Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:010/20
Data do Acordão:06/01/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
TRIBUNAIS JUDICIAIS.
ACIDENTE DE TRABALHO IN ITINERE.
Sumário:Não podendo o acidente em causa nos autos considerar-se abrangido pelo Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública aprovado pelo DL nº 503/99, atento o disposto no art. 4º, nº 4, al. b), do ETAF, a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P29500
Nº do Documento:SAC20220601010
Data de Entrada:05/20/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO - JUÍZO DO TRABALHO DO PORTO - JUIZ 2, E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO
AUTOR: A…………
RÉU: CMPEA — EMPRESAS DE ÁGUAS DO MUNICÍPIO DO PORTO EM.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 10/20


Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A…………, identificado nos autos, participou no Juízo do Trabalho do Porto que sofrera um acidente de trabalho in itinere e que, quer a sua entidade patronal, CMPEA - Empresa de Águas do Município do Porto, E.M., quer a seguradora B………… – Companhia de Seguros, SA, para a qual fora transferida a responsabilidade por acidentes de trabalho, se recusavam a enquadrar tal ocorrência como acidente de trabalho.
O Juízo do Trabalho do Porto, por despacho de 25.06.2019, julgou-se incompetente em razão da matéria, por entender que: “(…) tendo em atenção que, como resulta dos autos, o trabalhador (…) exerce funções públicas, em regime de contrato de trabalho em funções públicas, ao serviço de uma autarquia local, é-lhe aplicável o regime do DL 503/99, de 20/11”, concluindo que “(…) de acordo com o disposto no nº 1 do art° 48°, do DL 503/99 de 20 de novembro, a competência para conhecer de eventuais acções intentadas com vista ao reconhecimento de tal direito ou interesse cabe aos tribunais administrativos”.
A requerimento do A. foram os autos remetidos ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF do Porto). Nesse Tribunal, após notificação para o efeito, juntou petição inicial aperfeiçoada intentando acção administrativa de condenação à prática de acto legalmente devido contra CMPEA, Empresa de Águas do Município do Porto, EM, pedindo a sua condenação a proferir decisão sobre a qualificação do acidente ocorrido em 29.01.2018, seguindo-se os demais trâmites previstos no DL nº 503/99, de 20/11.
Alegou em síntese que está vinculado à Câmara Municipal do Porto mediante contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, encontrando-se ao serviço da R. desde 28.10.1985, por acordo de cedência de interesse público entre a Câmara e a R. e que no dia 29.01.2018 sofreu um grave acidente no percurso entre a residência e o local de trabalho.
A R. contestou e, além do mais, arguiu a incompetência em razão da matéria do Tribunal. Na réplica o A defendeu a competência dos tribunais administrativos para apreciar o litígio.
Em saneador-sentença proferido em 10.03.2020, o TAF do Porto julgou-se também incompetente em razão da matéria.
Considerou aquele Tribunal que: “Da análise da factualidade provada e dos artigos supra, resulta que ao A. não é aplicável o Decreto-Lei n.º 503/99, de 20/11, uma vez que o seu acidente não ocorreu ao serviço de entidade empregadora pública (mas sim privada, como se explanou supra), sendo, por isso, aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho. Mais, por força da cedência de interesse público, o A. detém um novo vínculo que determina a sujeição ao regime jurídico-laboral de direito privado regulado pelo Código do Trabalho que fica a coexistir com o (suspenso) vínculo originário de emprego público estabelecido com o Município.” E, portanto, nos autos “não está em causa um litígio emergente de relações jurídicas administrativas e fiscais (cf. artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e 144.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), mas antes um litígio decorrente de contrato de trabalho, excluído do âmbito da jurisdição administrativa nos termos do artigo 4.º, n.º 4, aI. b) do ETAF

Suscitada oficiosamente a resolução do conflito no TAF do Porto, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º. da Lei n.º 91/2019 e nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.

