Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:010976/21.9T8PRT.P1.S1
Data do Acordão:09/27/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à validade e execução de contratos administrativos.
Nº Convencional:JSTA000P31407
Nº do Documento:SAC20230927010976
Recorrente:AA
Recorrido 1:MARINA DE LEIXÕES - ASSOCIAÇÃO DE CLUBES
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 5 de Julho de 2021, AA instaurou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto uma acção declarativa de condenação contra Marina Leixões – Associação de Clubes Molhe Norte de Leixões, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 10.143,61 a título de danos patrimoniais e a quantia de € 2.000 a título de danos não patrimoniais, ambas acrescidas de juros de mora contados desde a citação até integral e efectivo pagamento.


Para o efeito, e em síntese, alegou ter celebrado com a ré dois contratos de cedência de direito de amarração relativos a duas embarcações de recreio, de nome P... e M... ...., de que era dono e legítimo possuidor.


Nos termos de cada um dos contratos, conforme afirma, “a R. obrigou-se a ceder ao A o direito à utilização de um lugar de embarcação, na doca de serviço da Marina de Leixões, a fim de ser amarrada a embarcação de recreio do A. enquanto a ré fosse concessionária da exploração da área molhada no porto da marina”.


Porém, através de carta datada de 5 de Abril de 2019, “foi comunicada ao A. a resolução, com efeitos imediatos, dos referidos contratos de cedência de amarração”, resolução que considera “manifestamente ilícita”


Peticiona, consequentemente e em suma, uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes dessa resolução ilícita.


Citada, a ré contestou, excepcionando, além do mais, a incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria.


Sustentou, em primeiro lugar, que, visando o autor “aferir a eficácia e validade de atos administrativos praticados pela R., na qualidade de concessionária no domínio público e no exercício de poderes públicos”, a competência em razão da matéria para a apreciação da causa pertence aos tribunais administrativos e não aos tribunais comuns, nos termos do art. 4.º, n.º 1, als. d) e f), do ETAF.


Em segundo lugar, e para o caso de se entender que a presente ação não cabe na jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais, defendeu que a competência para a apreciação do litígio caberá ao Tribunal Marítimo.


Notificado, o autor respondeu às excepções, reafirmando, além do mais, a competência da jurisdição comum. Em seu entender, ainda que a ré seja concessionária do domínio público (concessão essa que lhe foi atribuída pela Administração dos Portos do Douro e Leixões, APDL), está em causa uma relação puramente privada.


Por decisão de 29 de Outubro de 2021, o Juiz 6 do Juízo Local Cível do Porto, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, afirmando a competência da jurisdição administrativa, nos termos do disposto no art. 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF, julgou-se materialmente incompetente para conhecer da presente ação e absolveu a ré da instância.


Para tanto, sustentou que “a cedência do direito à utilização de um posto de amarração na doca de serviço da Marina de Leixões foi efetuada através de contrato que deve ser tido como um contrato administrativo, dado que tem por objeto o uso e fruição de bens que se integram no domínio público marítimo”.


A natureza administrativa do contrato é, pois, confirmada por estarmos perante um contrato que, em função do seu objeto, confere ao contratante direitos especiais sobre coisas públicas.


Para além disso, a cláusula 4.ª do contrato ao estabelecer que o autor fica obrigado a cumprir o regulamento de Exploração e Utilização da Marina, introduz uma nota de administratividade que o distingue dos contratos de direitos privado.


Acresce que a ré apenas celebrou os referidos contratos na qualidade de concessionário do domínio público, que lhe foi concedido pela APDL, instituo público de personalidade jurídica de direito público”.


Inconformado, o autor interpôs recurso do despacho de 29 de Outubro de 2021 para o Tribunal da Relação do Porto.


Por acórdão de 28 de Setembro de 2022, o Tribunal da Relação do Porto confirmou a decisão de 29 de Outubro de 2021, rejeitando a competência material dos tribunais comuns e atribuindo-a à jurisdição administrativa.


Afirmou, em suma, que a invocada cedência do direito de amarração de embarcações de recreio conferiu ao recorrente um direito temporário e exclusivo de utilização de postos ou lugares de amarração, efectuada através de contratos que, face ao disposto no n.º 1 do artigo 28.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, devem ser qualificados como contratos administrativos, dado que têm por objecto o uso e fruição de bens que se integram no domínio público marítimo; e que “(…) resultando que, no desenvolvimento da actividade invocada pelo autor como causa de pedir, a recorrida actua nas vestes de autoridade pública, investida de «ius imperium», com vista à realização do interesse público, e que os contratos (de cedência) estão sujeitos a um regime substantivo de direito público”.


2. O autor interpôs recurso para o Tribunal dos Conflitos, nos termos do n.º 2 do artigo 101.º do CPC e da al. c) do artigo 3.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro. Nas alegações que apresentou formulou as seguintes conclusões:


«1. Ao contrário do entendimento perfilhado no acórdão recorrido, os contratos ajuizados reportam-se a uma relação jurídica privada, em que a R. se apresenta despojada de ius imperii e de prerrogativas desse mesmo cariz, por não estar em causa a prossecução de um qualquer interesse público;


2. Em face do pedido e da causa de pedir da acção, está-se perante o incumprimento de contratos de natureza privada que, embora tenham a montante um contrato de concessão, não são regulados por normas de direito público, nem resulta do seu clausulado que as partes os tenham querido submeter a um regime substantivo de direito público;


3. Não obstante a R. assumir a qualidade de concessionária do domínio público marítimo, daí não resulta que a relação contratual mantida entre as partes se revista de cunho administrativo, na medida em que o que releva nesta sede é o conteúdo dos direitos e obrigações assumidos – cfr., Ac. Rel. Lisboa de 01.10.2014, Proc. n.º 4654/06.6 TBCSC.L1-6;


4. Com efeito, o objecto dos contratos consiste na cedência pela R. ao A. do direito de amarração de embarcações de recreio dos autos, mediante o pagamento de um preço; ao contratar, a R. não pratica quaisquer actos administrativos como também não exerce qualquer autoridade pública e/ou prerrogativas dessa mesma natureza que decorram da titularidade da concessão do domínio público, nem tão pouco pratica actos administrativos;


5. Na verdade, estamos perante contratos exclusivamente regidos pelo direito privado, sujeitos a uma lógica e regime próprios desse cariz privatístico, desprovidos de quaisquer vestígios de administratividade, celebrados pela R. no âmbito da sua capacidade jurídica privada ao abrigo do princípio da liberdade contratual (art. 405.º do Código Civil) e por isso alheios ao interesse público e não subsumíveis ao art. 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto – cfr., Acs. Tribunal dos Conflitos de 15.05.2013, Proc. n.º 15.05.2013, de 14.07.2022, Proc. n.º 025/20 e de 09.07.2015, Proc. n.º 014/15;


6. Por isso mesmo, em nenhum trecho dos contratos se faz alusão a “taxas” devidas pelo A., como é usual nos contratos administrativos, mas apenas a “quantias” e “valores”, assim como não há o mínimo vestígio ou indício que aponte para a natureza administrativa da relação contratual;


7. Pelo contrário, a cláusula de aforamento constante de ambos os contratos, no sentido de que “as partes acordam em atribuir ao Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, com expressa renúncia a qualquer outro, a resolução de qualquer conflito emergente da interpretação e execução do presente contrato”, tem o alcance claro e inequívoco de se ter querido submeter os contratos a um regime de direito privado ao invés de um regime de direito administrativo - cfr., Ac. STJ de 26.05.2015, Proc. n.º 1798/09.6TBCSC.L1.S1;


8. Por outro lado, os contratos em questão não foram submetidos pelas partes a um regime substantivo de direito público (administrativo) – cfr., Ac. Tribunal dos Conflitos de 16.09.2010, Proc. n.º 013/09.


9. A simples circunstância de a cláusula 4.ª dos contratos prever que o A. fica vinculado ao cumprimento do regulamento de Exploração e Utilização da Marina é manifestamente insuficiente e inidónea para conferir uma nota publicista à relação contratual;


10. Também os particulares, ao contratarem com a concessionária do Metro ou de outros serviços públicos de transporte estão obrigados a cumprir as disposições do respectivo Regulamento de Utilização e, nem por isso, esses contratos de transporte deixam de ser contratos de natureza privada;


11. O mesmo se diga, verbi gratia, de um contrato de cedência de utilização de barraca de praia celebrado entre um particular e uma concessionária do domínio público marítimo; também aqui há que observar um Regulamento de Utilização e, não obstante, não se pode falar de um contrato administrativo, sob pena de se tornar o absurdo transitável – cfr., Ac. Rel. Évora de 28.04.2022, Proc. n.º 1287/21.0TLLE.E1 (voto de vencido);


12. Acresce que o pressuposto processual da competência afere-se pelo pedido e respectivos fundamentos que corporizam a causa de pedir, nos termos em que são configurados pelo autor – cfr., na jurisprudência, por todos, Acs. STJ de 12.01.2010, Proc. n.º 1337/07.3TBABT.E1.S, de 20.02.2019, Proc. n.º 9086/18.0T8LSB-A.L1.S1, de 30.06.2020, Proc. n.º 2831/17.3T8CSC.L1.S1 e Acs. Tribunal dos Conflitos de 28.09.2010, Proc. n.º 010/10, de 20.09.2011, Proc. n.º 03/11, de 10.07.2012, Proc. n.º 03/12, de 30.10.2014, Proc. n.º 047/14 e de 01.10.2015, Proc. n.º 08/14; na doutrina, vd. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pgs. 90 e 91, Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, pág. 379 e Castro Mendes, Direito Processual Civil, I, pág. 557;


13. Neste conspecto, o A. demanda a R. apenas como contraparte contratual, independentemente e abstraindo da sua qualidade de concessionária, a qual é irrelevante, no sentido em que o incumprimento e resolução ilícita dos contratos e os danos que daí decorreram para o A. são configurados como actos de gestão privada da R., e não de natureza administrativa praticados por esta no uso da sua autoridade de concessionária; não está em discussão, portanto, o incumprimento/resolução do próprio contrato de concessão, situação em que, ao invés, seria competente a jurisdição administrativa – cfr., a título de exemplo, o Ac. Rel. Évora de 12.10.2017, Proc. n.º 347/17.7T8STB.E1;


14. Está-se, portanto, diante uma relação jurídica puramente privada e não em face de uma relação jurídica administrativa subsumível às disposições do n.º 1, do art. 4.º do ETAF (em particular a al. e)), que legitime a competência da jurisdição administrativa – cfr., art. 212.º, n.º 3, da CRP – cfr. Ac. Tribunal dos Conflitos de 16.09.2010, Proc. n.º 013/09 ;


15. Donde, a competência para a resolução do presente litígio pertence aos tribunais judiciais, enquanto tribunais com competência material genérica ou residual, a quem compete o conhecimento das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, nos termos dos arts. 64.º do CPC, 40.º, n.º 1, da LOSJ e 211.º, n.º 1, da CRP – cfr. a este propósito, Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, Lex, 999, pgs. 31 e 32;


16. Neste sentido depõe indubitavelmente a jurisprudência mais autorizada, de que se cita, a título meramente exemplificativo, os seguintes arestos (em todos eles, à semelhança do caso sub judice, a concessionária é justamente uma Marina): Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 26.05.2015, Proc. n.º 1798/09.6TBCSC.L1.S1; Acs. Rel. Lisboa de 23.11.2004, Proc. n.º 1548/2004-1, de 12.12.2013, Proc. n.º 10239/09.8TBCSC.L1-2, de 13.02.2007, Proc. n.º 11956/2005-1, de 02.02.2011, Proc. n.º 19641/09.4YIPRT.L1-6, de 08.05.2012, Proc. n.º 9977/09.0TBCSC.L1-7, de 01.10.2014, Proc. n.º 4654/06.6 TBCSC.L1-6 e de 20.01.2015, Proc. n.º 375014/09.5YIPRT e Ac. Rel. Évora de 28.04.2022, Proc. n.º 1287/21.0TLLE.E1 (voto de vencido).


17. A decisão a quo violou as disposições legais supra citadas.


Termos em que, pelos fundamentos alegados e pelos que V. Exas doutamente suprirão, requer-se a V. Exas. que o recurso seja julgado procedente, e, por via dessa procedência, se julgue a jurisdição comum como materialmente competente para apreciação do pedido constante da petição inicial deduzida pelo A., julgando improcedente a excepção de incompetência absoluta proferida pelo Tribunal a quo, ordenando o prosseguimento da acção e dos seus termos para apreciação daquele pedido.


E. R. J.»


A ré contra-alegou, reafirmando a competência material dos Tribunais administrativos para o conhecimento da lide.


3. Remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que se seguissem os termos previstos na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.


O Ministério Público proferiu parecer no sentido de ser atribuída competência à jurisdição administrativa, aderindo à fundamentação apresentada pelo acórdão recorrido, não suscitando nenhuma questão nova. Transcreve-se parte do parecer:


«No caso dos autos, o autor peticionou uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais advenientes da resolução ilícita de dois contratos de cedência de amarração relativos a embarcações de recreio de nome P... e M... .... .


Mais alega que, ainda previamente à dita resolução, se verificou um incumprimento contratual imputável à recorrida, decorrente da não elevação da embarcação P... e outras vicissitudes, donde resultaram prejuízos patrimoniais.


