Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:010/22
Data do Acordão:06/01/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
TRIBUNAIS JUDICIAIS
ACIDENTE DE TRABALHO
Sumário:I - Atento o disposto no art. 4º, nº 4, al. b), do ETAF, é de concluir, tal com tem vindo a ser decidido por este Tribunal dos Conflitos em casos idênticos, que o acidente em causa nos autos, o qual provocou alegadamente os danos patrimoniais e não patrimoniais que a A., pretende ver ressarcidos com a acção, não pode considerar-se abrangido pelo Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública.
II - Antes devendo ser considerado um acidente de trabalho, nos termos da Lei nº 98/2009, a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P29501
Nº do Documento:SAC20220601010
Data de Entrada:03/28/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 4 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA - UO1.
AUTOR: A……………………….
RÉU: INSTITUTO POLITÉCNICO DE LEIRIA E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1.Relatório

A…………………. intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Central Cível de Leiria, Juiz 4, acção declarativa sob a forma de processo comum contra o Instituto Politécnico de Leiria (IPL) e Seguradoras ……………, SA, pedindo a condenação solidária dos Réus “a pagar à autora todos os danos resultantes do acidente, nomeadamente a quantia de €50.549,60 a título de danos morais e patrimoniais e todas as despesas de tratamento que a autora demonstrar resultantes do mesmo acidente”.
Alegou, em síntese, o seguinte:
A A. foi contratada, através do IEFP, para desempenhar funções administrativas no IPL, no âmbito de um contrato designado “Emprego-Inserção”.
Foi convencionado que a prestação de trabalho seria na Direcção de Serviços de Recursos Humanos dos Serviços Centrais do IPL, onde a A. passou a exercer as tarefas contratadas, correspondentes à categoria profissional de administrativa.
O contrato teve o seu início em 01.04.2014 estando previsto terminar em 31.03.2015.
No dia 06.11.2014, a A., “quando se encontrava no exercício das suas funções e se deslocava no seu local de trabalho dentro das instalações escorregou e, desamparada, estatelou-se no chão com tal violência que teve de ser transportada para o Centro Hospitalar de São Francisco onde ficou internada por lhe ter sido diagnosticado rotura dos isquiotibiais na coxa e contusão da coluna lombar”.
O acidente ocorreu porque naquela ocasião decorria uma acção de limpeza e foram utilizados produtos que deixaram o pavimento escorregadio e retiraram a necessária aderência à circulação de pessoas em normais condições de segurança.
“Tal ação não foi sinalizada e a entidade patronal permitiu ou não evitou que este acidente tivesse ocorrido com as gravosas consequências para a integridade física e moral da autora”.
O IPL havia transferido, parcialmente, a responsabilidade civil decorrente de acidentes pessoais para a Seguradora ………………, que a aceitou, através de um contrato de seguro titulado pela apólice nº 15127972.
Seguidamente, discriminou os danos patrimoniais e não patrimoniais que entende terem, para si, resultado na sequência do acidente.

O Juízo Central Cível de Leiria, Juiz 4, por decisão de 15.11.2017, julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto da acção, tendo absolvido os réus da instância.

A referida Autora intentou em 14.12.2017 no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (TAF de Leiria) acção com o mesmo objecto.
O TAF de Leiria, por decisão de 09.02.2022, também se julgou incompetente em razão da matéria para apreciar e decidir a acção, absolvendo as Entidades Demandadas da instância.
Suscitado oficiosamente a resolução do conflito no TAF de Leiria, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes, notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º. da Lei n.º 91/2019, nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção aos tribunais judiciais.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
Em síntese a A. alega que sofreu um acidente no exercício da prestação de trabalho para desempenhar funções administrativas no IPL, no âmbito de um contrato designado “Emprego-Inserção”, celebrado através do Instituto de Emprego e Formação Profissional.

O presente conflito negativo de jurisdição vem suscitado entre o TAF de Leiria e o Juízo Central Cível de Leiria, Juiz 4, por ambos se terem considerado materialmente incompetentes para apreciar o pedido do autor.
Entendeu o Juízo Central Cível de Leiria, Juiz 4, na sentença proferida em 15.11.2017, nomeadamente, que: «(…), no caso dos autos a autora configurou a sua pretensão da seguinte forma, celebrou com o réu IPL, um “contrato de emprego-inserção”, com início 01 de abril de 2014 e termo em 31 de março de 2015, no domínio do qual se encontrava a desempenhar as suas funções de trabalho, quando se deu o acidente que mais detalhadamente descreveu e que lhe originou lesões físicas.
Conforme melhor emerge do teor desse contrato – documento nº 1 junto com a petição inicial – e foi salientado pelo réu IPL -, trata-se de um contrato celebrado no âmbito da Medida Contrato Emprego-Inserção, disciplinada pela Portaria nº 128/2009, de 30.01, na redação que lhe foi dada pela Portaria n.º 164/2011, de 18.01».
Considerando, atenta a forma como a autora configurou a acção, não se estar no âmbito de uma situação de mera responsabilidade civil extracontratual, perfilhou o entendimento de que se estava face a uma relação jurídica administrativa, seguindo o entendimento perfilhado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04.12.2014, no processo nº 294/13.1TTEVR.E1 que citou e no qual se expendeu: «Na realidade tais “contratos emprego-inserção” não se afastam muito dos anteriormente designados por “acordos de atividade ocupacional” (cujo regime mais recente estava estabelecido na Portaria nº 192/96 de 30/05, que foi revogada precisamente pela Portaria n.º 128/2009 de 30 de Janeiro atrás citada – vide artº 18º desta Portaria) relativamente aos quais o STJ entendeu pertencer à jurisdição administrativa o conhecimento dos litígios deles emergentes (vide o acórdão de 14/11/2001, Procº nº 015888, …).
Perante o que se expende e vista a alteração introduzida na matéria de facto estamos em condições de concluir que a relação jurídica estabelecida entre as partes reveste características de uma relação administrativa cujos conflitos são dirimíveis perante o foro administrativo.».
Concluiu, assim, a sentença, que: «Pelos mesmos fundamentos, também na situação sub judice se considera que a competência para decidir o litígio terá de caber aos tribunais administrativos, sendo que, a incompetência material dos tribunais judiciais para conhecer do pedido formulado contra o IPL se estende à ré seguradora, desde logo porquanto – tendo a sua responsabilidade sido alicerçada no contrato de seguro – esta apenas poderá responder na medida da responsabilidade do seu segurado, ao que acresce que, por aplicação da norma do artigo 4º, nº 2, do ETAF, tendo sido formulado pela autora pedido de condenação solidária de ambos os réus , a componente jurídico-pública deste litígio a todos se propaga, atribuindo aos tribunais da jurisdição administrativa a competência para conhecer da responsabilidade dos entes privados.»

