Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:019/21
Data do Acordão:03/22/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL DE ENTIDADES PÚBLICAS
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Sumário:I – Incumbe aos Tribunais Judiciais o julgamento de uma acção instaurada por depositante em banco intervencionado contra aquele banco e um meio de comunicação privado, sendo pedida a condenação solidária de todos os Réus, em que sejam imputados ao primeiro a violação dos deveres inerentes ao exercício da actividade bancária ou à mediação de títulos mobiliários, e em que que o meio de comunicação é demandado por ter alegadamente despoletado com as suas notícias irresponsáveis da resolução eminente do Banco 1..., a corrida aos depósitos, que veio a contribuir para a própria Resolução do banco.
II – Porém, incumbe à jurisdição administrativa o conhecimento do mesmo pedido, enquanto formulado contra o Estado e o Banco de Portugal, o primeiro pela alegada violação do contrato de confiança assumido com os portugueses de que o Estado permaneceria como acionista largamente maioritário do Banco 1... e o segundo por alegado incumprimento dos deveres de supervisão e vigilância.
Nº Convencional:JSTA000P30733
Nº do Documento:SAC20230322019
Data de Entrada:05/12/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BRAGA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE BRAGA – JUIZ 3, E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA, UO1
AUTOR: AA E OUTROS
RÉU: BANCO 1..., SA, O BANCO DE PORTUGAL, ESTADO PORTUGUÊS E MINISTÉRIO DAS FINANÇAS E A..., SA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Conflito nº 19/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA, BB e CC, identificados nos autos, intentaram no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (TAF de Braga), acção comum contra o Banco 1..., SA, o Banco de Portugal, o Estado Português e Ministério das Finanças e a A..., SA, formulando os seguintes pedidos:
A) os RR Banco 1..., Estado e BdP, solidariamente condenados a reembolsar cada um dos AA:
a) de todos os valores por si despendidos na aquisição das ações identificados no item 4º desta PI e que no seu total ascendem a €58.248,00
b) de todas as despesas, danos patrimoniais sofridos por esses mesmos AA, ainda não concretamente apurados e a apurar em liquidação de sentença, mas em montante nunca inferior a 10.000,00€
c) Nos danos não patrimoniais sofridos e para cuja compensação são necessários €2.000,00 para cada um dos AA.
B) Subsidiariamente deve o Réu BdP ser condenado pelas falhas graves de supervisão e controlo comportamental e prudencial do Banco 1..., que permitiu que o Banco 1... e os seus funcionários violassem de foram sistemática e grave os deveres de intermediário financeiro causadoras dos prejuízos aos AA identificados nas al a), b, e c) de A)
C) Subsidiariamente devem os RR Estado e BdP, ser solidariamente condenados pela violação do contrato de confiança assumido com os portugueses e em particular com os AA de que o Estado permaneceria como acionista largamente maioritário do Banco 1... pelo menos até Janeiro de 2018, no pagamento aos AA dos prejuízos identificados nas al a), b, e c) de A)
D) Subsidiariamente deve ser condenada a Ré A... que despoletou com as suas notícias irresponsáveis da resolução eminente do Banco 1..., a corrida aos depósitos, que veio a contribuir para a própria Resolução; no pagamento aos AA identificados nas al a), b, e c) de A)
Caso assim se não decida;
Devem, todos os RR ser subsidiariamente condenados, cada um deles de acordo com a proporção de responsabilidade que vier a ser determinada em concreto no pagamento aos Autores de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais identificados nas al a), b, e c) de A) deste petitório”.
Alegam, em síntese, que à data da Resolução aplicada ao Banco 1... eram accionistas do mesmo por terem comprado acções no aumento de capital inserido no Plano de Recapitalização, sob conselho e pressão dos funcionários do mesmo banco. Os Autores argumentam que não eram investidores qualificados, não foram elucidados do risco que representava o investimento em acções e que, além disso, tal investimento não era adequado ao seu perfil. Por isso, defendem que o Réu Banco 1... violou os deveres de informação, de adequação do investimento e da prevalência dos interesses dos clientes a que, como intermediário financeiro, estava legal e contratualmente vinculado, pelo que deve ser responsabilizado pelos prejuízos em que os Autores incorreram.
E, relativamente aos Réus Banco de Portugal e Estado Português, deverão estes ser responsáveis solidariamente com o Banco Réu, ou pelo menos subsidiariamente, pois violaram o contrato de confiança com os Autores ao tomarem a medida de Resolução ao Banco 1..., sendo que o Réu Banco de Portugal é ainda responsável por falhas graves de supervisão comportamental e prudencial.
Finalmente, a actuação da Ré A... ao publicitar as notícias da eminente resolução do Banco 1... desencadeou uma corrida ao levantamento dos depósitos, a qual foi uma causa da própria medida de Resolução, pelo que também é responsável pelos danos sofridos pelos Autores.
Mais alegam que reclamaram os seus créditos no processo de liquidação do Réu Banco 1..., a correr termos no Juízo de Comércio de Lisboa.
Por decisão de 03.02.2021 o TAF de Braga declarou-se materialmente incompetente para conhecer do objecto da acção, absolvendo os Réus da instância, concluindo “que os tribunais administrativos não são competentes para conhecer da presente ação na medida em que, desde logo, a competência em razão da jurisdição se afere pela forma como os Autores configuraram a ação. Assim, tendo os Autores configurado a ação como dizendo respeito a relações contratuais e pré-contratuais, não se mostra preenchida a alínea e), do n.º 1, do art. 4.º do ETAF.
Ademais, ainda que se entendesse que, pelo modo como os Autores configuraram a ação, a mesma respeita a responsabilidade civil extracontratual, não se encontram preenchidas as alíneas f), g) e h), do n.º 1, do art. 4.º do ETAF. Acresce que também não se mostra preenchida a previsão normativa do art. 4.º, n.º 2, do ETAF, porquanto os Autores não imputam um facto concreto gerador da responsabilidade a um ente público ou ente privado sujeito a disciplina de direito administrativo e tal norma exige-o”.
Em acção anteriormente intentada por estes e (outros) Autores contra estes (e outros) Réus, o Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Braga – Juiz 3 [Proc. 1274/19.9T8BRG], por decisão de 06.12.2019, julgou-se incompetente em razão da matéria, por considerar que “uma vez que os Autores optaram por formular um pedido de condenação dirigido a todos os Réus, em regime de solidariedade, de acordo com o disposto no artigo 4º nº 2 do E.T.A.F. a jurisdição administrativa é competente instruir e julgar todo o litígio, pois este normativo atribui-lhe competência para dirimir os litígios em que sejam, conjunta e solidariamente, demandadas entidades públicas e particulares, como é o caso, por um lado, dos Réus ESTADO PORTUGUÊS – MINISTÉRIO DAS FINANÇAS, BANCO DE PORTUGAL e FUNDO DE RESOLUÇÃO e, por outro, dos Réus solidários Banco 1..., S.A., B..., S.A., Banco 2... S.A. e A... S.A.”.
Os Autores pediram a resolução do conflito negativo de jurisdição no TAF de Braga, sendo o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Já neste Tribunal dos Conflitos e em resposta a notificação nos termos do disposto no nº 3 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, o Banco de Portugal pronunciou-se pela competência da jurisdição administrativa.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência para o conhecimento do litígio aos tribunais administrativos.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
A questão que cumpre apreciar e decidir é apenas a de definir se a competência em razão da matéria para a apreciação do litígio da presente acção caberá aos tribunais da jurisdição comum, ou aos tribunais da jurisdição administrativa. Questão que não é nova, existindo jurisprudência constante e recente deste Tribunal dos Conflitos em situações em tudo semelhantes à dos presentes autos [cfr. v.g., os acórdãos de 23.05.2019, Conflito nº 39/18, que na sua fundamentação remete para os acórdãos de 14.02.2019, proferidos nos Conflitos nºs 31/18 e 46/18 e ainda de 19.06.2019, Conflito nº 05/19, de 25.06.2020, Conflito nº 59/19 e de 3.11.2020, Conflito nº 16/20]. Assim, e porque entendemos que a referida jurisprudência é transponível para o caso concreto, remeteremos para o que se escreveu no Conflito nº 046/18, que assumimos como nosso:
«(…) Portanto, no caso em apreço, da análise do pedido formulado na acção e das respectivas causas de pedir resulta que o A acciona a responsabilidade civil contratual e extracontratual das 1ª a 3ª RR, pelo que o conhecimento do pedido contra estas dirigido, incidindo sobre relações inequivocamente privatísticas, compete à jurisdição comum, por não dever nem poder ser deduzido na jurisdição administrativa. Conclusão que se estendeu à 3ª R (Banco 3... SA) porque o A, embora sem a envolver na prática de qualquer dos factos ilícitos em que fundamenta a constituição da obrigação de indemnizar das duas primeiras RR, estrutura a respectiva responsabilidade na sua alegada qualidade de sucessora nos direitos e obrigações da 1ª R (Banco 4... SA).
Quanto aos demais RR, Banco de Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e Fundo de Resolução, são todos pessoas colectivas de direito público, como resulta do art. 1º da Lei Orgânica do primeiro (Lei 5/98, de 31/1), do art. 1º dos Estatutos da segunda (DL 5/2015, de 8/1) e, quanto ao último, do art. 153º-B do RGICSF (DL 298/92, de 31/12, com a actualização da Lei 23-A/2015, de 26/03).
Ora, relativamente às entidades públicas BdP e CMVM, dada a configuração da acção feita pelo autor, suscita-se, claramente, a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, radicando os danos que, alegadamente, o mesmo sofreu, e que fundam os direitos que pretende exercer - consistentes no ressarcimento de tais danos – em actos cometidos no exercício de funções públicas ou na prossecução de um interesse público, uma vez que, sem a invocação de qualquer relação contratual com eles estabelecida se fundamentam na falta de cumprimento dos deveres - essencialmente de supervisão - que sobre eles impendiam tendo em conta as funções determinadas pela lei.
(…)
É certo que, como supra foi relatado, o A formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais. Contudo, não enformou os fundamentos dessa sua pretensão com qualquer espécie de intervenção das entidades públicas nos factos ilícitos imputados às 1ªs RR, pelo que não ressuma da PI o fundamento previsto no citado nº 2 do art. 4º do ETAF para deverem ser demandados conjuntamente todos os RR, porquanto não se vê em que medida aqueles entes poderiam estar ligados por vínculos jurídicos de solidariedade com as demais RR (particulares), designadamente por terem concorrido em conjunto com estas para a produção dos mesmos danos (Mário Aroso de Almeida [Em “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 3ª ed., pp. 253-254] refere que aquela regra procurou obviar a dificuldades que se vinham suscitando «quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de ações de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio».).
Como uniformemente foi ponderado nos arestos deste Tribunal precedentemente referenciados, a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do artigo 513° do CC, só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao Tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos - para os poder vir a demonstrar - «de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária» [cit. acórdão de 22-03-2018 (p. 56/17)].»
Em suma, no caso concreto, a configuração da acção feita pelos Autores mostra que, relativamente aos 1º e 4º Réus, a questão em que se funda a obrigação de indemnizar decorre da violação de deveres contratuais e da prática de factos tidos por ilícitos e é apenas de direito privado, já quanto aos 2º e 3º Réus a obrigação de indemnizar funda-se no incumprimento dos deveres de supervisão bancária, na prestação de informações erróneas ao mercado e nos actos cometidos no contexto da medida de resolução aplicada ao Banco 1..., suscitando-se a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público por actos cometidos no exercício de funções públicas ou no prossecução do interesse público.
Sublinhe-se que, como se escreveu no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 17 de Maio de 2018, proc. nº 052/17, para ser aplicável o nº 2 do artigo 4º do ETAF, norma que é invocada para efeitos de atribuição da competência à jurisdição administrativa, é necessário “que na petição inicial tenham sido articulados factos que permitam, primo conspectu, fundamentar a imputação de responsabilidade solidária às entidades públicas e particulares que nela são demandadas. Não basta, para tal, a mera invocação, «oca de factos», dessa mesma responsabilização solidária”.
Pelo exposto, acordam em atribuir a competência material aos tribunais judiciais - Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Braga, Juiz 3 -, para conhecer do objecto da presente acção proposta contra o Banco 1... e a A..., SA, e aos tribunais administrativos – TAF de Braga, quanto aos Réus Banco de Portugal e Estado Português.
Sem custas.

Lisboa, 22 de Março de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.