Acompanha-se a fundamentação expendida no douto acórdão da Relação do Porto proferido nos autos e que aqui se dá por reproduzida, motivo por que afigura-se-nos que a competência material para conhecer dos pedidos em causa pertencerá aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.


Com efeito, tal como se refere no acórdão ora colocado em crise, a recorrida Marina Leixões – Associação de Clubes é concessionária de domínio público marítimo, qualidade que lhe adveio de concessão que lhe foi atribuída pela Administração dos Portos do Douro e Leixões (instituto público personalizado), para exploração da área molhada do porto da Marina de Leixões. A doca de serviço da Marina de Leixões, está integrada nas margens de águas do mar, em área do domínio público marítimo (art.º 3.º, al. e), da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro), não sendo por isso passível de ser objeto de propriedade privada.


No exercício dos poderes de administração dos bens do domínio público que lhe estão confiados, a recorrida goza das mesmas prerrogativas de autoridade pública destinadas à defesa desse mesmo património de que goza a entidade concedente.


Os direitos de uso privativo do domínio público por particulares podem ser adquiridos por meio de licença ou de concessão – art.º 27.º do regime jurídico do património imobiliário público que consta do regime jurídico do património imobiliário público aprovado pelo Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto.


Dispõe ainda o art.º 28.º, n.º 1 do mesmo regime jurídico que “1 - através de acto ou contrato administrativos podem ser conferidos a particulares, durante um período determinado de tempo, poderes exclusivos de fruição de bens do domínio público, mediante o pagamento de taxas.”


A invocada cedência do direito de amarração de embarcações de recreio conferiu ao recorrente um direito de utilização temporário e exclusivo de postos ou lugares de amarração, materializada em contratos que por força do estabelecido no citado art.º 28.º, n.º 1, daquele diploma legal, revestem a natureza de contratos administrativos, porquanto têm por objeto o uso e fruição de bens que se integram no domínio público marítimo.


Esta natureza resulta dos critérios de administratividade consagrados nas als. b) e c) do n.º 1 do art.º 280.º do CCP considerando que os contratos apresentam objeto suscetível de ato administrativo, já que o direito por eles conferido pode ser adquirido através de licença e atribui ao concessionário direitos especiais sobre coisas públicas.


Por outro lado, como resulta da cláusula 4ª, n.º 1, de ambos os contratos, o recorrente mostra-se vinculado à observância do Regulamento de Exploração e Utilização da Marina, o que lhes confere uma típica característica de administratividade, que os distingue dos contratos de direito privado.


Assim e considerando que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à validade e execução de contratos administrativos, conforme estatuí o art.° 4.°, n.° 1, al. e), do ETAF, há que concluir que o conhecimento do objeto da ação cabe aos tribunais administrativos.»


4. Os factos relevantes constam do relatório.


Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar a acção, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.


Esta forma de delimitação recíproca obrigará a verificar se a presente acção está abrangida pela competência da jurisdição administrativa e fiscal. Naturalmente que prevalecerá uma lei especial que seja aplicável. Com se escreveu no acórdão do Tribunal de Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18, os tribunais administrativos, “ não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº 777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]


Em qualquer caso, a competência afere-se pela lei vigente à data da propositura da acção – artigos 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto – Lei de Organização do Sistema Judiciário – e 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais


Resultando a competência de uma lei que especificamente contemple a matéria que estiver em causa, é igualmente a lei vigente à data da propositura da ação que releva.


5. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, ainda como exemplo,, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).


Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.


A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.


6. Nos termos do art. 212.º, n.º 3, da CRP “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.


A propósito da noção de “relação jurídica administrativa”, escreveu José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 53:


na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)


A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.


Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.


Segundo o art. 1.º, n.º 1, do ETAF (na redação introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro), “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.


Sem prejuízo de leis especiais, a competência, em razão da matéria, dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se, assim, prevista no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Releva agora a al. e) do respectivo n.º 1.


7. Como se viu, o autor fundamenta a obrigação de indemnizar por parte da ré nos danos patrimoniais e não patrimoniais advenientes da resolução ilícita de dois contratos de cedência de amarração relativos a embarcações de recreio, de que o autor era dono e legítimo possuidor, nos termos de cada um dos quais a ré se obrigou a ceder-lhe o direito à utilização de um lugar de embarcação, na doca de serviço da Marina de Leixões, a fim de ser amarrada a embarcação de recreio enquanto a ré fosse concessionária da exploração da área molhada no porto da marina (cfr. contratos juntos aos autos).


