Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01297/20.5T8PDL-A.L1-A.S1
Data do Acordão:01/18/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Implicando a apreciação da causa de pedir invocada a avaliação da conduta pré-contratual de um município, enquadrável na alínea e) do n.º 1, do art. 4.º do ETAF, cabe à jurisdição administrativa a competência para conhecer de uma acção na qual se pede a declaração de nulidade do contrato de compra e venda, pelo município, de participações sociais de uma empresa municipal.
Nº Convencional:JSTA000P29060
Nº do Documento:SAC2022011801297
Recorrente:BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.
Recorrido 1:PONTA DELGADA – MUNICÍPIO
Recorrido 2:ALIXIR CAPITAL (LISBON), LDA.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:


1. Em 15 de Junho de 2020, o Banco Santander Totta, S.A. instaurou no Tribunal Judicial da Comarca ... uma ação declarativa de condenação contra o Município de Ponta Delgada e Alixir Capital (Lisbon), Lda, pedindo a declaração de nulidade do contrato de compra e venda de ações de Azores Parque, celebrado entre as rés em 11 de Março de 2019:
(i) Por se tratar de negócio contrário à lei, nulo nos termos do disposto no artigo 294.º do Código Civil;
(ii) Por se tratar de um negócio com conteúdo contrário à lei e ofensivo dos bons costumes, nulo nos termos do disposto no artigo 280.º do Código Civil;
(iii) Por se tratar de um negócio com o fim contrário à lei e aos bons costumes, nos termos do disposto nos artigos 281.º e 398.º do Código Civil;
(iv) Por se tratar de um negócio simulado, nulo nos termos do artigo 240.º do Código Civil, sendo que o negócio encoberto é igualmente nulo nos termos do disposto nos artigos 280.º e 281.º do Código Civil, por ser contrário à lei e aos bons costumes, e nos termos do disposto no artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais.”.
Alixir Capital (Lisbon), Lda contestou, excepcionando a excepção de litispendência e impugnando factos alegados.
Também contestou o Município de Ponta Delgada. Suscitou a questão da incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, para conhecer da ação.
A autora respondeu às exceções, concluindo pela respetiva improcedência.
No despacho saneador, o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Local Cível de Ponta Delgada - Juiz 4, julgou-se competente em razão da matéria.
Para tanto, e em síntese, considerou que a acção não respeita a nenhuma relação jurídica administrativa, tratando-se antes de uma relação jurídica de direito privado, na qual ninguém interveio no exercício de ius imperii. Observou ainda não estar em causa a apreciação da validade de atos pré-contratuais, uma vez que a autora não impugnou, directa ou indirectamente, as deliberações camarárias que estiveram na base do negócio impugnado, mas apenas o acto de venda em si, que considera nulo, por contrário à lei, ofensivo dos bons costumes ou simulado.
Por fim, afirmando que o contrato não assume a natureza de contrato administrativo, nos termos previstos no artigo 280.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos (CCP), concluiu que não se verifica, no caso, qualquer impugnação, directa ou indirecta, de actos administrativos, o que subtrai a matéria à previsão do artigo 4.º, n.º 1, al. d), do ETAF.
Inconformado, o Município de Ponta Delgada interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação ..., sustentando a incompetência material dos tribunais comuns.
Alegou, em suma, não se tratar de uma relação de direito privado, por estar em jogo a alienação de uma participação social detida em empresa do sector empresarial local, levada a cabo por um ente público dotado de ius imperii, em cumprimento de normas decorrentes do CCP e da Lei n.º 50/2012, de 31 de Agosto, no âmbito de um procedimento de natureza pública.
Argumentou, ainda, estar-se perante um acto administrativo de execução de deliberações da Câmara Municipal e da Assembleia Municipal de Ponta Delgada.
O autor Banco Santander Totta, S.A. contra-alegou, pronunciando-se, além do mais, no sentido de que a competência material cabe aos tribunais comuns.
Alegou, em síntese, que tratando-se da venda das participações sociais de uma empresa municipal pelo Município de Ponta Delgada a uma sociedade comercial por quotas, na qual nem o comprador é uma entidade pública, nem os actos que foram praticados correspondem ao exercício de poderes públicos, ou poderes de autoridade, regulados pelo direito administrativo, não se aplica o disposto no art. 4.º, n.º 1, al. d), do ETAF.
Por acórdão de 6 de Julho de 2021, o Tribunal da Relação ... julgou a apelação procedente e, atribuindo a competência para a apreciação da causa aos Tribunais Administrativos, declarou o Juízo Local Cível ... do Tribunal Judicial da Comarca ... absolutamente incompetente, em razão da matéria.
O Tribunal da Relação entendeu: que, ainda que de natureza privada, o contrato de compra e venda celebrado entre os réus seguiu, em concreto, o regime da venda em hasta pública; que, ainda que a autora não tenha impugnado directamente os actos administrativos pré-contratuais, “é evidente que ao invocar a violação de norma imperativa por banda do Município de Ponta Delgada fê-lo convocando as normas de direito público emergentes do RJAELPL a que aquele estava sujeito para pretender fazer valer a invocada nulidade por ofensa à lei ou em fraude à lei, o que implica que se avalie e pondere toda a actividade do município nessa fase pré-contratual, o que remete para análise das deliberações tomadas pela assembleia municipal e pela câmara municipal, não propriamente quanto ao formalismo adoptado mas necessariamente quanto aos pressupostos que determinaram a tomada de tais deliberações, e também para efeitos da verificação de eventual simulação por parte dos contraentes”; que, ainda que assim se não entendesse, sempre haveria que ter presente que a al. e) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF submete à jurisdição administrativa os contratos, administrativos ou não, efectivamente regidos por um procedimento pré-contratual de direito público, como foi o caso.
Em 27 de Julho de 2021, o Banco Santander Totta interpôs “recurso para fixação definitiva da competência”, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 101.º, do CPC.
Nas alegações que apresentou, formulou as conclusões seguintes.
1. O presente recurso é admissível, nos termos e para os efeitos do disposto no n.° 2, do artigo 101.° do CPC e alínea c), do artigo 3.°, da Lei n.° 91/2019, de 4 de Setembro, já que o Acórdão Recorrido (í) foi proferido por um Tribunal da Relação, (ii) julgou absolutamente incompetente o Juízo Local Cível de Ponta Delgada do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores e (iii) julgou competentes os Tribunais Administrativos.
2. Salvo o devido respeito, quatro grandes motivos determinam a improcedência dos argumentos invocados pelo Tribunal a quo, devendo, em consequência, ser o Acórdão Recorrido revogado e substituído por uma outra decisão, que declare absolutamente competente o Tribunal Judicial da Comarca ..., para dirimir o litígio entre as partes.
3. Em primeiro lugar, a alienação de bens em hasta pública não deve sequer ser considerada uma norma sobre contratação pública.
4. A hasta pública não corresponde a nenhum dos procedimentos de contratação pública previstos no artigo 16.° do Código dos Contratos Públicos.
5. Aliás, a venda de bens nunca foi considerado um procedimento de contratação pública, sendo que o regime previsto nos artigos 266.°-A a 266.°-C do Código dos Contratos Públicos não regula o procedimento a seguir.
6. Uma hasta pública designa-se por "pública" porque é um convite dirigido ao público em geral, e não porque é um procedimento de direito público; aliás, a hasta pública é um conceito do direito processual civil.
7. Aquilo que o legislador pretendeu fazer foi passar a regular o regime de alienação de bens móveis das entidades públicas, o que poderia ter feito através de diploma avulso: não existia, antes da aprovação do Decreto-Lei n.° 111-B/2017 um diploma que regulasse, de forma abrangente e integral, o regime de alienação de bens móveis de todas as entidades públicas.
8. Em segundo lugar, e ainda que a hasta pública devesse ser considerado um procedimento de contratação pública (sem conceder), existe lei especial que afasta expressamente a venda de participações sociais de empresas locais ao regime da contratação pública.
9. O legislador optou por afastar expressamente quaisquer normas de contratação pública na alienação de participações em empresas locais, tanto que que o artigo 63.°, da Lei n.° 50/2012, de 31 de Agosto, refere que tal alienação é feita nos termos da lei geral»: lei geral é, necessariamente, a lei civil e comercial, que inclui a venda a outros sócios (desde logo por força de acordos parassociais ou opções de compra), a venda bolsa, a venda por força de aquisições tendentes ao domínio total prevista no artigo 490.° do CSC, etc.
10. Com efeito, aquando da Lei n.° 50/2012 que remeteu a alienação das participações sociais para a lei geral, a venda de bens móveis estava expressamente excluída do Código dos Contratos Públicos.
11. O exposto não sofre qualquer alteração pelo facto de, em concreto, o Contrato de Compra e Venda de Participações Sociais ter sido precedido de um procedimento que o Município intitulou de "hasta pública".
12. Se lhe tivesse chamado convite ao público o problema não se colocaria?
13. A verdade é que a remissão que consta do artigo 63.°, da Lei n.° 50/2012, de 31 de Agosto afasta, específica e expressamente, as normas sobre (pré)contratação pública, sem prejuízo de o vendedor poder, como qualquer privado pode, sujeitar a venda a um regime igual ou semelhante ao previsto no Código dos Contratos Públicos.
14. No caso de alienação das participações de empresa locais, a lei não submeteu a alienação ou admitiu que fosse submetida a um procedimento de formação regulado por normas de direito público: bem pelo contrário, a lei estabeleceu que a alienação seria feita nos termos da lei geral, o que é precisamente o contrário dos termos da lei especial (da contratação pública ou outra). Por esse motivo, o caso, pura e simplesmente, deixa de ser enquadrável na alínea e), do n.° 1, do artigo 4.°, do ETAF
15. Em terceiro lugar, admitir a posição sufragada pelo Tribunal a quo é admitir que os Municípios poderiam livremente escolher, em cada processo de compra e venda, a jurisdição – judicial ou administrativa – a que se submeteria cada um desses contratos.
16. É que se o Município ficasse sujeito à jurisdição comum ou administrativa conforme seguisse (ou não) uma qualquer forma de alienação prevista no CCP, então, perante cada contrato, o Município poderia simplesmente optar pela jurisdição a que pretendia ficar submetido, conforme o nome que desse ao procedimento adoptado: se lhe chamasse negociação particular, estava a seguir um regime de direito privado; se lhe chamasse ajusto directo, estava a adoptar um procedimento de contratação pública...
17. Por fim, e em quarto lugar, e não tendo sido posto em causa pelo ora Recorrente o procedimento pré-contratual, não procede o argumento segundo o qual, no caso concreto, especial relevância deve ser dada à actuação do ora Recorrido Município de Ponta Delgada, durante a fase pré-contratual que precedeu a celebração do Contrato de Compra e Venda de Participações Sociais.
18. Na realidade, o Recorrente pediu (apenas) que fosse declarada a nulidade do Contrato de Compra e Venda de Participações Sociais, pelos seguintes motivos: (i) por se tratar de um negócio contrário à lei; (ii) por se tratar de um negócio com conteúdo contrário à lei e aos bons costumes; e (iii) por se tratar de um negócio simulado.
19. Significa isto que não estão em causa vícios relativos ao procedimento da venda ou de quaisquer normas de contratação ou pré-contratação pública, mas antes vícios relativos ao objecto e conteúdo do negócio em si: ou seja, ao Recorrente pouco lhe importa se foram ou não seguidos determinados procedimentos do CCP; o que o Recorrente alega fundamentalmente é que a alienação não podia de todo ser feita (porque o Município estava obrigado a internalizar), independentemente de qual o procedimento escolhido para promover a venda (se por contactos pessoais, se por propostas em carta fechada, se por leilão, se por negociação particular, etc).
20. Deste modo, preponderância deve ser dada ao princípio do dispositivo, o qual determina que, por um lado, é o próprio pedido que vincula, define e limita os poderes de cognição do Tribunal e, por outro lado, a instância deve manter-se estável a partir da citação do réu.
21. Com efeito, sendo certo que a competência material do tribunal é aferida consoante o pedido formulado pelo autor e respectiva causa de pedir, e não tendo o ora Recorrente posto em causa o procedimento pré-contratual (nem impugnado as deliberações camarárias), então, resta concluir pela improcedência do argumento segundo o qual especial relevância deve ser data à actuação do ora Recorrido Município de Ponta Delgada, durante a fase pré-contratual.

O Município de Ponta Delgada apresentou contra-alegações, sustentando a decisão recorrida.

2. Vem provado o seguinte, conforme se transcreve do acórdão recorrido:

1. O Programa e Condições Gerais para Alienação e Arrematação em Hasta Pública da participação social na sociedade Azores Parque - Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais, E. M., S. A. consta de documento emitido pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, do qual resulta que a hasta pública tem por objecto a venda de 102000 acções, com o valor nominal de 510 000,00 €, que correspondem à totalidade da participação social que a Câmara Municipal de Ponta Delgada detém na sociedade comercial Azores Parque e representam 51% do respectivo capital social, sendo o valor para licitação o que resultar da proposta dos concorrentes, em função da avaliação que cada concorrente efectue sobre o valor de mercado das participações, devendo a proposta conter, entre o mais, a declaração de aceitação do caderno de encargos e ser instruída com um plano estratégico de desenvolvimento do Azores Parque, para um período de 10 anos, sujeito a avaliação por parte da Câmara Municipal de Ponta Delgada a cada período de cinco anos, e de onde consta ainda a constituição da comissão da hasta pública, a data e local para a sua realização e os critérios para a adjudicação (documento n.° 3 junto com a contestação - Ref. Elect. ... dos aulosprincipais).
2. Conforme acta da Sessão Ordinária de 29 de Novembro de 2018 da Assembleia Municipal de Ponta Delgada foi deliberada a aprovação, nos termos do disposto no n.° 1 do art. 61°, conjugado com o n.° 1 do art.0 63°, ambos da Lei n.° 50/2012, de 12 de Setembro, da alienação dos 51% do capital social da empresa Azores Parque, EM, S. A. detido pelo Município de Ponta Delgada, em procedimento de hasta pública, e ainda o respectivo programa, condições gerais e constituição do júri, tal como proposto (cf documento n.º 18 junto com a petição inicial— Ref. Elect. ... dos autos principais).
3. O procedimento de alienação e arrematação referido em 1. foi objecto de publicitação por edital da Câmara Municipal de Ponta Delgada, com data de 8 de Fevereiro de 2019 (cf.documento n.° 2 junto com a contestação - Ref. Elect. ... dos autos principais).
4. Foi publicado no Diário da República de 8 de Fevereiro de 2019, II Série, o anúncio de procedimento n.° 1206/2019 relativo a hasta pública de alienação de bens móveis, tendo por objecto a alienação e arrematação em hasta pública da participação social na sociedade comercial Azores Parque - Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques de Empresariais, S. A. correspondente a 102.000 acções, com o valor nominal de 510.000,00 euros, que correspondem à totalidade da participação social que a Câmara Municipal de Ponta Delgada detém nessa sociedade (documento n." 15 junto com a petição inicial - Ref Elect. ... dos autos principais).
5. Conforme Acta de Hasta Pública de 13 de Fevereiro de 2019, na data designada constatou-se a apresentação de uma única proposta para aquisição da participação social detida pelo Município de Ponta Delgada na empresa Azores Parque, E. M., S. A., pela Alixir Capital (Lisbon), Lda., pelo montante de 500,00 €, tendo a comissão deliberado proceder à adjudicação provisória à proponente, tendo o adjudicatário procedido ao pagamento imediato de 450,00 € (cf. documentos n. "s 4 e 21 juntos com a contestação do réu município - Ref. Elect. ... e ... dos autos principais).
6. Conforme acta da reunião da Câmara Municipal de Ponta Delgada de 6 de Março de 2019 foi deliberado autorizar a adjudicação definitiva das acções à Alixir Capital (Lisbon), Lda., mediante a celebração do contrato de compra e venda a outorgar pelo presidente da câmara municipal (documento n.° 18 junto com a petição inicial - Ref. Elect. ... dos autos principais),
7. Com data de 11 de Março de 2019, AA, na qualidade de Presidente da Câmara de Ponta Delgada, em nome e representação do Município de Ponta Delgada, como primeiro outorgante e BB, na qualidade de sócio-gerente, com poderes para o acto, em nome e representação da sociedade comercial Alixir Capital (Lisbon), Lda. subscreveram o documento intitulado "Contrato de Compra e Venda de Acções" com o seguinte teor:
"CLÁUSULA PRIMEIRA
O representado do primeiro outorgante é proprietário 102.000 acções nominativas, com o valor nominal de 5,00€ cada uma, num total de 510.000,00€ (quinhentos e dez mil euros), correspondentes a 51% (cinquenta e um por cento) do capitai social da sociedade comercial "AZORES PARQUE - Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais, EM, SA", pessoa colectiva n° 512081727, com sede na Rua Azores Parque, n" 102, Pavilhão 2.1, freguesia de São Roque, concelho de Ponta Delgada.
CLÁUSULA SEGUNDA
Pelo presente contrato o representado do primeiro outorgante vende à representada do segundo outorgante as acções identificadas na cláusula anterior pelo preço global de 500,00€ (quinhentos euros), no cumprimento da deliberação de adjudicação definitiva tomada na reunião de Câmara Municipal realizada no dia 6 de Março de 2019.
CLÁUSULA TERCEIRA
As acções são vendidas livres de quaisquer ónus ou encargos.
CLÁUSULA QUARTA
O preço mencionado na cláusula segunda é integralmente pago no acto de assinatura do presente contrato de compra e venda, com o pagamento do valor de 50,00€ (cinquenta euros), correspondente ao remanescente de 10% do valor da adjudicação, nos termos do artigo 9° do programa e condições para a alienação e arrematação em hasta pública da participação social detida pelo Município de Ponta Delgada na sociedade comercial AZORES PARQUE – Sociedade de Desenvolvimento e gestão de Parques Empresariais, EM, SA., de que o representado do primeiro outorgante dá quitação por mero efeito do presente contrato.
CLÁUSULA QUINTA
Na data da assinatura do presente contrato, o representante do primeiro outorgante faz a entrega ao representante da segunda outorgante dos títulos identificados na cláusula primeira."
(cf documento n.° 5 junto com a petição inicial — Ref. Elect. ... dos aulos principais).
8. Em 28 de Novembro de 2019 foi proferida decisão no âmbito do processo n.° 1932/19.8T8PDL que corre termos no Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores — Juiz 1 mediante a qual foi declarada a insolvência da sociedade Azores Parque — Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais, E. M., S. A. (cf. documento n.° 7 junto com a petição inicial - Ref. Elect. ... dos autos principais).

3. Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência para conhecer da presente acção ao Juízo Local Cível de Ponta Delgada.

4. Cumpre conhecer do recurso, cujo objecto consiste em saber se a competência em razão da matéria para a apreciação do litígio dos autos cabe aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.
Está portanto apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido do Banco autor, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelo artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos, “por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº 508/94, de 14.07.94, in Processo nº 777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº 139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12) ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção. O mesmo princípio tem sido desenvolvido no Supremo Tribunal de Justiça – a título de exemplo, veja-se o acórdão de 24 de Fevereiro de 2015, www.dgsi.pt, proc. n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1:“Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.
Citando de novo o Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 8 de Novembro de 2018, processo n.º 020/18, recorda-se :“como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 03.03.2011, 014/10; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2011, 029/10; AC Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, 02/12; AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, 055/13; AC do Tribunal de Conflitos de 17.09.2015, 020/15; AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14].
A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.

5. No caso dos autos, o autor alega, em suma, que a Azores Parque foi constituída pelo seu accionista único, o Município de Ponta Delgada, sob a forma de empresa municipal, sendo uma empresa local para efeitos da Lei n.º 50/2012 (art. 19.º).
Em face da apresentação de avultados resultados negativos há vários anos (contando com um passivo superior a onze milhões de euros) e por decorrência do art. 62.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 50/2012, o Município de Ponta Delgada estava obrigado a encontrar uma solução para a Azores Parque, que tinha de ser adoptada e executada no prazo de seis meses e que podia passar pela venda, integração ou internalização da empresa.
Perante a inexistência de um comprador que a adquirisse (por força da sua situação financeira), o Município de Ponta Delgada viu-se confrontado com a necessidade de ter de integrar ou internalizar a Azores Parque e, consequentemente, de assumir o seu passivo, para dar cumprimento à Lei n.º 50/2012.
Assim, decorrido o prazo de seis meses, sem que tenha adoptado quaisquer das aludidas soluções e perante a inevitabilidade de incumprimento da Lei n.º 50/2012, o Município de Ponta Delgadaengendrou um esquema, em violação da lei, para evitar internalizar a Azores Parque: prorrogaria o prazo dos financiamentos da empresa municipal, a pretexto de que a iria internalizar, até que encontrasse um terceiro disponível para comprar a Azores Parque e, nessa altura, "livrar-se-ia" deste fardo.
Na sequência da deliberação da Assembleia Municipal de Ponta Delgada, de 29 de Novembro de 2018, que aprovou a venda da participação social que detinha na empresa Azores Parque, o Município de Ponta Delgada vendeu-a, por um preço simbólico, a uma recém-criada sociedade (a Alixir Capital), que, ao adquirir essa participação, se tornou imediatamente insolvente, por via do disposto no artigo 501.º do CSC.
Subsequentemente e tal como era seu propósito, a adquirente, a quem não era conhecida qualquer atividade ou património, dissipou de imediato os bens da Azores Parque em proveito próprio (designadamente vendendo património imobiliário por preço muito inferior ao seu valor), o que fez antes que alguém pudesse requerer a insolvência da Azores Parque e com a conivência e participação do Município de Ponta Delgada.
Paralelamente, em Maio de 2019, a Azores Parque comunicou ao Banco Santander que não dispunha de condições que lhe permitissem honrar os compromissos que tinha junto do Banco e, em Agosto de 2019, apresentou-se a PER.
Reitera que com a venda da Azores Parque à Alixir Capital, o Município de Ponta Delgada praticou um ato incompatível com a obrigação legal decorrente da Lei n.º 50/2012, de vender, integrar ou internalizar a empresa, em seis meses.
Por outro lado, chama à colação a circunstância de, à data da venda da Azores Parque, os membros do conselho de administração desta empresa serem também membros do executivo camarário do Município de Ponta Delgada.
Conclui que “o contrato de compra e venda de ações celebrado entre o MUNICÍPIO DE PONTA DELGADA e a ALIXIR CAPITAL não tem qualquer substrato real e foi celebrado com o único propósito de permitir que o MUNICÍPIO DE PONTA DELGADA se pudesse furtar à assunção das responsabilidades que tinha e tem no passivo da AZORES PARQUE”, assinalando que essa mesma conclusão resulta “textualmente confirmada”, da acta da Assembleia Municipal de Ponta Delgada, de 29 de Novembro de 2018.
A propósito da noção de “relação jurídica administrativa”, escreveu José Carlos Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 53): na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
No que especificamente respeita aos contratos celebrados por entidades públicas, Vieira de Andrade, interpretando as referências do artigo 4.º em conjunto com “a cláusula geral de definição substancial” do âmbito da jurisdição administrativa, constante do n.º 1 do artigo 1.º, escreve: “(…) é manifesto o propósito legal de um alargamento do âmbito da jurisdição administrativa (…). Quanto aos contratos, esse alargamento é evidente na l. e) [do artigo 4.º], a qual, tal como confere aos tribunais administrativos competência para julgar os litígios que tenham por objecto a validade dos actos pré-contratuais inseridos em procedimentos administrativos, também no que se refere às questões de interpretação, validade e execução de contratos, não abrange apenas os contratos administrativos, mas também quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas públicas ou outras entidades adjudicantes. Ora, como se sabe, a legislação referida, em especial o Código dos Contratos públicos (CCP), ao regular os procedimentos pré-contratuais, também se aplica a contratos de direito privado celebrados pela Administração (…). Trata-se de uma opção tomada na revisão de 2015, que tem a vantagem de sujeitar a generalidade dos contratos celebrados pela Administração à jurisdição administrativa…” (A Justiça Administrativa cit., pág. 109-110).
