Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02/14
Data do Acordão:03/25/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:SANTOS MONTEIRO
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO.
DOMINIO PÚBLICO MARITIMO.
Sumário:Compete aos tribunais judiciais conhecer da acção em que se pede o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinado prédio e a definição dos seus limites relativamente a terrenos do domínio público marítimo.(*)
Nº Convencional:JSTA00069139
Nº do Documento:SAC2015032502
Data de Entrada:01/20/2014
Recorrente:A... E ESPOSA, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE COIMBRA E O 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:CONFLITO JURISDIÇÃO TAF COIMBRA - TCIV FIGUEIRA DA FOZ.
Decisão:DECL COMPETENTE TCIV FIGUEIRA DA FOZ.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO.
Legislação Nacional:CPC13 ART109 N1 ART110 N1 ART111 N2 ART66.
ETAF02 ART1 ART4 N3 A ART5.
CONST76 ART212 N3.
CPTA02 ART13.
CIV66 ART1305 ART1353.
L 54/2005 DE 2005/11/15 ART17 N5 N7.
L 67/2007 DE 2007/12/31 ART1.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC021/06 DE 2008/06/05.; AC TCF PROC021/07 DE 2008/11/04.; AC TCF PROC006/09 DE 2009/11/04.; AC TCF PROC0/11 DE 2012/01/12.; AC TCF PROC08/09 DE 2009/07/07.; AC STA PROC041403 DE 1996/10/03.; AC STA PROC041487 DE 1997/02/26.; AC TCF PROC018/11 DE 2012/02/16.; AC STAPLENO PROC040247 DE 1998/02/18.; AC TC N372/94 DR II SERIE 204.
Referência a Doutrina:JOÃO CAUPERS E JOÃO RAPOSO - IN A NOVA JUSTIÇA ADMINISTRATIVA PAG11.
VIEIRA DE ANDRADE - IN JUSTIÇA ADMINISTRATIVA LIÇÕES PAG56.
MARCELO REBELO DE SOUSA - LIÇÕES DE DIREITO ADMINITRATIVO I PAG57.
FREITAS DO AMARAL - IN DIREITO ADMINISTRATIVO III PAG439-440.
JORGE MIRANDA - PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS DA REFORMA ADMINISTRATIVA CJA N24 PAG3 E SEGS.
SÉRVULO CORREIA - IN DIREITO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO PAG714.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal de Conflitos.


A……….. e mulher B……………… intentaram no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, acção administrativa comum contra o Estado Português- Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território e o Município da Figueira da Foz, alegando que são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano destinado a habitação, constituído por ………., ………., ……… e …….., situado na ………., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …………., concelho da Figueira da Foz, sob o art.º 2459.º, e descrito na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob o n.º 383, a confrontar do norte e poente com arruamentos, do sul com lote 45 e do nascente com o lote 51.


O prédio supracitado foi implantado no lote 46, e foi adquirido por compra que dele fez em 9.10.86, por escritura pública, a C……………… e mulher D………………, além de que, por si e antepossuidores, vêm habitando dito prédio, recebendo visitas, pernoitando, confeccionando as suas refeições, tratando da sua limpeza e conservação, reparando-o, pintando-o e pagando as respectivas contribuições, isto, de forma contínua, pública, ininterrupta, pacífica e de boa fé, há mais de 5, 10, 20, 30, 40, 50 e 80 anos.

Anteriormente o prédio em causa foi propriedade da Câmara Municipal da Figueira da Foz, tendo sido desanexado do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz, sob o n.º 1970, da freguesia de ………., o qual, por sua vez, fazia parte do prédio denominado “……….. - …………”, estando, então, inscrito na matriz predial rústica de ……………. sob o art.º 3530.

No início dos anos sessenta as águas do Atlântico, a sul, começaram a aproximar-se da costa marítima, ao ponto de, além do mais, atingirem povoações como a da …………..

Antes da construção dos molhes da Norte -Sul, integrando as obras de construção do Porto-Mar da Figueira da Foz, o prédio dos AA. situava-se, do lado poente, a cerca de 45 metros, pelo menos, do final de uma duna conhecida pelas gentes do local, por “………..”.

E era no limite dessa duna que se iniciava a propriedade privada, ou seja os “…………..-………….” e a partir daí o domínio público, propriedade do Estado.

Com o desenvolvimento das obras do Porto -Mar e conclusão dos molhes, as águas do mar aproximaram-se da costa, a sul da praia da Figueira da Foz, ao mesmo tempo que recuaram, em mais de 150 metros da costa, aumentando a extensão, para norte, da praia.

Ao mesmo tempo as águas, ano após ano, depois de 1960, e particularmente a partir de 71/72, começaram a aproximar-se da costa, atingindo as dunas e a mencionada “………….”, implicando obras de protecção de defesa da propriedade privada e das povoações a sul, como Cabedelo, Gala e Cova, Leirosa, Costa de Lavas e junto à casa dos AA., da qual chegaram cada vez mais perto.

Algumas casas foram mesmo destruídas, confundindo a propriedade privada, destruindo um caminho que passava pela frente das casas das referidas povoações.

O Oceano Atlântico “comeu” pelo menos 55 a 60 metros dos terrenos delimitados pela linha das dunas, ou seja os “………………..”, propriedade da R. Câmara Municipal da Figueira da Foz, do qual foi destacado o lote onde foi construída a sua casa de habitação.

Tal facto levou a que o Estado, em 83/84, construísse um molhe na ………….. a fim de proteger e evitar que as águas continuassem a atingir as dunas e a “………….”.

Desde 2000 as águas do mar aceleraram a progressão em direcção à costa, encurtando-a em comprimento mais de 50 metros, alterando a fisionomia da linha de costa que se desenvolvia, desde a Figueira da Foz até à Leirosa, em linha recta para passar a ter a forma de uma pronunciada linha quebrada.

As obras e alterações descritas vieram pôr em causa a linha limite que demarcava a propriedade privada do domínio marítimo, criando confusão e dúvidas com o decurso do tempo e das décadas do local exacto onde terminava o domínio privado e começava o público e vice-versa.

Em 77/78 a Câmara Municipal Ré deu início à construção de obras de urbanização, nos terrenos de que era proprietária, ou seja dos “………… ou ………….”, nos quais se acha a casa hoje dos AA., implantando aí uma Avenida (denominada ……………..) marginal à praia e um paredão, separando a propriedade privada da praia da ……….. e lotes para construção, sob os n.ºs 43 a 46, um Largo Público, com estacionamento público e um bebedouro.

O Estado, com o avanço das águas, e após a construção da urbanização, veio a pôr em causa a propriedade dos AA., redefinindo uma nova linha limite do domínio marítimo, situando-se a casa daqueles no domínio público municipal, antes propriedade privada da R. Câmara.

O Estado, por intermédio da Administração da Região Hidrográfica do Centro, IP, começou há cerca de dois / três anos a afirmar que o terreno onde se acha implantada a casa dos AA e demais construções vendidas em hasta pública pela Câmara da Figueira da Foz, estão edificadas no domínio público marítimo, redefinindo-o por auto de 15.11.93, não podendo essa redefinição administrativa do domínio público administrativo incidir sobre a propriedade dos AA, afectando-a.

E começou, por intermédio da ARH, a exigir-lhes (e a outros) o pagamento de uma taxa de recursos hídricos, sempre recusada pelos AA.

A Câmara da Figueira da Foz doou ao Estado um terreno com a área de 7.590.000 m2, que vai desde a Cova da Gala até à Vala dos Covos da ………………, e que é propriedade privada do Estado, fora do seu domínio público marítimo, terreno esse de que destacou prédios por “cedência” outros por venda.

Estão criadas dúvidas, incertezas, tanto mais que inexistem marcos, sobre as estremas do prédio dos AA. e não foi a linha de demarcação do seu prédio que alterou, mas sim aquela que se pode e pretende definir por via legal, em consequência de fenómenos naturais e das obras a que o R. Estado procedeu.

A casa dos AA. é envolvida por um muro que dela faz parte, pelo poente, ou seja do lado em que confina com a Avenida ………………, integrada no domínio público municipal.

E é por essa linha definida pelo muro, por essa linha definida de sul para norte pelos muros das habitações dos lotes 43, 44 e 45, da Avenida …………, até atingir o passadiço que envolve a última casa a sul, propriedade de E……….., que deve fixar-se a estrema.

O Estado vem causando angústia, incómodos e noites sem dormir, sentindo-se profundamente incomodados, sempre que recebem uma carta do Estado a exigirem-lhes uma taxa por terreno que pagaram e que é seu, sentindo medo de o perderem.
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Assim pedem que os RR. sejam condenados:

-a reconhecer que os AA. são donos do prédio identificado no art.º 9.º da p.i.;

-a abster-se de praticar quaisquer actos que ofendam a sua propriedade e posse;

-a proceder à demarcação das linhas de estremas norte - sul do prédio dos AA e do dos RR e destes entre si;

-a verem fixada a linha de estrema da casa dos AA. de acordo com o alegado nos art.ºs 120.º e 121.º, da p.i (já enunciada acima) e, por fim a indemnizarem os AA. pelos danos causados no valor, nunca inferior a 10.000 €.
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Os AA. informaram que esta acção repete exactamente os moldes de outra, sob o n.º 841/11.3 TBFIG, que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz e que findou por despacho saneador de 6.1.2012, concluindo, precedendo argumentação, que se não subscreve, pela “...competência dos tribunais administrativos para apreciação dos pedidos formulados pelos AA.”, declarando incompetente o Tribunal comum em razão da matéria e absolveu os RR da instância ao abrigo dos art.ºs 105.º n.º 1, do CPC, sem prejuízo do disposto no art.º 105.º n.º 2, do CPC.
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Os RR. contestaram a acção intentada na jurisdição administrativa, alegando o Estado, e por impugnação, que o prédio que os AA. dizem ser seu, na data da aquisição, já pertencia ao domínio público do Estado, como pertence até ser desafectada, em conformidade com o procedimento previsto no art.º 19.º, da Lei n.º 54/2005, de 15/11, o que era do conhecimento do A., devendo a acção improceder, se, antes, se não concluir pela falta de representação de poderes, uma vez que a representação cabe ao M.º P.º, absolvendo-se da instância.
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A Ré Câmara contestou a necessidade de proceder a definição de estremas, conhecidas dos AA., não questionadas por si, não se justificando a sua presença na demanda, nenhum facto ilícito praticando; o prédio dos AA. que antes de 1971 se situava em zona fora do domínio público marítimo não pode deixar de o continuar após a entrada em vigor do Dec. -Lei n.º 468/71, de 5/11.

Os AA. replicaram.
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O TAFC proferiu decisão em que afirmou estar em causa o reconhecimento do direito de propriedade e a definição de limites em controvérsia, questões que escapam à integração no âmbito da relação jurídica administrativa e à competência da respectiva jurisdição, sendo competente a jurisdição comum, declarando a respectiva incompetência em razão da matéria, absolvendo-se da instância as entidades demandadas.
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Neste TC, o EXm.º Procurador Geral-Adjunto emite parecer que vai ao encontro do decidido na jurisdição administrativa, ou seja no sentido de caber à jurisdição comum a apreciação dos pedidos formulados pelos AA., salvo no que respeita à apreciação do pedido de indemnização por danos morais, este de decidir na jurisdição administrativa - art.º 4.º n.º 1, g), do ETAF.
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Colhidos os legais vistos, cumpre decidir:

Está delineado em função do precedentemente exposto um conflito negativo de jurisdição, na medida em que duas entidades judiciais pertencentes a diferentes jurisdições -comum e administrativa- se atribuem recíproca competência, rejeitando a própria - art.ºs 109.º n.º 1, 110.º n.º 1 e 111.º n.º 2, do CPC.

A nossa organização judiciária consagra uma ordem jurisdicional administrativa e fiscal que a Constituição faz assentar num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas e fiscais”, mas “sem erigir esse critério num dogma, uma vez que a Constituição, como o Tribunal Constitucional tem entendido, não estabelece uma reserva material absoluta, impeditiva aos tribunais comuns de competência em matéria administrativa ou fiscal ou da atribuição à jurisdição administrativa de competência em matérias de direito comum”, escrevem João Caupers e João Raposo, in A Nova Justiça Administrativa, pág. 11. Sirva de exemplo desta dessincronia a competência atribuída aos tribunais comuns para arbitramento da indemnização por via de prisão de grosseiro erro judiciário - art.º 4.º n.º 3 a), do ETAF.

E a CRP no seu art.º 212.º, n.º 3, atribui aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, enquanto órgãos de soberania, cabe a administração da justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais -art.º 1.º, do ETAF, na redacção dada pela lei n.º 107/2003, de 31/12, a tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos fundados em normas de direito fiscal e administrativo e fiscal, decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo do direito administrativo e fiscal.

E a sua competência fixa-se no momento da propositura da acção (em 2011) - art.º 5.º, do ETAF.

O âmbito do domínio da justiça administrativa e da distinção entre direito privado e público passa, pois, pela definição do que devam ser relações públicas, que, para Vieira de Andrade, in Justiça Administrativa, Lições, Almedina, pág. 56, são aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, actua na veste de autoridade pública, munido de um poder de “imperium” com vista à realização de um interesse público legal.

E assim a jurisprudência o tem entendido, de que são exemplos os ACS. deste Tribunal de 5.6.2008, P.º 21/06, de 4/11/2008, P.º 21/07, de 4.11.09, P.º 6/09, de 28/10 e de 12.1.12; P.º 0/11.

São relações jurídicas administrativas externas ou interpessoais as que se estabelecem entre a Administração e os particulares, em que ocorre uma prevalência do interesse público sobre o particular traduzido na atribuição de poderes de autoridade à Administração, segundo Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, I; 57.

Fernandes Cadilha sustenta que, por relação administrativa, se deve entender a estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração Pública, regulada por normas de direito administrativo e das quais resultam posições subjectivas.

A relação jurídico-administrativa estabelece-se, por regra, pois, entre pessoas colectivas públicas, aquelas que actuam um poder público, em vista da realização de um interesse público legalmente definido, no cumprimento de deveres inerentes à autoridade pública.

Para o Prof. Freitas do Amaral, in Direito Administrativo, III, 439-440, a relação jurídico-administrativa confere poderes de autoridade pública ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou correspondentes deveres.

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A questão da competência do tribunal afere-se, como é jurisprudência sem divergência (Cfr. Acs. do STJ de 12.2.2002, 15.1.2004, 27.1.2004, 18.3.2004,13.5.2004, 13.3.2008 e 10.4.2008) pelo pedido, pela pretensão do autor e seus fundamentos, ou seja pela causa de pedir, enquanto facto jurídico concreto devidamente explicitado, segundo a teoria da substanciação, que rejeita afirmações vagas, não factualmente concretizadas, ou seja pelo que é “disputatum”, em antítese com o que, mais tarde, será decidido, segundo Redenti, Processo Civil, I, 265, e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 86, sem descer à apreciação da bondade, ao mérito do “quod disputatum” e mesmo à legitimidade processual.

A competência do tribunal é a medida da sua jurisdição e é no art.º 4.º do ETAF, que, de uma forma não taxativa, mas meramente exemplificativa, se enumeram os litígios que lhe incumbe decidir, eliminando-se o critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido - AC. do TC, p.º 8/09, de 7/7/2009 -ou seja a sua pertinência à gestão pública ou privada.

O seu n.º 1 segue a técnica do enunciado genérico dos actos sobre que incide a sua competência material; os seus n.ºs 2 e 3 materializam algumas excepções àquela competência.

Os tribunais administrativos e fiscais apresentam-se hoje como uma área própria, uma reserva de jurisdição que espelha o seu núcleo essencial, ainda que algumas matérias possam ser pontualmente atribuídas a outra jurisdição - Ac. do STA, de 3.10.96, Rec.º 41403, 26.2.97, Rec.º n.º 41487 e do TC, P.º n.º 372/94, DR 25.07.97.

E nos termos do artigo 13º do CPTA “o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.”.
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A pretensão que moveu os AA a intentar a acção, primeiramente no Tribunal Judicial da Figueira da Foz e, face ao seu desfecho, depois no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, é o de reconhecimento da posse e propriedade de um prédio urbano, acima descrito, adquirido pelos AA. aos seus donos, que o haviam comprado à Câmara Municipal da Figueira da Foz, desanexado, entretanto, de um prédio que fora propriedade privada daquela autarquia.

