Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:032/15
Data do Acordão:04/21/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ORLANDO AFONSO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
CARTÓRIO NOTARIAL.
TRIBUNAIS JUDICIAIS.
Sumário:Não configura conflito negativo de jurisdição, que compita ao Tribunal dos Conflitos resolver, a divergência entre o notário e o tribunal judicial acerca de saber a qual deles compete a tramitação do requerimento de partilha adicional a um inventário.(*)
Nº Convencional:JSTA00069672
Nº do Documento:SAC20160421032
Data de Entrada:07/08/2015
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O CARTÓRIO NOTARIAL DE A..... EM FAFE E A COMARCA DE BRAGA - INSTÂNCIA LOCAL DE FAFE - SECÇÃO CÍVEL - J1
AUTORA: B........
RÉU: A.........
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO NEGATIVO
Objecto:DEC CARTÓRIO NOTARIAL.
SENT TJ FAFE - INSTÂNCIA LOCAL CÍVEL.
Decisão:NÃO TOMAR CONHECIMENTO DO PEDIDO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO NEGATIVO.
Legislação Nacional:CPC ART109 ART628 ART644 ART645 ART647 ART110.
L 23/2013 ART3 ART76 ART82.
LOSJ ART62.
DECRETO 19243 ART59.
DL 23185 ART1 ART17.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC0166 DE 1985/02/28.; AC TCF PROC0186 DE 1985/06/20.; AC TCF PROC0184 DE 1985/07/04.; AC TCF PROC0183 DE 1985/07/18.; AC TCF PROC0170 DE 1985/07/25.; AC TCF PROC0179 DE 1985/12/05.; AC TCF PROC0180 DE 1986/01/16.; AC TCF PROC0203 DE 1989/01/19.; AC TCF PROC0242 DE 1991/03/19.; AC TCF PROC0245 DE 1992/01/21.; AC STJ PROC04B3409 DE 2004/11/18.; AC TCF PROC026/09 DE 2010/01/20.; AC TCF PROC01/02 DE 2002/07/02.; AC TCF PROC013/04 DE 2005/02/24.; AC STJ PROC07A2167 DE 2007/12/18.; AC STJ PROC361/09.6YFLSB DE 2009/09/10.
Referência a Doutrina:JOSÉ LEBRE DE FREITAS - CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO VOLI 3ED PAG221 E SEGS.
JORGE MIRANDA - FUNÇÕES ÓRGÃOS E ACTOS DO ESTADO PAG167 E SEGS.
MARCELLO CAETANO - MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO PAG7 E SEGS.
MARCELO REBELO DE SOUSA - LIÇÕES DE DIREITO ADMINISTRATIVO PAG15 E SEGS.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 32/15
ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal dos Conflitos:

A) Relatório:

B…….. apresentou, no Cartório Notarial do município de Fafe, da notária A………., requerimento inicial, com vista à partilha adicional ao inventário que correu termos, sob o n.º 2293/05.8TBFAF, no extinto 3º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, por, alegadamente, ter descoberto que existem três prédios que, embora fazendo parte da herança deixada pelos inventariados C……… e D………, não foram objecto de partilha.
Tal requerimento veio, porém, a ser indeferido por decisão que julgou o Cartório Notarial incompetente para tramitar o processo de inventário destinado à aludida partilha adicional por aí se ter entendido que tal competência pertence ao Tribunal Judicial no qual o inventário judicial correu termos.
Não se tendo conformado com essa decisão, apresentou a requerente impugnação da mesma, a qual veio a ser admitida, com subida imediata e efeito suspensivo, tendo os autos sido remetidos à Instância Local Cível de Fafe do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, a fim de ser proferida decisão sobre a impugnação nos termos do artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, e do artigo 76º, n.º 2, da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março (que aprovou o novo Regime Jurídico do Processo de Inventário).
Todavia, a Ex.ma Senhora Juiz da referida Instância Local Cível à qual a impugnação foi distribuída, apoiando-se na circunstância de já, anteriormente, ter sido proferida decisão a declinar a competência desse Tribunal para a partilha adicional em causa (no âmbito do inventário que correu termos sob o número acima identificado) e de a mesma ter sido confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães transitado em julgado, não decidiu a mencionada impugnação, tendo, ao invés, sustentado estar-se perante um conflito negativo de jurisdição cuja resolução solicitou a este Tribunal dos Conflitos por ter considerado ser este o competente para o efeito.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de não se verificar qualquer conflito de jurisdição por já ter havido decisão do Tribunal da Relação de Guimarães sobre a competência para conhecer da suscitada questão e, como tal, a Ex.ma Senhora Juiz da Secção Cível da Instância Local de Fafe dever decidir a impugnação em conformidade com o acórdão daquele Tribunal, acrescentando que, caso seja outro o entendimento, acompanha o decidido pelo referido Tribunal da Relação, devendo, assim, a competência ser atribuída à Ex.ma Senhora Notária do Cartório Notarial de Fafe.
***
Tudo visto,
Cumpre decidir:

B) Os Factos:

Com relevância para a questão decidenda, são os seguintes os factos assentes:
1. Por requerimento de 30/09/2014, B…….. apresentou requerimento, no âmbito do processo de inventário para partilha dos bens deixados por óbito de C…….. e de D………, que correu termos sob o n.º 2293/05.8TBFAF.G1, no extinto 3º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, com vista à partilha adicional de bens que alegadamente, entretanto, teria descoberto e que não teriam sido objecto da referida partilha.
2. Tal requerimento foi indeferido por o Tribunal se ter julgado incompetente, tendo considerado que a competência, para o mencionado efeito, pertencia aos Cartórios Notariais.
3. A requerente interpôs recurso de tal decisão, a qual veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães por acórdão proferido em 12/02/2015, transitado em julgado.
4. Nessa sequência, B…….. apresentou requerimento inicial de inventário, no Cartório Notarial do município de Fafe de A………, ao qual foi atribuído o n.º 809/15, com vista à partilha adicional dos bens alegadamente pertencentes ao acervo hereditário de C…..…. e de D…….. que não tinham sido objecto de partilha.
5. Tal requerimento foi indeferido liminarmente por despacho de 18/05/2015 por o Cartório Notarial ter considerado que não era competente e que tal competência pertencia ao Tribunal Judicial no qual o processo de inventário tinha corrido os seus termos.
6. A requerente apresentou impugnação de tal despacho, que foi admitida, com subida imediata e com efeito suspensivo, para a Instância Local Cível de Fafe, tendo, em consequência, sido ordenada a remessa dos autos para esse Tribunal com vista à prolação de decisão sobre a impugnação.
7. Após remessa, os autos foram distribuídos à Secção Cível da referida Instância Local do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, sem que a Ex.ma Senhora Juiz tenha proferido decisão sobre a impugnação.

C) O Direito:

Dispõe o artigo 109.º, nº 1, do Código de Processo Civil que Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: dizendo-se o conflito positivo no primeiro caso e negativo no segundo. Acrescenta, por sua vez, o n.º 3 do mesmo preceito legal que Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.
Conforme decorre deste normativo, o conflito de jurisdição pressupõe, necessariamente, o trânsito em julgado de duas decisões judiciais de jurisdições diferentes ou de duas ou mais autoridades, pertencentes a diferentes actividades do Estado, a declinarem ou a arrogarem-se competência para conhecer da mesma questão.
Ora, no caso vertente, está, por um lado, em causa uma decisão proferida pela Secção Cível da Instância Local de Fafe (confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães já transitado em julgado) que declinou a competência para conhecer da partilha adicional requerida, depois da entrada em vigor do novo regime jurídico do processo de inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março (RJPI), no âmbito de um inventário para partilha de herança que aí tinha corrido termos, por ter considerado que competente, para o mencionado efeito, seria o Cartório Notarial; e, por outro lado, uma decisão proferida pelo Cartório Notarial que indeferiu liminarmente o requerimento inicial, que aí foi, posteriormente, apresentado com vista à referida partilha adicional, por ter considerado que competente seria, afinal, o Tribunal Judicial no qual correu, inicialmente, termos o processo de inventário.
Foram, pois, estas duas decisões, declinando a competência, que o supra referido Tribunal considerou terem sido proferidas por duas autoridades pertencentes a diversas actividades do Estado e, como tal, integrarem um conflito de jurisdição cuja resolução caberia a este Tribunal dos Conflitos.
Sucede, porém, que, tendo sido interposto recurso para a Instância Local Cível de Fafe da decisão proferida pela Ex.ma Senhora Notária - recurso esse que, na falta de norma que especificamente o regule, segue os termos do Código do Processo Civil -, é evidente que a mesma não transitou em julgado - artigos 3.º, n.º 7, 76.º, n.º 2, 1ª parte, e 82.º do RJPI, e artigos 628.º, 644.º, n.º 1, alínea a), 645.º, n.º 1, alínea a), e 647.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Em consequência e na falta do aludido pressuposto legal, não há qualquer conflito de jurisdição que cumpra dirimir (cf., entre muitos outros, os Acórdãos deste Tribunal de 28/02/1985, proc. 000166, de 20/06/1985, proc. 000186, de 04/07/1985, proc. 000184, de 18/07/1985, proc. 000183, de 25/07/1985, proc. 000170, de 05/12/1985, proc. 000179, de 16/01/1986, proc. 000180, de 19/01/1989, proc. 000203, de 19/03/1991, proc. 000242, e de 21/01/1992, proc. 000245, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Em todo o caso e ainda que houvesse conflito, a verdade é que a competência para o resolver também não pertenceria a este Tribunal dos Conflitos.
Senão vejamos:
Nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, Os conflitos de jurisdição são resolvidos, conforme os casos, pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal dos Conflitos, esclarecendo o n.º 3 do mesmo preceito legal que O processo a seguir no julgamento dos conflitos de jurisdição cuja resolução caiba ao Tribunal dos Conflitos é o estabelecido na respectiva legislação, competindo ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça conhecer dos conflitos de jurisdição cuja apreciação não pertença ao Tribunal dos Conflitos - artigo 62.º, n.º 3, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (aprovada pela Lei n.º 62/20 13, de 26 de Agosto).
O Tribunal dos Conflitos foi criado pelo Decreto n.º 19 243, de 16 de Janeiro de 1931, competindo-lhe, então, de acordo com o preceituado no artigo 59.º, conhecer dos conflitos positivos ou negativos de jurisdição e competência entre as autoridades administrativas e judiciais.
Posteriormente, com o Decreto-Lei n.º 23 185, de 30 de Outubro de 1933, foi extinto o Supremo Conselho de Administração Pública e criado, em sua substituição, o Supremo Tribunal Administrativo, tendo o Tribunal dos Conflitos passado a ser integrado por seis juízes conselheiros - três do Supremo Tribunal de Justiça (sorteados para cada processo) e três do Supremo Tribunal Administrativo - e presidido pelo presidente deste último - artigos 1.º e 17.º do referido diploma legal.
Esta composição revela, pois, que os conflitos que estão em causa são os que ocorrem entre tribunais pertencentes, por um lado, à jurisdição judicial e, por outro, à jurisdição administrativa ou fiscal, relativamente a matérias passíveis de resolução por esses tribunais, justificando-se, consequentemente, que seja o Tribunal dos Conflitos - órgão paritariamente composto por Juízes do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Administrativo - a decidi-los.
Com efeito, a expressão “autoridades administrativas” ínsita no citado artigo 59.º do Decreto n.º 19 243, de 16 de Janeiro de 1931 tem, hoje, de ser entendida, à luz de uma interpretação actualista, como englobante das autoridades jurisdicionais da ordem administrativa e fiscal, sentido este que, de resto, já era perfilhado pelo artigo 107.º do Código de Processo Civil de 1939 ao aludir ao conflito “entre as autoridades judiciais e administrativas” (cf. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 3ª edição, Coimbra, Setembro de 2014, p. 221 e segs.).
Dito de outro modo e conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/11/2004 (proc. 04B3409, disponível em www.dgsi.pt), a competência do Tribunal dos Conflitos pressupõe que o objecto do conflito tenha conexão com a competência material dos tribunais da ordem administrativa ou das autoridades administrativas no âmbito da sua competência administrativa propriamente dita - o que, manifestamente, não sucede no caso vertente. É que, quando exercem competências no âmbito do processo de inventário nos termos consagrados pela Lei n.º 23/2013, os Cartórios Notariais não estão a agir no âmbito da sua competência administrativa propriamente dita, mas antes no quadro de uma actividade jurisdicional (vejam-se, para maiores desenvolvimentos, a propósito da distinção entre actividade administrativa e actividade jurisdicional, Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, p. 167 e segs.; Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, p. 7 e segs., e Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, p. 15 e segs.). Refira-se, aliás, que, conforme acima se deixou dito, das decisões proferidas pelo notário cabe recurso para o tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado, o que evidencia uma continuidade de competências ratione materiae e uma conexão com os tribunais judiciais, a par da falta dela com a ordem administrativa (cf. Acórdão deste Tribunal de 20/01/2010, proc. 026/09, disponível em www.dgsi.pt).
Destarte, ainda que existisse o suscitado conflito de jurisdição (que, pelas razões aduzidas, não se verifica), não tendo o mesmo qualquer conexão com o objecto da competência material dos tribunais da ordem administrativa ou da autoridade administrativa no âmbito da sua competência administrativa propriamente dita, não seria a este Tribunal dos Conflitos que o caberia dirimir, mas antes ao Supremo Tribunal de Justiça no âmbito da sua competência residual.
De resto, é no sentido exposto que este Tribunal tem decidido em situações em tudo similares à que está em causa nos autos, de que são exemplo os Acórdãos de 02/07/2002 (proc. 1/02) e de 24/02/2005 (proc. 13/04), bem como os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18/11/2004 (proc. 04B3409), de 18/12/2007 (proc. 07A2167) e de 10/09/2009 (proc. 361/09.6YFLSB), que aqui se seguiram de perto, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Tudo para concluir que, faltando o pressuposto a que acima se fez referência (trânsito em julgado da decisão), não há qualquer conflito de jurisdição que cumpra conhecer.
Sem custas por, in casu, não haver lugar a tributação (artigo 96.º do Decreto n.º 19 243, de 16 de Janeiro de 1931).

Nesta conformidade e por todo o exposto, acordam os Juízes no Tribunal dos Conflitos em não tomar conhecimento do pedido de resolução formulado.
Sem custas.

Lisboa, 21 de Abril de 2016. - Orlando Viegas Martins Afonso (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - Isabel Francisca Repsina Aleluia São Marcos - Carlos Luís Medeiros de Carvalho - António Bento São Pedro - Manuel Joaquim Braz.