Ora, conforme referido no acórdão recorrido, não está em causa nos autos qualquer contrato administrativo de entre os que se mostram especificamente regulados no Título II da Parte III do CCP (empreitadas de obras públicas, concessão de obras públicas e serviços públicos, locação de bens móveis, aquisição de bens móveis ou aquisição de serviços). Por outro lado, também não se alcança que a compra e venda de ações esteja prevista em legislação avulsa como contrato administrativo, ou que as partes o tenham qualificado como tal ou submetido a um regime substantivo de direito público, nem que o seu objeto fosse passível de acto administrativo ou, por fim, que o Município tenha actuado no exercício de poderes públicos, ou na prossecução de um interesse público.
Com efeito, o acto aqui directamente impugnado (contrato de compra e venda de ações) é um contrato jurídico-privado; mas cfr. o Procedimento n.º 1208/2019, publicado no Diário da República, II, de 8 de Fevereiro de 2019 (Parte L – Contratos Públicos).
Ora, segundo o art. 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.
No despacho saneador entendeu-se que não está em causa a apreciação da validade de actos pré-contratuais, uma vez que o autor não pretende impugnar, directa ou indirectamente, as deliberações tomadas pela Assembleia Municipal ou pela Câmara Municipal, mas o acto de venda em si -- efetivamente, a autora não impugnou diretamente os actos administrativos prévios à celebração do negócio, mas, tão-só, o contrato de compra e venda de ações celebrado entre o Município de Ponta Delgada e a Alixir Capital.
No entanto, ao longo do seu petitório alega reiteradamente que a venda ocorreu em violação da Lei n.º 50/2012 (que aprova o regime jurídico da actividade empresarial local e das participações locais - RJAELPL), designadamente da alínea d), do n.º 1, do seu art. 62.º.
Por outro lado, e conforme desenvolvido no acórdão recorrido, “os factos alegados e que integram a causa de pedir assentam em diversos aspectos que estão intrinsecamente conexionados com o processo de escolha do co-contratante:
- A intenção do Município de evitar a internalização da empresa local;
- A intenção de não assumir o passivo da Azores Parque;
- A tomada de deliberação para a venda após o decurso do prazo fixado no art. 62.º do RJAELPL relativo à verificação dos pressupostos que determinavam a obrigação de dissolução da Azores Parque;
- O propósito da adquirente de dissipação do património da Azores Parque, com a conivência do Município;
- A aprovação da deliberação camarária com intervenção das mesmas pessoas que integravam o conselho de administração da Azores Parque;
- A fixação de um preço simbólico que decorre da deliberação de adjudicação.
Assim, ainda que não tenham sido impugnadas as deliberações camarárias que conduziram à celebração do contrato de compra e venda, a apreciação das questões enunciadas pelo Banco autor implicará uma análise da actividade do município na fase pré-contratual.
Aliás, decorre dos n.ºs 1 e 2 do art. 61.º do RJAELPL, que:
1 - Compete ao órgão deliberativo da entidade pública participante, sob proposta do respetivo órgão executivo, deliberar sobre a alienação da totalidade ou de parte do capital social das empresas locais ou das participações locais.
2 - A dissolução, transformação, integração, fusão ou internalização das empresas locais depende da prévia deliberação dos órgãos da entidade pública participante competentes para a sua constituição, a quem incumbe definir os termos da liquidação do respetivo património, nos casos em que tal suceda.
A causa de pedir invocada pelo autor acarreta uma avaliação da conduta pré-contratual, enquadrável na alínea e) do n.º 1, do art. 4.º do ETAF, cabendo, consequentemente, à jurisdição administrativa a competência para conhecer da acção.
Face ao exposto, deve considerar-se que cabe à Jurisdição Administrativa a apreciação da acção agora em causa.

.6. Nestes termos, decide-se:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Julgar materialmente competente para conhecer da acção a jurisdição administrativa e fiscal; concretamente, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada (artigo 10.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos)

Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019).
Lisboa, 18 de Janeiro de 2022. – Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.