O domínio público marítimo é regulado pela Lei 54/2005, de 15 de Novembro (estabelece a titularidade dos recursos hídricos), e pela Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro (Lei da Água).


O domínio público hídrico compreende o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial e o domínio público das restantes águas (art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005).


De acordo com o art. 3.º da Lei n.º 54/2005, o domínio público marítimo compreende as águas costeiras e territoriais (al. a)) e as margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés (al. e)).


Segundo o art. 4.º da Lei n.º 54/2005, o domínio público marítimo pertence ao Estado.


E, de acordo com o n.º 1 do art. 9.º do mesmo diploma, “o domínio público hídrico pode ser afeto por lei à administração de entidades de direito público encarregadas da prossecução de atribuições de interesse público a que ficam afetos, sem prejuízo da jurisdição da autoridade nacional da água”.


Os direitos de uso privativo do domínio público por particulares podem ser adquiridos por meio de licença ou de concessão, nos termos do art.º 27.º do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto (que estabelece o regime jurídico do património imobiliário público).


Sob a epígrafe “Conteúdo da utilização privativa”, o art. 28.º, n.º 1, do mesmo regime jurídico, dispõe que “Através de acto ou contrato administrativos podem ser conferidos a particulares, durante um período determinado de tempo, poderes exclusivos de fruição de bens do domínio público, mediante o pagamento de taxas.”.


No caso dos autos, a ré é concessionária de domínio público marítimo, por contrato de concessão de uso privativo do domínio público marítimo, celebrado com a APDL, entretanto transformada em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos pelo Decreto-Lei n.º 335/98, de 3 de Novembro, para a exploração da área molhada do Porto da Marina de Leixões, tendo sido nessa qualidade que celebrou os contratos em causa.


Por outro lado, conforme referido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, agora recorrido, «A doca de serviço da Marina de Leixões (…) está integrada nas margens de águas do mar, em área do domínio público marítimo (art. 3.º, alínea e), da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro), não sendo por isso passível de ser objeto de propriedade privada.”.


No exercício dos poderes de administração dos bens do domínio público que lhe estão confiados, a recorrida goza das mesmas prerrogativas de autoridade pública destinadas à defesa desse mesmo património de que goza a entidade concedente.»


Ora a cedência ao autor do direito de amarração daquelas duas embarcações de recreio (que lhe conferiu um direito de utilização temporário e exclusivo daqueles postos ou lugares de amarração) foi efectuada através de contratos que, face ao disposto naquele art.º 28.º, n.º 1, devem ser tidos como contratos administrativos, dado que têm por objecto o uso e fruição de bens que se integram no domínio público marítimo.


8. O recorrente discorda desta conclusão, observando, nomeadamente que é o conteúdo e natureza das relações com terceiros e não a qualidade de concessionária da ré que releva. Ora, analisando os contratos de cedência de amarração celebrados com o autor e o contrato de concessão que os sustenta verifica-se, desde logo, que não há uma posição de paridade entre autor e ré, já que esta dispõe de prerrogativas de autoridade (que lhe permitem, nomeadamente, a modificação unilateral, por exemplo, do lugar de amarração da embarcação); o “objecto contratual” (ponto 10 das alegações) participa do interesse público subjacente à disciplina da concessão do uso privativo de qualquer bem do domínio público; as regras do Regulamento de Exploração e Utilização da Marina fazem parte dos contratos – e note-se que, diferentemente do que sucedia com o caso sobre o qual recaiu o acórdão do Tribunal dos Conflitos aprovado no proc. n.º 026/12, o contrato em discussão respeita à utilização de um bem do domínio público); não releva a circunstâncias de não se referir o termo taxa no texto “autónomo” do contrato – note-se que as taxas estão disciplinadas no Regulamento de Utilização da Marina, parte integrante dos contratos; a cláusula relativa ao foro competente, podendo ser um indício de que as partes consideravam tratar-se de contratos não administrativos, não é decisiva para a qualificação dos contratos, porque é imperativa a regra constante do n.º 1 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 280/2007.


9. Nessa conformidade, considerando que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à validade e execução de contratos administrativos, conforme estatui o art. 4.º, n.º 1, al. e) do ETAF, cabe concluir que cabe aos Tribunais Administrativos e Fiscais a competência para conhecer da presente acção; concretamente, e de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, ao Juízo Administrativo do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (n.º 1 do artigo 19.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, mapa anexo ao Decreto-Lei n.º 325/2003, de 29 de dezembro e al. g) do artigo 1.º da Portaria n.º 122/2020, de 22 de Maio).


Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro).


Lisboa, 27 de Setembro de 2023. – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.