Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:045/18
Data do Acordão:04/11/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DA GRAÇA TRIGO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24463
Nº do Documento:SAC20190411045
Recorrente:O MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO DO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE VISEU, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL DO TRABALHO DE LAMEGO E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE VISEU
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Relatório
1. A………… interpôs, em 13 de Outubro de 2014, a presente acção administrativa comum contra Freguesia de Cambres, peticionando:
a) A declaração de que entre A. e R. foi celebrado, em Janeiro de 2006, um contrato de trabalho sem termo, existindo entre A. e R. um vínculo laboral efectivo;
b) A declaração de que a comunicação da R. ao A. relativa à cessação do contrato de trabalho por "abandono do trabalho" deve ser considerada um despedimento ilícito, por não corresponder à verdade, não ter sido precedido de qualquer procedimento disciplinar e, como tal, manifestamente infundado;
c) A condenação da R. a reintegrar o trabalhador, ora A., na Freguesia de Cambres, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade;
d) A condenação da R. a pagar as retribuições que o A. deixou de auferir desde o despedimento (ocorrido a 23/01/2014) até ao trânsito em julgado da decisão que declare a ilicitude do despedimento;
e) A condenação da R. a pagar os créditos salariais, aí discriminados, referentes a retribuição de dias de Janeiro/2014, subsídios de Natal e de férias relativos aos anos de 2011, 2012 e 2013, a dias de férias não gozadas de 2013, a dias de férias vencidas em 01/01/2014 e proporcionais de férias, subsídios de férias e de Natal referentes ao ano da cessação.

Alegou essencialmente o seguinte:

- Em 01/01/2006, a R. admitiu o A. para prestar serviço com a categoria de trabalhador indiferenciado, cabendo-lhe o desempenho de variadas tarefas, designadamente proceder à limpeza de caminhos, construção e reparação de muros e outras obras determinadas pelos responsáveis da R., mediante a remuneração base de € 485,00;
- Existindo, desde aquela data, um vínculo laboral efectivo entre A. e R. como esta expressamente reconhece na carta enviada a 22/01/2014;
- Em 23/01/2014, o A. recebeu uma carta da R., comunicando-lhe a cessação do contrato de trabalho por abandono de trabalho;
- O que configura um despedimento ilícito pelas razões que enuncia; - Tem em consequência direito aos créditos salariais que discrimina, assim como direito a ser reintegrado.
Previamente a esta acção, como foi alegado como "Questão Prévia" e resulta do respectivo documento que a acompanhou, o A. tinha interposto idêntica acção no Tribunal de Trabalho de Lamego, a que coube o nº 126/14.3TTLMG. Nessa acção, por sentença de 01/07/2014, transitada em julgado, foi decidido declarar a incompetência absoluta, em razão da matéria, daquele Tribunal e absolver a R. da instância.
Aí se considerando que "os tribunais competentes para apreciar litígios emergentes das relações jurídicas de emprego público são os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal", nos termos do disposto no art. 4°, nº 3, alínea d), do ETAF, e no art. 83° da Lei nº 12-A/2008, de 27/12. Com o entendimento de que, "embora a relação laboral invocada não fosse constituída sob a égide da Lei n° 12-A/2008 de 27/12 e da Lei n° 59/2008 de 11/09, que entraram em vigor a 1-1-2009, a invocada cessação da relação laboral já ocorreu após a aludida entrada em vigor, sendo que o A. escora a sua pretensão na falta de fundamento da cessação do contrato por abandono, à qual após a referida data seria aplicável o aludido regime legal".
Na presente acção, e na audiência prévia realizada em 14/07/2015, foi o A. notificado para juntar aos autos o respectivo contrato de trabalho; tendo este vindo subsequentemente informar que "não foi possível encontrar qualquer contrato de trabalho" e "não se recorda se foi ou não celebrado contrato escrito"; após o que a R. veio peticionar que, "a entender-se a existência de uma relação laboral entre Autor e Ré, deverá ser decretada a nulidade do contrato de trabalho por falta de cumprimento da obrigação legal atinente à sua formalização por escrito".
Por sentença de 30/06/2018, transitada em julgado, foi decidido que o Tribunal Administrativo e Fiscal é incompetente em razão da matéria para conhecer da causa, cabendo antes no âmbito da competência dos tribunais judiciais e, dentro destes, dos tribunais de trabalho.
Com a seguinte fundamentação essencial:
- A causa de pedir e o pedido não são subsumíveis ao n° 1 do art. 1º do ETAF;
- A relação jurídica objecto desta acção não é uma relação administrativa, mas antes de direito privado, surgindo a Autarquia enquanto qualquer outra entidade tomadora de trabalho;
- A relação laboral invocada, que se teria iniciado em 01/01/2006, não foi constituída com fundamento na Lei nº 12-A/2008, de 27/12 e na Lei nº 59/2008 de 11/09, que entraram em vigor apenas a 01/01/2009;
- Como resulta das normas anteriores, designadamente do Decreto-Lei nº 427/98 e da Lei n° 23/2004 (relativamente ao contrato individual de trabalho na administração pública), o contrato de trabalho não confere a qualidade de funcionário público ou agente administrativo e rege-se pelo Código do Trabalho, com as especialidades constantes de diploma especial sobre contrato de trabalho na Administração Pública;
- Nos termos do disposto no art. 4º, nº 4, alínea b), do ETAF [na alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, correspondente ao anterior art. 4º, nº 3, alínea d)], está excluída da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público.
Convocando a sentença, em sentido idêntico, a jurisprudência do Tribunal dos Conflitos.

2. Verificando-se um conflito negativo de jurisdição, o Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, suscitou a sua resolução pelo Tribunal dos Conflitos, manifestando-se no sentido de que a competência para conhecer da presente acção cabe aos tribunais comuns e, dentro destes, à jurisdição laboral.

Fundamentação

1. Relevam os factos que constam do relatório antecedente.

2. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (art. 202° da Constituição da República Portuguesa), sendo que cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas "que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional" (art. 211º, nº 1, da CRP, art. 64º do Código de Processo Civil e art. 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08), e aos tribunais administrativos a competência para julgar as causas "emergentes de relações jurídicas administrativas" (art. 212º, nº 3, da CRP, e art. 1º, nº 1, do ETAF).
Assim, na sequência das normas constitucionais e legais indicadas, e tal como vem sendo entendido, aos tribunais judiciais assiste uma competência genérica e residual, pois são competentes para "todas as causas" que "não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional".
Os tribunais administrativos, por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emirjam de "relações jurídicas administrativas", são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo "reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição" (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional nº 508/94, de 14/07/94 e nº 347/97, de 29/04/97, consultáveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Como tem sido uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos.
Nas palavras do acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 08/11/2018 (proc. nº 020/18), consultável em www.dgsi.pt, que vimos acompanhando, "A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência...»".

3. Dispõe o art. 4º do ETAF, na redacção em vigor à data da propositura da presente acção (13/10/2014), o seguinte:

"Âmbito da jurisdição
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.
2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.
3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso;
b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu presidente;
d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas."

Afigura-se que a resolução do presente conflito negativo de jurisdição implica essencialmente que se proceda à interpretação e aplicação do regime da alínea d), do nº 3 do art. 4º do ETAF (na versão supra reproduzida), regime do qual resulta: (i) que estão excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os litígios relativos a "contratos individuais de trabalho", mesmo que a entidade empregadora seja uma pessoa colectiva de direito público; (ii) que, inversamente, estão abrangidas pela jurisdição administrativa e fiscal os litígios relativos a "contratos de trabalho em funções públicas".
Na sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu foi convocado o acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 04/02/2016 (proc. nº 041/15), consultável em www.dsgi.pt, o qual, efectivamente, por um lado, respeita a um caso cuja factualidade equivale, naquilo que é relevante, à factualidade do caso sub judice; e, por outro lado, se encontra sujeito ao mesmo enquadramento legal.
Na acção que levou à prolação do referido acórdão, a autora alegara a existência de contrato de trabalho celebrado, informalmente, com uma Junta de Freguesia (em Fevereiro de 2008) para a prestação de diversas funções de atendimento ao público, contrato que a entidade empregadora teria feito cessar ilicitamente em Março de 2015.
A fundamentação do referido acórdão, na parte que aqui releva, é a seguinte:
"(...) parece ser de entender que no art. 4º do ETAF se quis alargar (bem como restringir) o âmbito nuclear da competência enquanto baseada na relação jurídico-administrativa, de modo que se poderá porventura sustentar que a competência da jurisdição administrativa abrange automaticamente (isto é, sem que ocorra o pressuposto da existência de uma efetiva relação jurídica administrativa, pelo menos em sentido objetivo e funcional) certas outras situações. O assunto prestar-se-á a dúvidas legítimas (v. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 55, 117 e 118), mas é neste sentido que se tem direcionado (ao que sabemos, sem grande controvérsia) a jurisprudência (v., entre outros, o Ac. do STJ de 6.11.08 [respetivos considerandos], disponível em www.dgsi.pt). Dentro ainda desta linha, aduzem Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira (Código de Processo no Tribunais Administrativos, vol. pp. 26 e 27) que "É preciso, porém, não confundir os fatores de administratividade de uma relação jurídica com os fatores que delimitam materialmente o âmbito da jurisdição administrativa, pois, como já se disse, há litígios que o legislador do ETAF submeteu ao julgamento dos tribunais administrativos independentemente de haver neles vestígios de administratividade ou sabendo, mesmo, que se trata de relações ou litígios dirimíveis por normas de direito privado. E também fez o inverso: também atirou relações onde existiam fatores indiscutíveis de administratividade para o seio de outras jurisdições".
Uma das situações em que não seria evidente uma manifestação de relação jurídica administrativa tal como caraterizada à luz dos contributos doutrinários acima expostos, é precisamente aquela que se refere aos litígios emergentes, na terminologia da Lei nº 23/2004, de "contrato individual de trabalho da Administração Pública" (ou, numa terminologia mais atual, de "contrato de trabalho em funções públicas"). Talvez por isso o legislador se tenha sentido na necessidade de suprimir dúvidas e, como assim, de dirigir expressamente à jurisdição administrativa e fiscal a competência para a apreciação de litígios que tais. De facto, da alínea d) do nº 3 do art. 4º do ETAF resultava 'a contrario' que a apreciação dos litígios emergentes dos contratos de trabalho que conferiam a qualidade de agente administrativo estava cometida à jurisdição administrativa e fiscal, da mesma forma que atualmente resulta da referida norma (na redação da Lei nº 59/2008) que é da competência da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes de contrato de trabalho em funções públicas (mas já não a apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público). Por agente administrativo e por trabalhador em funções públicas entende-se o trabalhador que, cumpridas as específicas condições de admissão ao serviço público e que é sujeito às particularidades estabelecidas na legislação respetiva (atualmente regula para o caso sobretudo a Lei nº 35/2014), estabelece uma relação laboral com pessoas coletivas públicas e para a prossecução dos fins compreendidos nas atribuições destas.
Perante este conjunto de vetores jurídicos, vejamos o caso vertente.
Segundo decorre do alegado pela Autora nos termos acima expostos, o suposto contrato de trabalho iniciou-se tácita e informalmente em 1 de fevereiro de 2008, exercendo então a Autora (como já vinha fazendo ao abrigo de anterior "acordo de atividade ocupacional", entretanto extinto por ter atingido o seu termo final), mediante uma retribuição, atividades de atendimento ao público e funções administrativas na Junta de Freguesia, passando pouco depois a exercer a sua atividade no Posto de Correios e no Posto de Turismo da freguesia, tudo sob a supervisão e direção da Junta.
Ora, esta singela factualidade poderá sem dúvida caracterizar um contrato de trabalho. Porém, e mesmo dando de barato que a atividade da Autora possa ser vista como resolvendo-se em última instância numa função de ordem pública e inserível nas atribuições administrativas da Ré, não representa a mesma factualidade nem uma situação de relação jurídica administrativa no sentido acima assinalado, nem uma situação de "contrato de trabalho da Administração Pública" em particular. Quanto à primeira hipótese a conclusão parece óbvia, pois que nada se encontra no que foi alegado factualmente que induza à ideia de que se tratou de um contrato regulável, sob o ponto de vista material, por normas de direito administrativo e que tivesse subjacente deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público que não se colocam no âmbito da contratação laboral jurídico-privada. E quanto à segunda hipótese, há que dizer que o que vem alegado pela Autora denega logo à partida a ideia de que se firmou um "contrato de trabalho da Administração Pública". Isto é assim porque (e abstraindo das demais condições legais que à data eram exigidas para o acesso ao serviço público por via de contrato de trabalho), o contrato não revestiu a forma escrita, pelo que, contrariamente a tudo o que vem pressuposto pela própria Autora na sua demanda (a Autora parte logicamente do princípio de que se está perante um contrato válido), tratar-se-ia de um contrato nulo (v. art. 8º da citada Lei nº 23/2004) e, como tal, insuscetível de dar respaldo a um despedimento em sentido jurídico (e é de um despedimento ilícito que se queixa a Autora).
Deste modo, face aos termos factuais como a ação vem desenhada ou fundamentada, ou seja, face à sua causa de pedir e pedido consequente, não se insere na jurisdição administrativa e fiscal a competência para apreciar o litígio em causa. Na realidade, e como acaba de ser dito, o que foi alegado não caracteriza uma relação jurídica administrativa nem um "contrato individual de trabalho da Administração Pública" ou um "contrato de trabalho em funções públicas", mas simplesmente, e por defeito, um comum contrato individual de trabalho.
Donde, é à jurisdição judicial, e dentro desta à laboral, que compete apreciar a causa.
Não é de mais, entretanto, renovar aqui o que acima se referiu: a competência do tribunal é ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão. Nesta medida, e contrariamente ao que decorre implicitamente da decisão que foi proferida no Tribunal do Trabalho, não interessa, para os estritos fins da determinação da competência, trazer à discussão a legislação subsequente (referimo-nos à Lei nº 12-A/2008, de 27 de fevereiro, entretanto revogada, e à Lei nº 35/2014, de 20 de junho) que, segundo uma possível interpretação, poderá ter convertido o alegado contrato de trabalho num contrato em funções públicas: Note-se que não se está a pôr em dúvida que para os dissídios decorrentes de um contrato deste tipo a jurisdição administrativa e fiscal seria a competente (alínea d) do nº 3 do art. 4º do ETAF e art. 12º da Lei nº 35/2014). O que se diz, simplesmente, é que não é isso que está aqui em causa. Na realidade, uma coisa é a competência do tribunal, outra coisa, muito diferente, é o direito material ou substantivo aplicável ao litígio, direito este que cabe ao tribunal competente determinar e aplicar independentemente da sua natureza privada ou pública.
Segue-se pois que a competência material para apreciar o litígio em questão está deferida aos tribunais da ordem comum ou judicial, e não aos da ordem administrativa e fiscal." [negritos nossos]

Tendo em conta a existência de paralelismo entre o caso apreciado no acórdão cuja fundamentação aqui se transcreveu e o caso sub judice, tanto no que respeita à factualidade alegada relevante (incluindo a falta de forma dos invocados contratos de trabalho), como no que se refere à legislação aplicável [com a excepção, que se afigura irrelevante para a resolução da questão em causa, de que o regime da Lei nº 35/2014, de 20/06, não estava em vigor na altura (Janeiro de 2014) do alegado despedimento ilícito do caso dos presentes autos, ainda que já o estivesse na data da propositura da acção (13/10/2014), uma vez que aquela Lei entrou em vigor a 01/08/2014], considera-se que a orientação ali propugnada é válida para o presente caso.
No mesmo sentido do referido acórdão de 04/02/2016 (proc. nº 041/15) se tem pronunciado, de forma reiterada, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos (cfr., mais recentemente, os acórdãos de 14/09/2017 (proc. n° 06/17), de 19/10/2017 (proc. nº 015/17), de 17/05/2018 (proc. nº 065/17), de 08/11/2018 (proc. nº 025/18) e de 06/12/2018 (proc. nº 034/18), todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Em conclusão, entende-se que a relação material controvertida, tal como configurada pelo A., não corresponde a uma situação de relação jurídica administrativa nos termos e para os efeitos do nº 1 do art. 4º do ETAF, nem a uma situação de contrato de trabalho em funções públicas nos termos e para os efeitos da alínea d), do nº 3 do art. 4º do ETAF (na redacção aplicável).
Estando, pois, em causa um simples contrato individual de trabalho, a competência para conhecer a causa cabe aos tribunais de trabalho da jurisdição comum.

Decisão

Pelo exposto acorda-se em resolver o presente conflito negativo de jurisdição, declarando serem competentes para o conhecimento da acção os tribunais de trabalho da jurisdição comum.

Sem custas.

Lisboa, 11 de Abril de 2019. – Maria da Graça Trigo Franco Frazão (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – José Inácio Manso Rainho - Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Manuel Pereira Augusto de Matos - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.