O Estado, por intermédio da Administração da Região Hidrográfica do Centro, IP, começou há cerca de dois / três anos a afirmar que o terreno onde se acha implantada a casa dos AA e demais construções vendidas em hasta pública pela Câmara da Figueira da Foz, estão edificadas no domínio público marítimo, redefinindo-o por auto de 15.11.93, que não subscrevem.

Estão criadas dúvidas, incertezas, tanto mais que inexistem marcos, sobre as estremas do prédio dos AA. e não foi a linha de demarcação do seu prédio que se alterou, mas sim aquela que se pode e pretende definir por via legal, em consequência de fenómenos naturais e das obras (molhes) a que o R. Estado procedeu.

A casa dos AA. é envolvida por um muro que dela faz parte, pelo poente, ou seja do lado em que confina com a Avenida ………………., integrada no domínio público municipal.

E é por essa linha definida pelo muro, por essa linha definida de sul para norte pelos muros das habitações dos lotes 43, 44 e 45, da Avenida …………., até atingir o passadiço que envolve a última casa a sul, propriedade de E…………., que deve fixar-se a estrema.

Enquanto direito (quase) absoluto, o direito de propriedade, confere ao seu titular o de o fruir com exclusão da intromissão de terceiros, salvas as excepções previstas por lei, inserindo-se nos seus poderes o de fixar as suas estremas, estando os proprietários vizinhos obrigados a concorrerem com aquele para a definição dos seus limites, para o que dispõe da correspondente acção de demarcação (a actio finium regundorum, dos romanos) nos termos dos art.ºs 1305.º 1353.º, do CC.

A acção tem como pressuposto a indefinição de limites, pois sendo conhecidos, o meio processual adequado é o recurso à acção de declaração e condenação ao reconhecimento do direito de propriedade posto em crise.
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Tal como se mostram contextualizados os pedidos delineados a veste que lhes corresponde é a de puro direito privado; não se cuida de alcançar solução para questão emergente de relação jurídica administrativa, mas de direito privado, em que os demandados surgem despojados de poder de “imperium”, de autoridade, mesmo sendo pessoas colectivas de direito público, mas como qualquer particular, que coloca em crise, instabilizando o limítrofe entre prédios, acabando o Estado por gerar dúvidas e incertezas na linha de confinância, afectando, por último, o gozo do seu direito de propriedade e posse em sossego.

A acção, a inferir do modelo em que se verte, não tem por objecto a impugnação de limite do domínio público marítimo do Estado, mas questão referente à propriedade e posse dos AA.

A lei n.º 54/2005, de 15/11, alterada pela lei n.º 34/14, de 19/6, regula a titularidade dos recursos hídricos, criando a Agência Portuguesa do Ambiente, IP, com a finalidade, além do mais, de registar, organizar e classificar as águas do domínio público, bem como a propriedade e posse do leito, margens ou suas parcelas, criando zonas adjacente sempre que, tecnicamente, se mostre o avanço das águas por terrenos privados.

Esta lei instituiu uma comissão multidisciplinar com competência para fixação de limites, não ficando précludida “a competência dos tribunais comuns para decidir a questão da propriedade ou posse dos leitos, margens ou suas parcelas -n.º 5, do art.º 17.º- e se qualquer interessado arguir nulidade no acto de delimitação que não se reporte a uma questão de propriedade deve intentar acção especial no âmbito administrativo de anulação -n.º 7.

Claro, de forma inequívoca, se mostra que é o próprio legislador a arredar da esfera de competência dos Tribunais administrativos a discussão sobre propriedade ou posse, e em termos que são de reforçar o recurso à jurisdição comum, como bem, “ab initio”, procederam os AA.
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Os AA. propõem-se, ainda, o ressarcimento de danos imateriais causados pelo Estado ao colocarem em crise as estremas entre o seu domínio e o daquele, gerando-lhes “angústia”, “incómodos”, “noites sem dormir”, sentindo-se perturbados por “verem o poderoso Estado a querer exigir-lhes uma taxa por um terreno que pagaram e que é seu ...”, do que resulta que o pressuposto desse pedido não repousa propriamente na exigência da taxa mas, mais remotamente, na inconsideração da sua propriedade e limites.

Escreveu-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 56/X, de 7.12.2005, que se converteu na Lei n.º 67/2007, de 31/12, aprovando o novo Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, em vigor na data da propositura da acção, de feição revogatória do DL. n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, que até então regia a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio de actos de gestão pública, a qual (Proposta) se socorre e mantém, por inteiramente válida, da contraposição clássica entre “pessoas colectivas de direito público e “pessoas colectivas de direito privado” esclarecendo-se que tanto a responsabilidade de umas como outra só se rege por tal diploma “... quando resulte de actuações reguladas por disposições e princípios específicos de direito administrativo” ou actuando poderes públicos de autoridade “que se não aplicam às entidades privadas”, das quais são diferenciáveis.

E o artigo 1.º de tal lei (também ela objecto de posterior alteração), fidelizado aos princípios doutrinários do autor do preâmbulo, regendo expressamente sobre a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das pessoas colectivas de direito público, sempre que, nos termos do seu n.º 1, actuem no âmbito da função administrativa, por acções e omissões no exercício das prerrogativas do poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, tornando extensivo, excepcionalmente, o seu n.º 5, o regime da responsabilidade civil extracontratual prevista no n.º 1, às pessoas colectivas de direito privado, dispondo no seu n.º 5, que:

“As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil das pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

O pedido em causa, fundado na violação do direito à tranquilidade e ao sossego, enquanto direito imaterial, é endereçado a pessoas colectivas de direito público, mas surge como puro derivado dos demais pedidos, dos quais seria ilógico desligar, como sua consequência imanente que é, não devendo, por isso mesmo, ser de atribuir o seu conhecimento à jurisdição administrativa, em princípio vocacionada para dirimir a responsabilidade civil extracontratual do Estado, subentendendo-se que por actos de direito público.

Ao fim e ao cabo julga-se pertinente a máxima “acessorium principale sequitur”.
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Pertinentes, ainda, as considerações doutrinárias de Jorge Miranda para quem a inserção do art.º 212.º n.º 3, na CRP, criou um modelo de jurisdição administrativa tendo como núcleo central a relação administrativa teve por escopo a “abolição do carácter facultativo da jurisdição administrativa e não a consagração de uma reserva de competência absoluta dos tribunais administrativos” o que desde que se respeite o modelo típico, permite sem ofensa à lei constitucional “alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações não administrativas, in “Parâmetros Constitucionais da Reforma Administrativa, CJA, n.º 24, pág.3 e segs, seguindo-se, de perto, o Ac. do TC, de 16.2.2012, P:º n.º 18/11, onde se dá conta ser esse o entendimento dominante no STA, impresso nos seus Acs, do Pleno, de 18.2.98, Rec.º n.º 40.247, da Secção de 14.6.2000, Rec.º n.º 45633, de 31.10.2002, Rec.º n.º 1329/02 e do Tribunal Constitucional n.ºs 372/94, DR II Série, n.º 204 e 347/97, DR II Série, n.º 170, de 25/7, de 1997.

Idem Sérvulo Correia, in Direito do Contencioso Administrativo, pág. 714, para quem o Tribunal Constitucional “...não estabelece uma reserva material absoluta, impeditiva da atribuição aos tribunais comuns de competências em matérias administrativas ou fiscal ou da atribuição à jurisdição administrativa de matérias de direito comum, o que não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução entre direito público e privado”, o que de resto se harmoniza com a regra do art.º 66.º, do CPC, segundo a qual na falta de disposição são da competência do tribunal comum as causas não atribuídas a outra jurisdição.
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Nestes termos se declara competente, em razão da matéria, solucionando-se o conflito negativo de jurisdição, entre o 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, onde foi instaurada a acção sob o n.º 841/11.3 TBFIG e o TAFC, declarando-se competente, em razão da matéria, aquele 1.º Juízo e Tribunal, “rectius o Tribunal de Jurisdição Comum”.

Notifique.


Lisboa, 25 de Março de 2015. - Armindo dos Santos Monteiro (relator) – António Bento São Pedro – Gabriel Martim dos Anjos Catarino - José Augusto Araújo Veloso - Raúl Eduardo do Vale Raposo Borges - Jorge Artur Madeira dos Santos.