Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:027/21
Data do Acordão:07/14/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
TRIBUNAIS JUDICIAIS
DIREITO DE PROPRIEDADE
Sumário:Para a acção em que se pede, com fundamento no direito de propriedade e sua violação por um particular, a demolição de obra por este construída, são competentes os tribunais judiciais, ainda que o Autor convoque, também, normas de direito público.
Nº Convencional:JSTA000P29798
Nº do Documento:SAC20220714027
Data de Entrada:10/12/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE FARO – PORTIMÃO - INSTÂNCIA LOCAL – SECÇÃO CÍVEL - J1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LOULÉ
AUTOR: A......... E OUTRA
RÉU: C.............
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A…………….. e mulher B………….., identificados nos autos, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Portimão - Instância Local Cível, J1, acção declarativa de condenação contra o C………….., pedindo que seja “elaborada sentença que obrigue o Réu a proceder à remoção/demolição da estrutura de betão armado e respectivos painéis solares, quer por violação da alínea c) do n.º 4 do artigo 4.º do RJUE e regras constantes da memória descritiva do Alvará de Loteamento n.º 16/90 quer por violação do Direito dos Autores à Insolação – no sentido de exposição ao sol”.
Em síntese, os AA. alegam serem proprietários de um prédio urbano sito em lote confinante com lote propriedade do R e que este procedeu à colocação de um painel fotovoltaico com aproximadamente 7 metros, ocupando uma área de 25 m2, assente sobre uma estrutura de betão e que se encontra afastado cerca de 2,82 m do muro de limite do lote do R. sem que tivesse procedido a comunicação prévia para a edificação, como estaria obrigado pelo Regime Jurídico de Urbanização e Edificação. Mais alegam que a referida estrutura se localiza fora do polígono de implantação definido pelas normas do loteamento e que a edificação pelas suas dimensões “corta quase por completo a possibilidade dos AA se exporem ao sol” violando assim o seu direito à insolação, enquanto direito à saúde na vertente de direito de personalidade, direito esse superior e mais antigo relativamente à edificação em causa.

Por sentença de 01.07.2016, a Instância Local Cível de Portimão decidiu julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria considerando que “Procuram os Autores designadamente fazer cessar e, bem assim, obter a reparação de uma situação que colocam no plano da violação de normas aplicáveis em matéria de urbanismo e de violação de direitos fundamentais, no caso um direito legalmente protegido dos Autores, e directamente fundados em normas de direito administrativo, e também decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo.
Isto é, os Autores pretendem obter sentença que obrigue o Réu a demolir a estrutura de betão armado e respectivos painéis solares que edificou, em violação de normas de direito administrativo, e como em consequência dessa violação se sentem prejudicados no seu direito à exposição solar, é também o efeito de tutela deste direito que pretendem obter.
A causa de pedir é, pelo que resulta do exposto, apenas uma, embora complexa. Mas mesmo que se entendesse que poderiam destrinçar-se duas causas de pedir distintas - o que, reitera-se, não é o caso - sempre seria a causa de pedir dominante a determinar a competência material do Tribunal. E, no caso, dúvidas não existem que o pedido tem a sua base essencial na remoção, ou demolição, de obras feita em violação das regras urbanísticas.”.

Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF de Loulé), foi aí proferida sentença em 17.06.2021 a julgar aquele tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da acção.
Entendeu o TAF de Loulé que “No caso dos autos, é manifesto que não está em causa uma relação jurídica administrativa, porquanto nenhuma das partes na demanda actua no exercício de poderes ou deveres públicos. Trata-se, tão só, de dois particulares, não sendo relevante para a determinação da competência do Tribunal, em razão da matéria, que os Autores tenham alegado na causa de pedir a violação de normas administrativas, inexistindo qualquer entidade pública, ou privada no exercício de poderes públicos, que tenha sido demandada na presente lide.”.
O TAF de Loulé suscitou oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição “na parte do pedido susceptível de ser decidido pelos Tribunais” que considera ser “a parte respeitante ao pedido de remoção/demolição por alegada violação dos autores à insolação” com o fundamento de que “não cabe à função jurisdicional do Estado, seja a comum ou a administrativa, exercer ou imiscuir-se na função administrativa dos Municípios relativa à tutela da legalidade urbanística, nomeadamente na fiscalização ou na decisão de demolir obras”.

Remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos, as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019 e nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída aos tribunais da jurisdição comum.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Portimão - Instância Local Cível, J1 e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [arts. 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF]. Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do art. 212º da CRP, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está concretizada no artigo 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nº 1) e negativa (nºs 2 e 3).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Tal como os AA configuram a acção, verifica-se que os pedidos são dirigidos contra sujeito privado e respeitam, em síntese, à condenação do R. na demolição das construções que alegadamente desrespeitam normas urbanísticas e violam o seu direito de exposição ao sol, integrante do direito à saúde.
Tomando em consideração o pedido e a causa de pedir e constatando que o R., sujeito privado, não actuou no exercício de prerrogativas de poder público ou ao abrigo de disposições ou princípios de direito administrativo e que na presente acção não é demandada qualquer entidade pública, concluímos que a questão dos autos não emerge de qualquer relação jurídica administrativa, mas de uma relação no âmbito do direito privado.
Em situações paralelas à presente, cfr. os Acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 16.02.2015, Proc. nº 014/04, de 15.12.2021, Proc. nº 020/20 e de 19.04.2022, Proc. nº 07/22.7YFLSB (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Disse-se neste último: “Sobre questão próxima à dos autos debruçou-se o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 16 de Fevereiro de 2005, www.dgsi.pt, proc. n.º 014/04, cujo sumário é o seguinte: «Para a acção em que se pede, com fundamento no direito de propriedade e sua violação por um particular, a demolição de obra por este construída, são competentes os tribunais judiciais, ainda que o Autor convoque, também, normas de direito público» Estava então igualmente em causa uma pretensão de tutela de interesses privados (“Sendo de natureza privada os interesses que os AA. intentam ver acautelados…”), que os autores, particulares, afirmavam ter sido ofendidos (no caso), parcialmente, pela violação de normas de direito administrativo: “A ampliação do imóvel fabril da R. a menos de 4,80 m da parede sul do prédio dos AA; a elevação para 8 metros de uma parede, trazendo à colação uma norma de direito público, o art.° 13.° nº 2, do Regulamento do PDM, do Município de ..., nem por isso desconvoca a aplicação, sobrepondo-se-lhe, de normas de direito civil. E como bem se salienta pela pena dos AA. não prejudica em nada a competência reclamada dos tribunais comuns o facto de se convocarem, para decisão, normas de direito público, de índole administrativa, entre os fundamentos de direito em que também repousa a decisão sobre direitos privados, visto o preceituado no art.º 96.º, n.º 1, do CPC, atribuindo à jurisdição cível a assistência da plenitude de poderes para delas conhecer, inclusive dos incidentes, que se têm de compreender com o sentido lato de questões (cfr. Prof. José Alberto dos Reis, CPC, Anotado, 1, 236), nela suscitadas.”
Também o actual Código de Processo Civil, no respectivo artigo 92.º, resolve o problema da (eventual) necessidade de conhecimento, em acções cíveis, de questões prejudiciais de natureza administrativa, por via da suspensão da acção ou da extensão da competência do tribunal, nos termos ali previstos.”
Deste modo, a competência material para conhecer a presente acção cabe aos tribunais judiciais.

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Portimão - Juízo Local Cível, J1.
Sem custas.

Lisboa, 14 de Julho de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.