Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:012/20
Data do Acordão:12/15/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
Sumário:Incumbe aos tribunais judiciais o julgamento de uma acção em que se discute a titularidade do direito de propriedade sobre um terreno.
Nº Convencional:JSTA000P28701
Nº do Documento:SAC20211215012
Data de Entrada:06/05/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE SANTARÉM — JUÍZO LOCAL CÍVEL DE ABRANTES E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA
AUTOR: A………………E OUTROS
RÉU: ESTADO PORTUGUÊS E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 12/20

Acordam no Tribunal dos Conflitos


1. Relatório
A………… e mulher B…………, identificados nos autos, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Abrantes, acção com processo comum contra C………… e mulher D…………. e Direcção Geral do Território, pedindo a condenação dos RR a:
a) Reconhecer que os AA adquiriram por compra e usucapião, os 59
rústicos identificados nos artigos 1 e 2 desta PI.
b) A reconhecer que a linha divisória entre o prédio dos AA. inscrito sob o artigo cadastral nº 62 da Secção I da Freguesia de Valhascos e o prédio dos 1ºs RR. inscrito na matriz sob o artigo …. da mesma secção é feita por uma vala em toda a sua extensão.
c) Que os RR. sejam obrigados a repor no estado anterior a vala divisória em toda a sua extensão.
d) Que o 2º R. seja condenado a retificar as coordenadas gráficas dos prédios nºs: ..., …, … e … todos da secção I da freguesia de Valhascos, concelho de Sardoal, de forma a serem respeitados os marcos colocados entre os prédios …. e …. da secção I da freguesia de Valhascos e fixação de novas coordenadas para os prédios …. e …. ambos da secção atrás referida de forma a ser respeitada a vala divisória no local onde está em parede e pedras e reposição do troço da vala em falta.
e) Fixando-se a linha divisória dos prédios ….. secção I e ….. secção I da freguesia de Valhascos de acordo com o levantamento constante do doc. nº 11, sendo o limite dos prédios a nascente 2,90 metros do local indicado pelo 2º R e a poente 2,95 metros do local indicado pelo 2° R”.
Em síntese, alegam ser proprietários e legítimos possuidores dos prédios rústicos identificados na petição inicial (p.i.), por compra e usucapião. Mais alegam que um dos seus prédios é confinante com uma vala que o delimita do prédio dos primeiros RR, tendo estes aterrado parte da vala delimitadora dos terrenos, colocado um portão e implantado dois pilares no terreno dos AA, ocupando assim uma faixa do prédio dos AA, de forma abusiva e ilegal e contra a vontade dos AA. Sustentam que o segundo R efectuou uma perícia no âmbito de processo que correu termos no Tribunal Judicial de Abrantes e que as coordenadas dos prédios que então foram fixadas não estão correctas pelo que deve ser condenado a rectificá-las.
Em 05.12.2017, no Juízo Local Cível de Abrantes, foi proferida decisão a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação e julgamento da acção intentada [cfr. fls. 311 a 318 dos autos].
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (TAF de Leiria), foi aí proferida decisão em 18.05.2020 a declarar a incompetência em razão da matéria para conhecer do objecto dos autos [cfr. fls. 349 a 352 e verso dos autos].
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º. da Lei n.º 91/2019 e nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída ao Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Abrantes.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Abrantes e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.
Entendeu o Juízo Local Cível de Abrantes estar perante um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa pelo que “tendo em consideração o disposto no art.º 4º nº 1, als. f) e g) do ETAF a DGT deve ser demandada nos Tribunais Administrativos”.
Por sua vez o TAF de Leiria também se considerou incompetente em razão da matéria, concluindo que “o litígio trazido a juízo respeita à demarcação de prédio rústico, na parte em que o mesmo confronta com o prédio dos primeiros réus. Trata-se (…) de uma relação jurídica estabelecida entre dois particulares e com referência a um imóvel privado, disciplinada, portanto, pelo direito civil”, na qual não tem intervenção a DGT pois “tal como resulta da narração contida na petição inicial, a intervenção da Direcção-Geral do Território cingiu-se à realização de perícia, no âmbito dos autos que correram termos (…) junto do Tribunal Judicial de Abrantes

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está concretizada no art. 4º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio regulado por normas de direito privado. Com efeito, aquilo que os Autores pedem na presente acção, invocando o seu direito de propriedade, é que os RR. reconheçam que a definição da linha divisória entre os seus prédios e os dos AA. é feita por uma vala e, consequentemente, reponham a vala divisória no estado anterior. Pretendem também que a DGT rectifique as coordenadas gráficas dos ditos prédios de forma a ser respeitada a vala divisória e os limites que alegam.
Estamos, pois, perante um litígio regulado por normas de direito privado em que a situação descrita e que está em questão não envolve uma qualquer actuação ou conduta que resulte disciplinada ou regida por normas de direito administrativo, e, também, não respeita a responsabilidade civil extracontratual de pessoa colectiva de direito público.
Tal como se apresenta, deparamo-nos com uma causa no âmbito dos direitos reais, visando a demarcação de terrenos, já que os AA. alegam factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre a faixa de terreno em causa, que consideram ter sido violado pelos Réus.
Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc.º 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18 e de 23.01.2020, Proc. 041/19, todos consultáveis in www.dgsi.pt).

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo Local Cível de Abrantes.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2021. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.