Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:031/20
Data do Acordão:07/08/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
CONTRATO DE EMPREGO - INSERCÃO
Sumário:Incumbe aos Tribunais Judiciais a competência para conhecer do processo visando a reparação dos danos resultantes de acidente de trabalho ocorrido enquanto desempenhava funções ao abrigo de um contrato emprego-inserção.
Nº Convencional:JSTA000P28004
Nº do Documento:SAC20210708031
Data de Entrada:11/13/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA – JUÍZO DO TRABALHO DO BARREIRO - JUÍZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE ALMADA.
AUTOR: A...................
RÉU: ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 31/20

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A……………… intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo do Trabalho do Barreiro, acção declarativa com processo especial contra o Centro Social e Paroquial B………… emergente de acidente de trabalho ocorrido enquanto desempenhava funções ao abrigo de um contrato emprego inserção+, tendo o mesmo sido absolvido da instância com fundamento na incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria.
Em seguida, a A. intentou, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada (TAF de Almada), acção administrativa contra o Estado pedindo a condenação deste no pagamento da restituição dos danos (patrimoniais e não patrimoniais) sofridos no contexto do acidente ocorrido na execução do contrato emprego – inserção+, celebrado ao abrigo da Portaria nº 128/2009, de 30 de Abril, tendo este Tribunal julgado procedente a excepção de incompetência material invoca pelo R. e determinado a sua absolvição da instância.
A autora requereu a resolução do conflito negativo de jurisdição e a Senhora Juíza do TAF de Almada ordenou remessa dos autos a este Tribunal dos Conflitos.
As partes, notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019, nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo do Trabalho do Barreiro, Juiz 2.

Cumpre decidir.
A Autora alega, em síntese, que sofreu um acidente no exercício da prestação de trabalho executada ao abrigo do Contrato emprego–inserção+ celebrado com o Centro Social e Paroquial B…………., no âmbito da Portaria nº 128/2009, de 30 de Janeiro, dele resultando danos dos quais se pretende ver ressarcida.
O presente conflito negativo de jurisdição vem suscitado entre o Juízo do Trabalho do Barreiro e o TAF de Almada por ambos se terem considerado materialmente incompetentes para apreciar o pedido da autora.
Entendeu o Juízo do Trabalho do Barreiro, na sentença proferida em 15.05.2018, que “Atenta o previsto na Portaria nº 128/2009 de 30/01, estamos perante uma relação de segurança social, mais especificamente de acção social, essencialmente estabelecida entre o IEFP e os trabalhadores-beneficiários, intervindo as entidades promotoras como colaboradoras da Administração na execução dessas finalidades de solidariedade e interesse social, sendo que a relação jurídica que subjaz ao contrato emprego - inserção + é de natureza administrativa, pelo que a competência para dirimir os litígios dela emergentes cabe à jurisdição administrativa (vide art.º 4.º, n.º1, al. f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) ”.
Por sua vez, o TAF de Almada no saneador-sentença de 10.09.2019, apoiando-se em jurisprudência do Tribunal dos Conflitos que cita, julgou-se materialmente incompetente e absolveu a Ré da instância, entendendo que “não tendo a trabalhadora em causa um vínculo para o exercício de funções públicas de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas – pois, como vimos, a sua relação de emprego deriva do contrato de emprego - inserção+ - o (alegado) acidente de trabalho em causa não pode ser enquadrado como «acidente em serviço», para efeitos de aplicação do Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de Novembro” acrescentando que “não tendo a trabalhadora em causa um vínculo para o exercício de funções públicas de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas; é aos tribunais judiciais que incumbe a competência para conhecer do presente processo relativo ao (alegado) acidente de trabalho que mais não visa do que a reparação das consequências do alegado acidente”.
Assim, a questão suscitada nos autos é a de saber qual a jurisdição competente quando está em causa um acidente sofrido por um trabalhador no âmbito de execução de um “contrato emprego-inserção+”.
Questão que já foi apreciada pelo Tribunal dos Conflitos, por diversas vezes, sendo uniforme a posição assumida (cfr. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos nº 15/17, de 19.10.2017, nº 53/17, de 25.01.2018, nº 40/18, de 31.01.2019, nº 42/18, de 28.02.2019, nº 15/19, de 30.01.2019 e nº 37/19, de 6.02.2019, 50/2029, 51/2019, 52/2019 de 25.06.2020, nº 44/19, de 03.11.2020 e n.º 8/20, de 27.04.2021).
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º, nº 1, da CRP).
Por sua vez, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do art. 212º da CRP, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4.º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4). Deste último preceito importa no caso o disposto na alínea b) do nº 4 que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios “decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”.
O “contrato emprego-inserção+” insere-se no regime jurídico do Rendimento Social de Inserção criado pela Lei nº 13/2003, de 21/5, fazendo parte do programa de inserção previsto naquele regime.
A Portaria nº 128/2009, de 20/1 “regulamenta as medidas 'Contrato emprego-inserção' e 'Contrato emprego-inserção+', através das quais é desenvolvido trabalho socialmente necessário” (cfr. art. 1º).
Da celebração do contrato emprego-inserção+ não decorre o estabelecimento de qualquer vínculo de trabalho em funções públicas nos termos da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP, aprovada pela Lei nº 35/2014, de 20/6), nomeadamente em qualquer das modalidades de prestação de trabalho em funções públicas que se traduzem no vínculo de emprego público previsto no art. 6º da LTFP [que prevê as modalidades de prestação de trabalho em funções públicas que se traduzem no vínculo de emprego público] ou de contrato de prestação de serviço, previsto no art. 10º.
Ora, o DL nº 503/99, de 20/11 (regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública) determina no seu artigo 2º que “O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado” (nº 1). E que “O disposto no presente decreto-lei é também aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações regionais e autárquicas e nos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respectivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes” (nº 2).
Por outro lado, nos termos do nº 4, “Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, devendo as respectivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código”.
Por sua vez, de acordo com o nº 5, “O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação do regime de protecção social na eventualidade de doença profissional aos trabalhadores inscritos nas instituições de segurança social”. Dispondo o nº 6 que “As referências legais feitas a acidentes em serviço consideram-se feitas a acidentes de trabalho”.
Assim, não pode o acidente em apreço considerar-se abrangido pelo regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública.
Já a Lei nº 98/2009, de 4/9, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, prevê de forma ampla o seu âmbito de aplicação no que respeita a acidentes de trabalho e é parte integrante do regime do contrato de trabalho consagrado no Código do Trabalho. O art. 284º deste Código remete a regulamentação da prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais para “legislação específica”, que é justamente a Lei nº 98/2009.
Na situação em apreço, a relação estabelecida entre o Centro Social e Paroquial B…………. e a trabalhadora cabe na previsão normativa do art. 3º, de acordo com a qual, “O regime previsto na presente lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos” (nº 1) e “Quando a presente lei não impuser entendimento diferente, presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços” (nº 2).
E que, de acordo com o nº 3 do referido preceito: “Para além da situação do praticante, aprendiz e estagiário, considera-se situação de formação profissional a que tem por finalidade a preparação, promoção e actualização profissional do trabalhador, necessária ao desempenho de funções inerentes à actividade do empregador”.
A entidade por conta de quem o trabalho é prestado é obrigada a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na Lei nº 98/2009 para “entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, conforme o art. 79º, nº 1.
O acidente em causa nos autos é susceptível de ser considerado como um acidente de trabalho, nos termos dos arts. 3º, 8º e 9º, da Lei nº 98/2009, já que é subsumível ao conceito de acidente de trabalho previsto no art. 8º, nº 1, segundo o qual “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de ganho ou a morte”.
Assim, e atento o disposto no art. 4º, nº 4, al. b), do ETAF, é de concluir, tal com tem vindo a ser decidido por este Tribunal dos Conflitos em casos idênticos, que o acidente em causa nos autos não pode considerar-se abrangido pelo DL nº 503/99, de 20/11. Antes devendo ser considerado um acidente de trabalho, nos termos da Lei nº 98/2009, razão pela qual a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em atribuir a competência para conhecer da presente acção aos tribunais judiciais.
Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, a relatora atesta que a adjunta Senhora Vice-Presidente do STJ, Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza tem voto de conformidade.

Lisboa, 8 de Julho de 2021

Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa