Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:041/19
Data do Acordão:01/23/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:I - A competência material do tribunal afere-se em função do modo como o autor configura a acção, essencialmente definida pelo pedido formulado e pela causa de pedir invocada.
II - Se os autores visam primordialmente o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um prédio rústico e, em consequência, a condenação dos réus a devolvê-lo no estado em que se encontrava inicialmente, mostra-se delineada uma acção onde os pedidos formulados correspondem a uma acção de reivindicação, alicerçada em aquisição originária e derivada e em facto presuntivo do direito de propriedade.
III - O conhecimento dessa acção cabe na jurisdição dos tribunais comuns que são igualmente competentes para decidirem dos pedidos cumulados deduzidos com o pedido principal.
Nº Convencional:JSTA000P25476
Nº do Documento:SAC20200123041
Data de Entrada:09/05/2019
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO ESTE, JUÍZO LOCAL CÍVEL DE AMARANTE E O TAF DE PENAFIEL, U.O.1
AUTORA: A...... E MARIDO
RÉU: MUNICÍPIO DE AMARANTE E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DOS CONFLITOS:

1. A....... e marido, B........, residentes em ........, Avenue ........, .........., França, intentaram, no Juízo Local Cível de Amarante, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, contra a Freguesia ........., o Município de Amarante e C............. e mulher, D..........., acção declarativa com processo comum, na qual formularam os seguintes pedidos:
“A) Ser judicialmente declarado que o prédio identificado no artigo 1.º da petição – nele se incluindo a parcela de terreno referida nos artigos, 4.º, 26.º a 30.º, 35.º a 38.º, 40.º e 43.º desta petição – pertence em direito de propriedade aos AA;
B) Serem as Rés condenadas a reconhecer o direito de propriedade dos AA sobre o prédio identificado no artigo 1.º desta petição, com a composição descrita na alínea anterior, inscrito na matriz no artigo 1756 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha 66/...............;
C) Serem os RR condenados a restituir aos AA a totalidade da área desse prédio que ocupam com o articulado estradão, área essa que faz parte do referido prédio e é propriedade dos AA, no estado em que ela se encontrava anteriormente à realização das obras referidas nos artigos 23.º, 24.º e 25.º desta petição;
D) Serem os 1.º e 2.º RR condenados a retirar o estradão que designaram de ................ da relação do património público e toponímico que consta do documento n.º 7 e a apagar de todo o sistema informático da Freguesia e do Município a informação relativamente a tal toponímia;
E) Serem os RR solidariamente condenados a pagar aos AA uma indemnização pelos prejuízos por si sofridos com as obras realizadas no seu prédio e pela ocupação do mesmo durante todo o tempo que durou até agora e durar para o futuro e cujo valor não é possível liquidar neste momento, pelo que se relega a sua liquidação para incidente de liquidação;
F) Serem os RR solidariamente condenados a pagar aos AA a quantia indicada no artigo 45.º desta petição;
G) Serem os RR solidariamente condenados a pagar aos AA a quantia que vier a liquidar-se a título de indemnização por danos morais, alegados no artigo 47.º desta petição;
H) Serem os RR condenados a abster-se de praticar quaisquer actos no prédio pertence aos AA que perturbem o seu direito de propriedade ou a sua posse, nomeadamente realização de obras no prédio dos AA e/ou destruição de obras feitas pelos AA no seu prédio;
I) Ser cada um dos 1.º e 2.º RR condenado no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 300,00 (trezentos euros) por cada dia de atraso na restituição da referida parcela de terreno pertencente ao prédio dos AA contado após o trânsito em julgado da decisão a proferir nestes autos.
Caso assim se não entenda, por se considerar não ser possível a referida e requerida restituição, atento o princípio da intangibilidade da obra pública:
J) Devem os RR ser solidariamente condenados a pagar aos AA uma indemnização pela privação definitiva da parcela de terreno actualmente ocupada pelo estradão correspondente ao valor real e corrente da mesma, de acordo com o seu destino efectivo ou possível, numa utilização económica normal a determinar em execução de sentença;
L) Bem como serem solidariamente condenados a pagar aos AA uma indemnização pelos prejuízos decorrentes da ocupação abusiva da parcela do prédio dos AA com o estradão, desde a data da construção deste e enquanto essa ocupação não cessar, bem como os prejuízos alegados nos antecedentes artigos 46.º e 47.º, sendo estes últimos a liquidar em incidente de liquidação”.
Para fundamentarem estes pedidos, alegaram fundamentalmente:
- Na Conservatória do Registo Predial de Amarante encontra-se inscrito, a favor da A. mulher, a propriedade do prédio denominado “............”, com a área de 9.250 m2, sito no lugar............, freguesia de ........, concelho de Amarante, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1576, o qual adveio à sua propriedade por lhe ter sido adjudicado na partilha a que se procedeu no inventário facultativo n.º 128/82 que correu termos no Tribunal judicial da Comarca de Amarante;
- Os AA., por si e antepossuidores, desde há mais de 30 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e com a convicção que o prédio lhes pertence roçam matos, cortam árvores, cultivam e colhem frutos do mesmo;
- Sobre o aludido imóvel está constituída, por usucapião, uma servidão de passagem a favor do prédio dos terceiros RR. numa faixa de terreno ou caminho bastante estreito e de forte declive;
- Por volta de 2008, sem o seu consentimento, a R. Freguesia, isoladamente ou em conjunto com o R. Município, invadiu o prédio dos AA. e procedeu a obras de alargamento e terraplanagens da referida faixa de terreno, transformando-a num estradão com cerca de 80 metros de comprimento e com uma largura média de 4,30 metros que veio a pavimentar com cubos de granito e onde colocou uma placa contendo a menção “...................”;
- Os AA., no Verão de 2017, colocaram, na entrada do seu prédio, junto à Rua ........, dois pilares em pedra e um cadeado, fechado à chave, vedando o acesso àquele e tapando o referido estradão;
- A 1.ª R. mandou deitar abaixo os aludidos pilares e retirar do local o mencionado cadeado.
Por despacho de 30/1/2019, o Sr. Juiz, considerando que a competência para conhecer da acção cabia aos tribunais administrativos, julgou procedente a excepção da incompetência do tribunal em razão da matéria e absolveu os RR. da instância. Para assim se decidir, entendeu-se que o novo regime introduzido pela Lei n.º 13/2002 alargara “o âmbito da jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvente de pessoas colectivas de direito público, independentemente de saber se elas eram regidas por um regime de direito público ou de direito privado”, pelo que era àquela jurisdição que competia apreciar tudo o que respeitava à responsabilidade extracontratual da Administração Pública.
Após o trânsito em julgado deste despacho e de o processo ter sido remetido ao TAF de Penafiel, foi por este proferida decisão de incompetência material do tribunal, com o fundamento que se estava perante uma acção de reivindicação para cujo conhecimento eram competentes os tribunais judiciais, não invalidando essa conclusão a existência de pedidos indemnizatórios formulados na petição.
Tendo esta decisão também transitado em julgado, foram os autos remetidos a este tribunal para a resolução do conflito negativo de jurisdição.
A digna Magistrada do MP junto deste tribunal emitiu parecer, onde concluiu que a competência deveria ser atribuída aos tribunais comuns.

2. A competência material do tribunal, afere-se em função do modo como o A. configura a acção, pelo que, para determinar essa competência, apenas há que atender aos factos que este articulou na petição inicial, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados (cf., entre muitos, os Ac. deste Tribunal de 20/06/2013, proferido no Conflito n.º 13/13).
Enquanto os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal, exercendo jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (cf. arts. 211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3, ambos da CRP).
No caso em apreço, os AA. invocam, como causa de pedir, o direito de propriedade sobre um prédio rústico, alegando tê-lo adquirido, quer por via originária, quer por via derivada, e disporem da presunção concedida pelo registo predial. Considerando ter sido violado esse direito, peticionam a condenação das RR. a reconhecê-lo e a devolverem o prédio aos AA. no estado em que ele se encontrava antes de as obras de construção do estradão se terem iniciado.
Tomando em consideração a configuração que deram à relação jurídica controvertida, o que os AA. visam primordialmente é o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o terreno e, em consequência, a condenação das RR. a restituí-lo no estado em que se encontrava inicialmente.
Mostra-se, assim, delineada uma acção onde os pedidos formulados correspondem a uma acção de reivindicação (cf. art.º 1311.º, n.º 1, do C.Civil), alicerçada em aquisição originária e derivada e em facto presuntivo do direito de propriedade.
Nestes termos, contrariamente ao decidido pelo Juízo Local Cível de Amarante, as questões decidendas não emergem de uma relação jurídica administrativa, nem os AA. fundamentam os seus pedidos em quaisquer normas de direito administrativo.
É certo que os AA. formulam, cumulativamente ou de forma subsidiária, pedidos indemnizatórios. Porém, trata-se de pedidos que, na economia da acção, não têm autonomia, sendo uma mera decorrência da pretensa violação do direito de propriedade e que, por isso, não relevam para a determinação da competência material do tribunal (cf. os Acs. deste tribunal de 9/07/2014 – Conflito n.º 32/14 e de 22/04/2015 – Conflito n.º 01/15).
Portanto, entendendo-se, em conformidade com a jurisprudência deste tribunal (cf., entre muitos, os Acs. de 19/01/2012 – Conflito n.º 14/11, de 15/05/2013 – Conflito n.º 24/13, de 26/09/2013 – Conflito n.º 32/13, de 18/12/2013 – Conflito n.º 18/13, de 19/06/2014 – Conflito n.º 13/14 e de 7/6/2016 – Conflito n.º 33/15), que a questão a dirimir se traduz na reivindicação da propriedade privada, para que são competentes os tribunais judiciais, deve ser atribuída a estes a competência para conhecer a acção em causa.

3. Pelo exposto, julga-se que a competência para conhecer a acção cabe aos tribunais judiciais.
Sem custas.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2020. - José Francisco Fonseca da Paz (relator) - Maria Olinda da Silva Nunes Garcia - Maria Benedita Malaquias Pires Urbano - José Manuel Bernardo Domingos - Ana Paula Soares Leite Martins Portela - Maria da Assunção Pinhal Raimundo.