propostas por particulares, com fundamento em responsabilidade civil exta-contratual, seja pedindo a reconstituição natural, seja pretendendo uma indemnização em dinheiro, ou ambas, desde que propostas contra pessoas colectivas de direito público (al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), contra os titulares dos respectivos órgãos (al. g) do mesmo n.º 1) ou nas situações previstas na al h), sempre do mesmo n.º 1 (“responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”); não se trata, todavia, de nenhum desses casos, desde logo porque as partes na ação são privadas, destituídas de qualquer poder público, e não é requerida a intervenção de nenhuma entidade administrativa ou de qualquer sujeito abrangido pela citada al. h).

6. Pese embora a autora alegar a violação de normas urbanísticas, quando enquadra juridicamente a ilegalidade dos actos que, segundo afirma, lesaram e continuam a lesar o seu direito de propriedade e a sua actividade comercial, bem como pretender que se declare judicialmente a prática de ilícitos urbanísticos, a verdade é que aquela qualificação e esta declaração se situam no âmbito da causa de pedir alegada, sem autonomia e sem terem a virtualidade de transmutar em relação administrativa o objecto da acção., ou de permitir identificar uma pluralidade de pedidos.
Não repetindo o obstáculo, já referido, da qualidade das partes, a compreensão integral deste objecto – ou seja, do conjunto formado pelo pedido e pela causa de pedir –, mostra (1) que a autora pede uma indemnização (por reconstituição natural e em dinheiro) (2) por lesão dos seus direitos privados de propriedade e de exercício da actividade profissional a que se dedica (3) em consequência da prática de actos que considera ilícitos por infração de normas urbanísticas, de natureza administrativa.
Sobre questão próxima à dos autos debruçou-se o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 16 de Fevereiro de 2005, www.dgsi.pt, proc. n.º 014/04, cujo sumário é o seguinte: «Para a acção em que se pede, com fundamento no direito de propriedade e sua violação por um particular, a demolição de obra por este construída, são competentes os tribunais judiciais, ainda que o Autor convoque, também, normas de direito público».
Estava então igualmente em causa uma pretensão de tutela de interesses privados (“Sendo de natureza privada os interesses que os AA. intentam ver acautelados…”), que os autores, particulares, afirmavam ter sido ofendidos (no caso), parcialmente, pela violação de normas de direito administrativo: “A ampliação do imóvel fabril da R. a menos de 4,80 m da parede sul do prédio dos AA; a elevação para 8 metros de uma parede, trazendo à colação uma norma de direito público, o art.° 13.° nº 2, do Regulamento do PDM, do Município de ..., nem por isso desconvoca a aplicação, sobrepondo-se-lhe, de normas de direito civil. E como bem se salienta pela pena dos AA. não prejudica em nada a competência reclamada dos tribunais comuns o facto de se convocarem, para decisão, normas de direito público, de índole administrativa, entre os fundamentos de direito em que também repousa a decisão sobre direitos privados, visto o preceituado no art.° 96 .°, n.° 1, do CPC, atribuindo à jurisdição cível a assistência da plenitude de poderes para delas conhecer, inclusive dos incidentes, que se têm de compreender com o sentido lato de questões (cfr. Prof. José Alberto dos Reis, CPC, Anotado, 1, 236), nela suscitadas.”
Também o actual Código de Processo Civil, no respectivo artigo 92.º, resolve o problema da (eventual) necessidade de conhecimento, em acções cíveis, de questões prejudiciais de natureza administrativa, por via da suspensão da acção ou da extensão da competência do tribunal, nos termos ali previstos.
Com efeito, a ilicitude invocada como pressuposto da responsabilidade civil que a autora atribui à ré traduz-se na infracção de normas urbanísticas; o preenchimento desse pressuposto implica, portanto, que se provem os actos invocados pela autora e que se conclua pela violação dessas normas.
O pedido de reposição dos imóveis ilicitamente alterados, segundo a alegação da autora, e de indemnização em dinheiro, impõe, assim, que se conclua pela infracção de normas urbanísticas (administrativas) pela ré; no entanto, a declaração dessa violação não é o ou um pedido desta acção: é uma condição da procedência do pedido de indemnização.
A presente acção é uma acção de defesa do direito de propriedade alegado pela autora, bem como da sua actividade comercial. A relação controvertida é uma relação privada. A competência para a sua apreciação cabe à jurisdição comum, não obstante a respectiva procedência implicar a violação de normas administrativas.


7. A presente acção é, portanto, da competência dos tribunais judiciais.

Assim, em conformidade com o artigo 17.º da Lei n.º 91/2009, o Tribunal dos Conflitos acorda em emitir pronúncia no sentido de que cabe aos tribunais Judiciais, concretamente, e de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, ao Juízo Central Cível de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, nos termos do no n.º 2 do artigo 72.º do Código de Processo Civil e dos artigos 81.º, n.º 2, a) e 117.º, n.º 1, a) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário.


Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 19 de Abril de 2022. – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.