Por sua vez, o TAF de Leiria referiu, nomeadamente, o seguinte: «(…), a Autora pretende ser ressarcida pelos danos provocados pelo acidente que alega ter sido vítima e que terá ocorrido quando, no exercício das suas funções se deslocava no seu local de trabalho dentro daquelas instalações, escorregou, em local onde estavam a ser efetuados serviços de limpeza, e sofreu uma queda.
Alega que o vínculo estabelecido com a Entidade Demandada Instituto Politécnico de Leiria foi firmado através da outorga de um contrato de emprego-inserção.
Compulsado o contrato, verifica-se que o mesmo consiste num “Contrato Emprego-Inserção”, celebrado no “âmbito da medida contrato-emprego inserção”, regulada pela Portaria nº 128/2009, de 30.01, entre a Autora e a Entidade Demandada Instituto Politécnico de Leiria, para as funções na área administrativa, no âmbito do Projeto por si [Autora] organizado e aprovado em 27/01/2014, pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional, IP”, com o direito a receber uma retribuição denominada “bolsa mensal complementar”, subsídio de alimentação, despesas e seguro, e celebrado a termo, com a fixação de direitos e deveres laborais para ambas as partes (cfr. clausulado do contrato, de fls 62 a 67 do processo administrativo incorporado nos autos). (…).»
Entendeu com fundamento na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, no Ac. de 31.01.2019, Proc. nº 040/18, em situação semelhante e que citou, [referindo ainda o decidido reiteradamente por este Tribunal dos Conflitos, v.g., nos acs. de 18.10.2021, Proc. nº 013/21, de 31.01.2019, Proc. nº 040/18, e ac. do STJ de 19.05.2021, Proc. nº 2953/17.0T8BCL.G1.S1, e acs. deste Tribunal dos Conflitos nele indicados], que, o acidente em causa nos autos não pode ser qualificado como acidente em serviço, nos termos constantes do DL nº 503/99, de 20/11, estando excluída da competência dos tribunais administrativos a competência para apreciação do litígio, atenta a previsão do art. 4º, nº 4, al. d) do ETAF, cabendo tal competência aos tribunais da jurisdição comum (art. 64º do CPC).
A questão suscitada nos autos é, pois, a de saber qual a jurisdição competente quando está em causa um acidente sofrido por um trabalhador no âmbito de execução de um “contrato emprego-inserção”, sendo a pretensão formulada a do ressarcimento dos danos sofridos em consequência desse acidente.
Questão que já foi apreciada pelo Tribunal dos Conflitos, por diversas vezes, sendo uniforme a posição assumida (cfr. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos nº 15/17, de 19.10.2017, nº 53/17, de 25.01.2018, nº 40/18, de 31.01.2019, nº 42/18, de 28.02.2019, nº 15/19, de 30.01.2019 e nº 37/19, de 6.02.2019, 50/2029, 51/2019, 52/2019 de 25.06.2020, nº 44/19, de 03.11.2020, n.º 8/20, de 27.04.2021 e n.º 31/20, de 08.07.2021).
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º, nº 1, da CRP).
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do art. 212º da CRP, em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Deste último preceito importa reter o disposto na alínea b) do nº 4 que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios “decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”.
A Portaria nº 128/2009, de 20/1 “regulamenta as medidas 'Contrato emprego-inserção' e 'Contrato emprego-inserção+', através das quais é desenvolvido trabalho socialmente necessário” (cfr. art. 1º).
Da celebração do contrato emprego-inserção não decorre o estabelecimento de qualquer vínculo de trabalho em funções públicas nos termos da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP).
Efectivamente, o art. 6º da LTFP (Lei nº 35/2014, de 20/6), prevê as modalidades de prestação de trabalho em funções públicas que se traduzem no vínculo de emprego público e no contrato de prestação de serviço. E, conforme o nº 3 deste preceito, as modalidades do vínculo de emprego público são o contrato de trabalho em funções públicas, a nomeação e a comissão de serviço. Por sua vez, o art. 10º dispõe que “O contrato de prestação de serviço para o exercício de funções públicas é celebrado para a prestação de trabalho em órgão ou serviço sem sujeição à respetiva disciplina e direção, nem horário de trabalho” e o n.º 2 que as suas modalidades são o contrato de tarefa e o contrato de avença.
Ora, o DL n.º 503/99, de 20/11 (regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública) determina no seu artigo 2.º que “O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado” (nº 1) e que “O disposto no presente decreto-lei é também aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações regionais e autárquicas e nos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respectivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes” (nº 2). Ao que acresce que “O disposto no presente decreto-lei é ainda aplicável aos membros dos gabinetes de apoio quer dos membros do Governo quer dos titulares dos órgãos referidos no número anterior” (nº 3).
Por outro lado, nos termos do nº 4, “Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, devendo as respectivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código”.
Por sua vez, de acordo com o nº 5, “O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação do regime de protecção social na eventualidade de doença profissional aos trabalhadores inscritos nas instituições de segurança social”. Por último, dispõe o n.º 6 que “As referências legais feitas a acidentes em serviço consideram-se feitas a acidentes de trabalho”.
Assim, não pode o acidente em apreço considerar-se abrangido pelo regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública.
Já a Lei n.º 98/2009, de 4/9, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, prevê de forma ampla o seu âmbito de aplicação no que respeita a acidentes de trabalho e é parte integrante do regime do contrato de trabalho consagrado no Código do Trabalho. O art. 284º deste Código remete a regulamentação da prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais para “legislação específica”, que é justamente a Lei n.º 98/2009.
Na situação em apreço, a relação estabelecida entre o IPL e a trabalhadora cabe na previsão normativa do art. 3º, de acordo com a qual “O regime previsto na presente lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos” (nº 1) e “Quando a presente lei não impuser entendimento diferente, presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços” (nº 2).
E que de acordo com o nº 3 do referido preceito: “Para além da situação do praticante, aprendiz e estagiário, considera-se situação de formação profissional a que tem por finalidade a preparação, promoção e actualização profissional do trabalhador, necessária ao desempenho de funções inerentes à actividade do empregador”.
A entidade por conta de quem o trabalho é prestado é obrigada a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na Lei nº 98/2009 para “entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, conforme o art. 79º, nº 1.
O acidente em causa nos autos é susceptível de ser considerado como um acidente de trabalho, nos termos dos arts. 3º, 8º e 9º, da Lei nº 98/2009, de 4/9, já que é subsumível ao conceito de acidente de trabalho previsto no art. 8º, nº 1, segundo o qual “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de ganho ou a morte”.
Assim, e atento o disposto no art. 4º, nº 4, al. b), do ETAF, é de concluir, tal com tem vindo a ser decidido por este Tribunal dos Conflitos em casos idênticos, que o acidente em causa nos autos, o qual provocou alegadamente os danos patrimoniais e não patrimoniais que a A., pretende ver ressarcidos com a acção, não pode considerar-se abrangido pelo Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública. Antes devendo ser considerado um acidente de trabalho, nos termos da Lei nº 98/2009, razão pela qual a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.

Pelo exposto, acordam em atribuir a competência aos tribunais judiciais [Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Central Cível de Leiria, Juiz 4] para conhecer da presente acção.
Sem custas.

Lisboa, 1 de Junho de 2022. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.