2. Os Factos
Os factos com interesse para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º, nº 1, da CRP).
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do art. 212.º da C.R.P., em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4.º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4). Deste último preceito importa reter o disposto na alínea b) do nº 4 que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios “decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”.
O A era trabalhador dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento do Porto desde 28.10.1985, com a transformação dos SMAS em empresa municipal ficou vinculado por contrato de trabalho em funções públicas à Camara Municipal do Porto desde 24.10.2016, encontrando-se ao serviço da Ré por acordo de cedência de interesse público.
A R. CMPEAE, que usa abreviadamente a denominação Água e Energia do Porto, EM, é, segundo os seus estatutos, uma empresa local de âmbito municipal, de responsabilidade limitada, nos termos do art. 1º da Lei nº 50/2012, de 31 de Agosto, e o estatuto do seu pessoal baseia-se no contrato individual de trabalho, podendo exercer funções na empresa, mediante acordo de cedência de interesse público, funcionários das administrações central, regional e local.
De acordo com o novo regime de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas ─ aprovado pela Lei nº 12-A/2008, de 27/2 -, a relação jurídica de emprego público passou a constituir-se por duas formas: i) nomeação e ii) contrato de trabalho em funções públicas, correspondendo este último ao regime geral. Por sua vez, o regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas veio a ser aprovado pela Lei nº 59/2008, de 11/9.


Finalmente, a Lei nº 35/2014, de 20.06 (LTFP), que revogou aquelas, prevê no seu art. 6º as modalidades de prestação de trabalho em funções públicas que se traduzem no vínculo de emprego público e no contrato de Prestação de serviço. E, conforme o nº 3 deste preceito, as modalidades do vínculo de emprego público são o contrato de trabalho em funções públicas, a nomeação e a comissão de serviço.
Ora, o DL nº 503/99, de 20/11 [regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública] determina no seu artigo 2º que,O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado” (nº 1) e que,O disposto no presente decreto-lei é também aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações regionais e autárquicas e nos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respectivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes” (nº 2). Ao que acresce que “O disposto no presente decreto-lei é ainda aplicável aos membros dos gabinetes de apoio quer dos membros do Governo quer dos titulares dos órgãos referidos no número anterior” (nº 3).
Assim, a todos os trabalhadores da Administração Pública que detenham uma relação jurídica de emprego público, de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, independentemente de estarem, ou não, inscritos na CGA (que deixou de proceder à inscrição de subscritores a partir de Janeiro de 2006 - cfr. art. 2.º da Lei n.º 60/2005, de 29/12), passa a ser aplicável o disposto no DL nº 503/99, de 20/11.
Porém, nos termos do nº 4, “Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, devendo as respectivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código”.
Isto é, independentemente da natureza da relação de emprego, aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais, como é o caso da Ré CMPEAE Empresa de Águas do Município do Porto, EM, é-lhes aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho.
Este regime consta igualmente da LTFP, na redacção aqui aplicável (Lei nº 73/2017, de 16/8), que, em matéria de acidentes de trabalho e doenças profissionais, determina que se aplica o Código do Trabalho e legislação complementar aos trabalhadores que exercem funções públicas nas entidades públicas empresariais - cfr. artigos 4º, nº 5 e 2º, nº 1, alínea b).
A este propósito refere Paulo Veiga e Moura, “(…) mesmo que o estatuto de origem se continue a aplicar aos trabalhadores cedidos, a verdade é que, quando essa cedência for efectuada para entidades empresariais ou entidades administrativas independentes, o regime dos acidentes de serviço e das doenças profissionais contraídas ao serviço de tais entidades será disciplinado pelas disposições do Código do Trabalho e legislação complementar e já não pelo regime constante do DL n.º 503/99, de 20 de Novembro” (Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, 2014, pág. 99).


Assim, é de concluir, como se concluiu em situação idêntica no Acórdão deste Tribunal de 23.05.2019, Proc. 40/17, que o acidente em causa nos autos não pode considerar-se abrangido pelo Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública aprovado pelo DL nº 503/99.
Deste modo e atento o disposto no art. 4º, nº 4, al. b), do ETAF, a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.

Pelo exposto, acordam em atribuir a competência para conhecer da presente acção ao Juízo do Trabalho do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 1 de Junho de 2022. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.