Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:017/19
Data do Acordão:01/30/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:CONTRATO DE EMPREITADA
IPSS
INDEMNIZAÇÃO
Sumário:De harmonia com o disposto na al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, a competência da jurisdição administrativa para conhecer de litígios relativos ao incumprimento de obrigações decorrentes de contrato de empreitada celebrado entre privados só ocorre se essa celebração tiver sido precedida de procedimento pré-contratual regido por normas de direito público, nomeadamente as atinentes à contratação pública, por imposição expressa do legislador.
Nº Convencional:JSTA000P25508
Nº do Documento:SAC20200130017
Data de Entrada:03/14/2019
Recorrente:A………., LDA., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO E O TRIBUNAL JUDICIAL DO PORTO – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VILA NOVA DE GAIA – JUIZ 1.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 17/19

Acordam no Tribunal de Conflitos:

I. RELATÓRIO

1. O presente conflito de competências tem na sua origem uma acção administrativa comum sob a forma ordinária intentada no TAF do Porto, em 09.10.15, por A……….., LDA (A……..), contra o CENTRO DE CONVÍVIO ……….., IPSS.
De forma sintética, a A. A………… formulou pedido indemnizatório fundado no incumprimento, por parte do R., de obrigações decorrentes do contrato de empreitada celebrado entre ambos na sequência de um procedimento de ajuste directo com consulta prévia. No âmbito deste contrato de empreitada a A., a quem foi adjudicada a obra, tem a qualidade de empreiteira, e o R. a qualidade de dono da obra. O valor global da empreitada foi fixado em € 796.955,55.
Na contestação apresentada, o R. defendeu-se por excepção e por impugnação, tendo, no que respeita à primeira, suscitado a incompetência ratione materiae do TAF do Porto.
O TAF do Porto, por decisão de 29.11.18, julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta da jurisdição administrativa, sustentando, fundamentalmente, “que a competência da jurisdição administrativa se estende, apenas, aos contratos, que por determinação legal, tenham sido precedidos de um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público. Ora, não é o caso dos presentes autos; e, como tal, porque não se trata de um concurso submetido, por determinação legal, a procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, a competência da jurisdição administrativa é afastada”.
Na sequência desta decisão, a A., ao abrigo do artigo 14.º, n.º 2, do CPTA, requereu a remessa dos autos para o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Instância Central de Vila Nova de Gaia, o qual, de igual modo, se julgou incompetente. De forma breve, porque, a seu ver, o contrato de empreitada em questão se move numa ambiência de direito público, designadamente pelo facto de as partes terem acordado aplicar ao procedimento contratual o DL n.º 59/99, de 02.03 (Aprova o novo regime jurídico das empreitadas de obras públicas – diploma legal que seria revogado pelo DL n.º 18/2008, de 29.01/Código dos Contratos Públicos).
2. O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de o presente conflito ser resolvido a favor dos tribunais administrativos por, em seu entender, ser aplicável ao caso a al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF (cfr. parecer de fls. 512 a 518).

II. ENQUADRAMENTO E APRECIAÇÃO DO CONFLITO

3. A única questão a decidir no âmbito do presente conflito é a de saber qual a jurisdição materialmente competente para conhecer do pedido indemnizatório formulado pela autora A……….. contra o réu CENTRO DE CONVÍVIO …………., IPSS, pedido motivado pelo alegado incumprimento de obrigações contratuais. Os factos a considerar são, para o que agora interessa, os mencionados no relatório.
Vejamos.
4. O A. alegou ter celebrado com o R., em 29.04.09, o contrato de empreitada designada “Construção do Centro de Acolhimento ………………” (contrato de empreitada junto aos autos) e ter cumprido todas as suas cláusulas, não tendo, pelo contrário, o R. cumprido as suas obrigações, quer porque não procedeu à elaboração do auto de recepção provisória, apesar de a obra estar em condições de ser recebida, quer porque não pagou à A. o preço total dos trabalhos realizados por esta e, bem assim, outras quantias da sua responsabilidade.
Em face deste incumprimento, a A. A………. intentou acção administrativa comum sob a forma ordinária no TAF do Porto, o qual se julgou incompetente em razão da matéria. Como se viu, idêntica decisão de incompetência absoluta foi proferida Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Instância Central de Vila Nova de Gaia.
5. Um litígio idêntico ao dos autos, envolvendo o pretenso incumprimento por parte de uma IPSS de obrigações decorrentes de um contrato de empreitada celebrado com um privado, foi já tratado em mais do que uma ocasião por este Tribunal de Conflitos, cabendo convocar para aqui o Conflito n.º 21/12, de 23.05.13, e o Conflito n.º 35/15, de 04.02.16. A orientação que se extrai destes dois arestos é a de que o artigo 4.º, al. e), do ETAF, deve ser lido no sentido de que os tribunais administrativos apenas serão competentes para conhecer deste tipo de litígios na medida em que haja disposição legal que imponha a aplicação das regras da contratação pública aos contratos de empreitada a celebrar entre uma IPSS e um particular. Sendo esta uma orientação jurisprudencial na qual nos revemos, cumpre agora verificar se, in casu, se verifica uma tal imposição legal.
6. Antes de mais se diga que não colhe a tese da A. de que as partes concordaram em aplicar ao procedimento concursal o disposto no DL n.º 55/99, de 02.03 (Aprova o novo regime jurídico das empreitadas de obras públicas), logo, seriam os tribunais administrativos os competentes para dirimir os litígios emergentes de um tal procedimento. E não colhe, não porque esse diploma já estivesse, na altura da preparação e celebração do contrato, revogado. Não colhe por outros motivos que se passam a indicar.
Em primeiro lugar, se a afirmação da A. relativa à remissão para o DL n.º 55/99 corresponde à verdade, esqueceu-se a A. de mencionar uma outra cláusula – a cláusula décima terceira – do contrato de empreitada em que se expressamente se estipula que “Para todas as questões emergentes deste contrato é estipulado o foro da Comarca de Vila Nova de Gaia”, estando aqui sugerida a jurisdição comum.
E, em segundo lugar, nada impede dois sujeitos privados de, como expressão da sua autonomia contratual, adoptarem o regime jurídico das empreitadas públicas para efeitos de regulamentação de um contrato de empreitada de obras que pretendem celebrar. Mas mais. Uma tal remissão para o regime jurídico das empreitadas de obras públicas não nos coloca automaticamente em presença de uma relação jurídico-administrativa. Como afirma Licínio Lopes, “Na verdade, não é o facto de o concurso ser público e de a regulamentação para ele estabelecida ser a do regime jurídico das empreitadas de obras públicas que se passará a estar perante um contrato administrativo, nem, antes disso, que o procedimento pré-contratual seja jurídico-público e que os actos praticados no seu âmbito possam ser qualificados como actos administrativos, designadamente o acto de adjudicação” (cfr. LICÍNIO LOPES, “Aplicação do regime jurídico das empreitadas de obras públicas às Instituições Particulares de Solidariedade Social”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 55, Janeiro/Fevereiro 2006, p. 29).
Como se disse há pouco, o que verdadeiramente releva, para efeitos de determinação da jurisdição competente, é, perante um caso concreto, aferir se existe disposição legal que imponha a aplicação das regras da contratação pública aos contratos de empreitada a celebrar entre a IPSS e o particular. Ora, no caso vertente, e tendo em consideração o quadro jurídico vigente e aplicável aquando da celebração do contrato de empreitada (e do respectivo procedimento pré-contratual), não havia obrigação legal de adoptar o regime jurídico das empreitadas de obras públicas, tendo sido essa adopção fruto, exclusivamente, da vontade das partes contratantes.
Quanto ao artigo 23.º (Realização de obras, alienação e arrendamento de imóveis) do DL n.º 119/83, 25.02 (diploma que Aprova o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social), cuja redacção originária apenas seria alterada pelo DL n.º 172-A/2014, de 14.11, dispunha o mesmo, no seu n.º 1, que “A empreitada de obras de construção ou grande reparação, bem como a alienação e o arrendamento de imóveis pertencentes às instituições, deverá ser feita em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente”. Significa isto que a escolha do concurso público era opcional.
Quanto ao artigo 275.º do Código dos Contratos Públicos/DL n.º 18/2008, de 29.01 (Contratos subsidiados), na sua versão originária aplicável ao caso dos autos, dispunha o mesmo, no seu n.º 1, que “As regras previstas no presente Código relativas à formação de contratos de empreitada de obras públicas são também aplicáveis no caso da formação de contratos de empreitada celebrados por entidades não referidas no artigo 2.º ou no n.º 1 do artigo 7.º, desde que: a) Sejam financiados directamente em mais de 50 % por qualquer das entidades adjudicantes referidas no artigo 2.º; e b) O respectivo preço contratual seja igual ou superior ao valor referido na alínea b) do artigo 19.º”. Tendo em conta as remissões necessárias (art. 19.º do CCP e alínea c) do artigo 7.º da Directiva n.º 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março), e quanto ao alcance da al. b), conclui-se que as regras relativas à contratação pública se aplicariam a contratos de empreitada “cujo valor estimado, sem Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), fosse igual ou superior a 6 242 000 euros”. Ora, o valor global da empreitada em causa foi fixado em € 796.955,55, valor bem abaixo do limiar dos supra mencionados € 6 242 000,00. Sendo os pressupostos do n.º 1 do artigo 275.º do CCP de verificação cumulativa, o não preenchimento de um deles é suficiente para determinar que, in casu, não se apliquem obrigatoriamente ao contrato de empreitada celebrado pela A………. e pelo CENTRO DE CONVÍVIO ……………, IPSS, as regras previstas no CCP relativas à formação de contratos de empreitada de obras públicas – tornando-se, pois, irrelevante saber se a obra foi financiada “em mais de 50 % por qualquer das entidades adjudicantes referidas no artigo 2.º”.
Tanto basta para concluir que, em aplicação da orientação jurisprudencial definida nos, entre outros, Conflitos n.os 21/12 e 35/15, não são os tribunais administrativos os tribunais competentes para dirimir o concreto litígio que opõe a A…….. ao CENTRO DE CONVÍVIO ……………., IPSS.
7. Termos em que se decide resolver o presente conflito de jurisdição atribuindo a competência para conhecer do processo que lhe está subjacente aos tribunais judiciais.

Sem custas.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2020. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Joaquim António Chambel Mourisco – José Augusto Araújo Veloso – José Luís Lopes da Mota – José Francisco Fonseca da Paz – Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado.