Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:056/19
Data do Acordão:11/03/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P26670
Nº do Documento:SAC20201103056
Data de Entrada:11/25/2019
Recorrente:A............, LDA., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VIANA DO CASTELO - JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VIANA DO CASTELO - JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA - UNIDADE ORGÂNICA 1
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 56/19
Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório

A………….., Lda., identificada nos autos, intentou no Tribunal Judicial de Viana do Castelo providência cautelar de restituição provisória de posse contra Polis Litoral Norte, Sociedade para a Requalificação e Valorização Litoral Norte, SA, pedindo que fosse decretada a restituição provisória da posse da parcela de terreno dos prédios identificados no artigo 1.º da p.i., a notificação da requerida para no prazo de 5 dias após trânsito em julgado vedar a dita parcela, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência qualificada, prevista e punida nos artigos 348.º do CP e 375.º do CPC. Requereu, ainda, a fixação de sanção pecuniária compulsória, no montante de 100,00 euros por cada dia, após trânsito em julgado, que a requerida mantivesse a parcela de terreno referida ocupada e vessada, sem proceder à sua vedação.

Em síntese, alegou ser proprietária e legítima possuidora dos prédios rústicos identificados nas alíneas a) e b) do n.º 1 da p.i. os quais não se encontram delimitados entre si. Mais alegou que foram adjudicadas à requerida, no âmbito de processo de expropriação, duas parcelas de terreno que foram desanexadas do prédio da requerente identificado na alínea a) do artigo 1.º da p.i. e que desde 2017 a requerida foi executando obras novas e trabalhos de construção civil em parte dos prédios identificados, em particular sobre o referido na alínea a), estimando que a requerida tenha ocupado ilicitamente mais de 1500 m2, e que com a continuação dos trabalhos venha a apropriar-se de mais 4000 m2, do terreno propriedade da requerente.

Em 01.10.2019, no Juízo Local Cível de Viana do Castelo, foi proferida decisão (fls. 54 a 56) que julgou os tribunais incompetentes em razão da matéria para apreciação e julgamento da providência cautelar intentada.

Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, a pedido da requerente, foi aí proferida decisão em 24.10.2019 (fls. 62 a 65) a declarar a incompetência em razão da matéria para conhecer do objecto dos autos.

Após trânsito em julgado, veio a requerente solicitar ao Tribunal dos Conflitos a resolução do conflito (fls. 68/69).

Os autos foram remetidos a este Tribunal dos Conflitos. As partes, notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, nada disseram.

A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer a fls. 87 a 89, no sentido de que a competência para julgar a providência cautelar deverá ser atribuída ao Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo Local Cível de Viana do Castelo.

2. Os Factos

Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito

O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Juízo Local Cível de Viana do Castelo e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

Entendeu o Juízo Local Cível de Viana do Castelo que, no caso, não está em discussão o direito de propriedade da requerente, mas antes se a actuação de facto da requerida não foi para além do que lhe era permitido pela DUP, dado que, alegadamente, executou obras fora da área expropriada, devendo por isso restituir aquela parcela à requerente e vedá-la para evitar a sua devassa, conforme foi peticionado. Concluindo pela sua incompetência em razão da matéria uma vez que a relação material controvertida, tal como caracterizada pela requerente, é uma relação jurídica administrativa a regular pelas regras de direito público e, por isso, se inscreve na alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.

Remetido o processo ao TAF de Almada este, por sua vez, também se considerou incompetente em razão da matéria por, tanto no presente procedimento cautelar como na acção principal a intentar, estar em causa o reconhecimento do direito de propriedade sobre a parcela do terreno cuja posse é pedida a restituição, sendo por isso competentes para a sua apreciação dos tribunais judiciais.

Vejamos.

Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.º, n.º1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.º, n.º1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º1, do ETAF].

A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art.º 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da providência, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).

Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.

Ora, aquilo que a requerente pediu ao Tribunal no presente procedimento cautelar foi “que a requerida lhe restitua, imediatamente a posse sobre a parcela ocupada e que proceda à vedação dos seus prédios nos seus limites norte e sul” para que o prédio não fique devassado. Como causa de pedir invocou o direito de propriedade sobre os prédios, alegando tê-lo adquirido por arrematação em hasta pública, ter sido reconhecido judicialmente por sentença transitada em julgado, ter presunção que lhe advém da inscrição no registo predial a seu favor e como há mais de vinte anos vem exercendo sobre eles a posse pública e pacífica até por usucapião teria adquirido a propriedade. Considera que a actuação da requerida violou o seu direito de propriedade, impedindo-a de realizar negócios e de usá-lo como bem entender e, por isso, pede que seja decretada a restituição provisória da posse da parcela do terreno que identifica.

Perante este pedido, concluiu o Juízo Local Cível de Viana do Castelo que se estava perante uma relação jurídica administrativa por não estar em causa o direito de propriedade da requerente mas antes saber se a requerida actuou ilegalmente executando obras para além da área que foi objecto da expropriação e, nessa medida, a competência para apreciar tal actuação cabe na alínea i) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.

Sobre o alcance da alínea i) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF, em caso semelhante ao presente, decidiu este Tribunal dos Conflitos no Ac. de 23/05/2019, Proc. 48/18:

“Com a Reforma de 2015, a al. i), do nº 1, do art. 4º do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a “condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”.

Sem entrar agora na análise das origens e da evolução do instituto (Cf., por todos, Carla Amado Gomes, Contributo para o Estudo das Operações Materiais da Administração Pública e do seu Controlo Jurisdicional, Coimbra Editora, 1999, págs. 298-345. Na jurisprudência, cf. o ac. do STJ de 5.2.2015, proferido no proc. nº742/10.2TBSJM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), pode, no essencial, afirmar-se que a “via de facto” corresponde a uma atuação material da Administração que, sem base legal (Designadamente por ausência de atos jurídicos anteriores que legitimem essas operações materiais ou em que esses atos jurídicos são juridicamente inexistentes - v. Jorge Pação, ob.cit., pág. 194-195.), ofenda, de forma grave e manifesta, uma liberdade fundamental ou um direito de propriedade.

Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que “o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i), do nº 1, do art. 37º, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime” (V. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259.)

Defendendo a solução legal, agora consagrada no CPTA e no ETAF, explicava Vieira de Almeida (In «“A Via de Facto”, perante o juiz administrativo» comentário ao ac. do TCAS, de 22.11.2012, processo 5515/09, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 104, março/abril de 2014, pág. 44.) que a «via de facto», enquanto atuação material manifestamente ilegal de um órgão da Administração, não deixa de ser uma atuação no âmbito do direito público, tal como o é uma atuação jurídica portadora de uma ilegalidade tão grave que implique a inexistência do ato ou a sua nulidade. Por isso, dizia aquele autor, não se pode afirmar que a «via de facto» coloca a Administração numa posição idêntica à do simples particular por ficar desprovida da posição de supremacia em que se encontra na atuação ilícita.

Não obstante, atendendo à configuração normativa da alínea i) do nº1, do art. 4º, e como assinala Jorge Pação (Ob. Cit., págs. 194-198.), podem colocar-se dúvidas sobre se a competência dos tribunais administrativos está apenas prevista para as situações em que a Administração exerce operações materiais sem que exista decisão administrativa prévia que a sustente, ou se são também situações de "via de facto" os casos em que esses atos jurídicos foram praticados e são juridicamente existentes mas que padecem de uma ilegalidade gravosa (v.g. indiscutível nulidade do ato de declaração de utilidade pública), bem como os casos em que a lei não outorga à entidade administrativa qualquer atribuição ou competência na matéria.

Poderá também colocar-se a questão de saber se os litígios relativos à apreciação de uma “apropriação irregular”, cuja diferença face à “via de facto” é apenas de grau de gravidade que se reconhece à ilegalidade subjacente à intervenção da entidade pública, ficaram, com a revisão de 2015, no domínio dos tribunais administrativos.

Mas as dúvidas não se ficam por aqui.

Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i), do art. 4º, nº 1, do ETAF abrange, ou não, as ações reais, como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito invocado pelo autor.

Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº2).

Atente-se ainda que, conforme se determina naquele dispositivo legal, «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (nº3).

Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração.

Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.

É esta, aliás, a posição de Carla Amado Gomes (Cf. “Temas e problemas da justiça administrativa”, AAFDL, 2018, págs. 39-56 e "Via de facto e tutela jurisdicional contra ocupações administrativas sem título", in Revista do Ministério Público nº 15º Abril/Junho, 2016, págs. 89-109.) ao defender que a competência da jurisdição administrativa para o conhecimento das situações de ocupação, sem título, de imóveis pela Administração, em 'via de facto' - que já se verificava antes de 2015 e que a alteração legislativa só veio reforçar (por se estar, ainda, perante autuações materialmente administrativas da Administração) - não prejudica a competência dos tribunais judiciais para os casos em que a questão da titularidade do bem for controvertida.”

Porque a motivação jurídica aí aduzida merece a nossa inteira adesão remetemos para essa motivação jurídica, inteiramente transponível para o presente caso.

Como se referiu, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos pelo que se conclui que a relação material controvertida, tal como é caracterizada pela requerente, não se inscreve em nenhuma das alíneas do n.º 1, do art. 4.º, do ETAF.

Tal como se apresenta, deparamo-nos com uma causa no âmbito dos direitos reais já que a requerente alega factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o terreno em causa, excluir o mesmo direito por parte da requerida, invoca inclusive ter o prédio sido esbulhado (art. 49 do p.i.) e, em consequência, pede a condenação na restituição da sua posse. Acresce que a requerente refere o processo expropriativo apenas para explicar que a requerida adquiriu por essa via de duas parcelas de terreno desanexadas do prédio da requerente (cfr. art. 15.º da p.i.p).

Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18 e de 23.01.2020, Proc. 041/19, in www.dgsi.pt).

Presumivelmente, a presente providência será seguida da propositura de uma acção real e, como tem sido reafirmado pelo Tribunal dos Conflitos, as providências cautelares têm de ser propostas nos tribunais que forem competentes em razão da matéria para julgar a causa principal de que aquelas são dependência (Cf. Ac. de 7.7.2009, Proc. 011/09 e de 8.3.2017, Proc. 034/16).

Assim, a competência material para conhecer da presente providência cautelar cabe à jurisdição comum (art. 64º do CPC).

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente providencia cautelar o Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo - Juízo Local Cível de Viana do Castelo.

Sem custas.

Lisboa, 03 de Novembro de 2020

Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - Relatora

Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza

A presente decisão foi adoptada por unanimidade pela Conselheira Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (Relatora) e pela Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza e vai assinada apenas pela relatora, com o assentimento (voto de conformidade) da Senhora Conselheira Adjunta, de harmonia com o disposto no artigo 15º-A do D L nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo D L nº 20/2020, de 1 de Maio.

Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa