Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:05/22
Data do Acordão:06/01/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P29497
Nº do Documento:SAC2022060105
Data de Entrada:02/15/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DE LISBOA OESTE, CASCAIS - INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA U02
AUTOR: ADC - ÁGUAS DE CASCAIS, SA
RÉU: CONDOMÍNIO A………….
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 5/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

Relatório
AdC - Águas de Cascais, SA requereu em 16.03.2015 uma injunção contra Condomínio A…………, Carcavelos, pedindo o pagamento da quantia de 582,96 € respeitantes a dívida, juros e taxas de justiça, de facturas não pagas relativas ao fornecimento de água correspondente à diferença entre o total de água medido pelo conjunto dos contadores divisionários instalados naquele prédio e o total de água medido por contador totalizador (vulgo, contador padrão), instalado no mesmo prédio, ao abrigo de contrato celebrado. Após a apresentação da oposição, requereu a redução do pedido de pagamento para a quantia de 318,16 €.
O requerido deduziu oposição e o processo foi remetido para distribuição no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de Cascais [Proc. n.º 43522/15.3YIPRT] que, por decisão de 10.09.2015, veio a declarar-se materialmente incompetente para conhecer do litígio por considerar que "Tal contador não tem como função medir o consumo de água (e não o mede), medindo apenas a quantidade global de água que entra no prédio, sendo a cobrança de água, nestas circunstâncias, imposta pela fornecedora de água ao consumidor final, sendo que os conflitos a dirimir resultantes da instalação de um contador destas características devem ser dirimidos pela jurisdição especializada dos tribunais administrativos e fiscais, nas termos do disposto no artº 4º nº 1 do ETAF, nas suas diversas alíneas, mas em especial na sua alínea d).
Como se refere no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 25-06-2013 (Processo nº 033/13, relatado por Rosendo José, integralmente disponível em www.dgsi.pt), "Compete aos tribunais tributários o conhecimento de acção em que uma empresa concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água pretende cobrar o «preço fixo» e consumos por um contador «totalizador» que precede os contadores das fracções e das partes comuns de um condomínio, por estarem em causa tarifas, taxas e encargos com exigências impostas autoritariamente em contrapartida do serviço público prestado, relação jurídica que é regulada por normas de direito público tributário" - no mesmo sentido se decidiu, ainda, nos Acórdãos do Tribunal de Conflitos n.º 038/13 de 18.02.2013, relatado pelo Sr. Cons. Paulo Sá; n.º 039/13 de 05.11.2013, relatado pelo Sr. Cons. Rui Botelho e n.º 045/13 de 29.01.2014, relatado pelo Sr. Cons. Costa Reis.". Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, também este Tribunal por decisão proferida em 26.08.2020 se considerou incompetente em razão da matéria por entender que «(...) a pretensão formulada nos autos de condenação ao pagamento daqueles serviços de fornecimento de água efectuados pelo A. enquanto prestador, sustenta-se no incumprimento por banda do R. enquanto consumidor ou utilizador final do correspondente contrato de fornecimento celebrado pelas partes, relativo ao preço devido por aquela prestação.
Ou seja, estamos aqui face a um contrato sinalagmático de que derivam obrigações de cumprimento das prestações por ambas as partes, o qual "... não é atingido por uma regulação de direito público..." nas doutas palavras do Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 21.01.14, proferido no Proc nº 044/13, que aqui se acolhe por entendermos de igual modo que a matéria de incumprimento de contrato de fornecimento de água não se insere numa relação jurídica administrativa-tributária, antes resulta numa relação de direito privado submetida aos Tribunais Comuns, ainda que a entidade fornecedora seja uma entidade pública ou uma concessionária. (...)
No referido Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 21.01.14, relativamente à questão de saber qual o tribunal competente para conhecer a acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias na qual a Autora, concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos municipais de distribuição de água, pede a condenação do Réu no pagamento de quantias relativas ao fornecimento de água objecto do referido contrato, decidiu-se pela competência dos tribunais judiciais.
Nesse mesmo sentido hoje, aliás, o legislador expressamente excluiu do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal «[a] apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva», como resulta do disposto na alínea e) do n.º 4 do artº 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, com a redacção que lhe foi dada pelo art.º 2.º da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro.».
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito de jurisdição e remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro e nada disseram.
A Exma. Magistrada do MP emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Instância Local Cível de Cascais - Juiz 2.

Apreciação da questão
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.º, n.º 1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, sendo aqui aplicável a redacção dada pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, por ser a vigente na data em que o requerimento de injunção deu entrada - 16.03.2015)
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que essa competência se fixa no momento em que a acção é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente (artigo 5.º do ETAF e artigo 38.º da LOSJ).
Considerando que "a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente" (artigo 5.º do ETAF) e que o requerimento de injunção foi apresentado no Balcão Nacional de Injunções em 16.03.2015 (data que releva como propositura da acção, cfr. neste sentido os Acórdãos deste Tribunal de 20.01.2021, Proc. n.º 01574/20.5T8CSC.S1 e de 24.02.2021, Proc. n.º 01573/20.7T8CSC.S1, disponíveis em www.dgsi.pt), não é aqui aplicável a alteração que a Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, introduziu ao artigo 4.º do ETAF e que veio excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal «a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva».
A questão que está em causa nos autos é a de saber qual a jurisdição competente para apreciar um litígio respeitante ao pagamento de facturas de fornecimento de água correspondente à diferença entre o total de água medido pelo conjunto dos contadores divisionários instalados naquele prédio e o total de água medido por contador totalizador (vulgo, contador padrão) instalado no mesmo prédio ao abrigo de contrato celebrado entre a requerente, uma empresa concessionária do Sistema Municipal de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais do Município de Cascais, e um condomínio.
Ora, esta questão não é nova. Este Tribunal dos Conflitos tem vindo a decidir diversos casos de contornos essencialmente iguais aos do presente e em que, na generalidade, concluiu tratar-se de questão da competência dos tribunais tributários - cfr. acórdãos de 25.06.2013, Proc. n.º 033/13; de 26.9.2013, Proc. n.º 030/13; de 05.11.2013, Proc. n.º 039/13; de 18.12.2013, Procs. n.ºs 038/13 e 053/13; de 20.01.2021, Proc. n.º 01574/20.5T8CSC.S1, de 24.02.2021, Proc. n.º 01573/20.7T8CSC.S1, de 15.09.2021, Procs. nºs 27/20, 01/21 e 07/21 e de 19.01.22, Proc. 35/21 (todos disponíveis em www.dgsi.pt). Também o Supremo Tribunal Administrativo se tem pronunciado no mesmo sentido (cfr. acórdão do Pleno da Secção do CT de 10.04.2013, Proc. nº 15/12 e acórdãos da Secção do CT, entre outros, de 04.11.2015, Proc. n.º 124/14 e de 17.05.2017, Proc. n.º 1174/16, também disponíveis em www.dgsi.pt).
Acompanhando o que se decidiu no acórdão de 25.6.2013, Proc. n.º 033/13, acima citado, está em causa uma acção que «emerge do litígio provocado pela exigência ao condomínio, pela empresa concessionária do abastecimento de água, de um preço fixo por um contador totalizador que colocou no edifício, como contrapartida do serviço. A imposição deste encargo a estes contadores reveste a natureza de questão fiscal por resultar de "resolução autoritária que impõe aos cidadãos o pagamento de uma prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas". Igualmente a questão de saber se é devida a tarifa peja água contada por um contador totalizador colocado fora e antes do circuito dos contadores dos consumidores de um prédio em regime de propriedade horizontal releva de normas legais e regulamentares sobre a prestação deste serviço público que são normas de direito público e extravasam do regime comum dos contratos. Além disso são matérias que relevam da natureza fiscal segundo o critério que acaba de enunciar-se.
Aliás, o Pleno da Secção do Contencioso Tributário parece aceitar esta competência tal como decorre do recente Acórdão de 10-04-2013, P. 015/12, onde se decidiu:
"No domínio de vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro) e do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, uma vez que, o termo "preços" utilizado naquela Lei equivale ao conceito de "tarifas" usado nas anteriores Leis de Finanças Locais e a que a doutrina e jurisprudência reconheciam a natureza de taxas, pelo que podem tais dívidas ser coercivamente cobradas em processo de execução fiscal".
No caso referido estava em apreciação a cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal, mas a cobrança de dívidas a uma concessionária parece poder ser vista no mesmo enquadramento e com a mesma solução, quando no Acórdão se inclui o próprio diferendo sobre o preço da água - fixado segundo regras de direito público em regime excluído da concorrência - como aspecto submetido à competência dos tribunais tributários, mesmo quando se reconhece que o concessionário não dispõe da possibilidade de recorrer à execução fiscal.
Podemos pois concluir que a jurisdição competente para conhecer do litígio, tal como se concluiu nos aludidos Conflitos 14/06 e 17/10, são os tribunais administrativos e fiscais através dos tribunais tributários, face ao disposto no artigo 49.º n.º 1 al. c) do ETAF.»

Pelo exposto, acordam em julgar competente para a presente acção o Juízo Tributário Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.
Sem custas.
Lisboa, 01 de Junho de 2022. - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia (relator) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.