Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01301/22.2T8SRE.S1
Data do Acordão:03/01/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:De acordo com a versão do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais resultante da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, compete aos Tribunais Judiciais a apreciação de uma oposição a uma execução fiscal destinada a obter a cobrança coerciva de fornecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos, por respeitar à prestação de serviços essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.
Nº Convencional:JSTA000P30685
Nº do Documento:SAC2023030101301
Recorrente:AA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 29 de Março de 2022, AA deduziu no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra oposição à execução fiscal n.º ...4 e apensos, que a Direção de Finanças de Coimbra requereu contra si em 28 de Fevereiro de 2022, para cobrança coerciva de dívidas referentes à prestação de serviços de fornecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos.


Em síntese, fundamentou a oposição na prescrição das dívidas exequendas e na respectiva inexigibilidade parcial.


Por despacho de 5 de Maio de 2022, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra – 2.ª Unidade Orgânica suscitou a questão da incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, para conhecer da lide; e, por sentença de 11 de Maio de 2022, julgou-se incompetente, nos termos da al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), e indeferiu liminarmente a oposição.


A requerimento da oponente, o tribunal determinou a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra.


Por sentença de 25 de Setembro de 2022, o Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo de Execução de Soure – Juiz 2 declarou-se também materialmente incompetente para conhecer dos autos, com fundamento no artigo 151.º do CPPT, e absolveu a executada da instância.


Por despacho de 10 de Novembro de 2022, o Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo de Execução de Soure – Juiz 2 suscitou a resolução do conflito negativo de jurisdição junto do Tribunal dos Conflitos.


2. O processo foi remetido ao Tribunal dos Conflitos. Por despacho do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, foi determinado que se seguissem os termos resultantes da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).


O Ministério Público emitiu parecer, no sentido de que cabe aos Tribunais Judiciais a competência para conhecer a presente oposição, nos termos do disposto na al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.


3. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.


Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para a apreciação da presente oposição, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelo artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; dentro destes, o artigo 49º define a competência dos tribunais tributários.


Os tribunais administrativos, “ não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).


Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.


Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal de Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.


4. Como se disse no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 18 de Janeiro de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 2941/21.2T8ALM.S1, que aqui se segue, a al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, veio excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva” (al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais). Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII, da qual veio a resultar a Lei n.º 114/2019, consta expressamente que se “Esclarece (…) que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de Julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”


A Lei 114/2019 entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo.


Vale assim o princípio de direito transitório sectorial afirmado no n.º 1 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), também constante, aliás, do artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, segundo o qual a competência se afere pela lei vigente à data da propositura da acção, e que admite duas excepções, nas quais a lei nova é de aplicação às acções pendentes: a extinção do tribunal onde a acção foi proposta e a atribuição de competência a tribunal incompetente (assim, a título de exemplo, cfr. os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 20 de Janeiro de 2021, www.dgsi.pt, processo n.º 01574/20.5T8CSC.S1, ou de 24 de Fevereiro de 2021, www.dgsi.pt, processo n.º 01573/20.7T8CSC.S1)


Tratando-se de uma alteração do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais respeitante à competência material da jurisdição administrativa e fiscal, a aplicação no tempo dessa exclusão não atinge portanto as acções pendentes; mas aplica-se às acções instauradas depois da sua entrada em vigor.


5. Os presentes autos tiveram a sua origem nos Autos de Execução Fiscal n.º ...4, instaurados em 28 de Fevereiro de 2022, para cobrança coerciva de dívidas referentes à prestação de serviços de fornecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos (serviços públicos essenciais, cfr. als. a), f) e g) do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho).


Posteriormente, por requerimento de 29 de Março de 2022, a executada veio deduzir, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, oposição ao aludido processo de execução fiscal.


Nos termos do artigo 149.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, “Considera-se, para efeitos do presente Código, órgão da execução fiscal o serviço da administração tributária onde deva legalmente correr a execução ou, quando esta deva correr nos tribunais comuns, o tribunal competente.”


Segundo os n.ºs 1 e 2 do artigo 150.º, “1 - É competente para a execução fiscal a administração tributária. 2 - A instauração e os atos da execução são praticados no órgão da administração tributária designado, mediante despacho, pelo dirigente máximo do serviço.


De acordo com o disposto no artigo 151.º, “1 - Compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área do domicílio ou sede do devedor originário, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, e a reclamação dos atos praticados pelos órgãos da execução fiscal. 2 - O disposto no presente artigo não se aplica quando a execução fiscal deva correr nos tribunais comuns, caso em que cabe a estes tribunais o integral conhecimento das questões referidas no número anterior.


Finalmente, releva especialmente o disposto no n.º 1 do artigo 103.º da LGT (Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro), que atribui ao “processo de execução fiscal” “natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional.


Ora, tendo em conta que a presente oposição respeita à execução fiscal requerida contra a executada, considera-se, nomeadamente para o efeito de saber qual é a lei aplicável à determinação da jurisdição competente, que a acção foi proposta em 28 de Fevereiro de 2022, data na qual foi instaurada a execução fiscal. É, portanto, aplicável a versão do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais vigente em 28 de Fevereiro de 2022.


6. Apreciando a questão de saber se a competência para apreciar oposições deduzidas contra execuções fiscais movidas por entidades públicas (ou concessionadas) também destinadas à cobrança de taxas devidas por consumo de água, mas instauradas antes da entrada em vigor da Lei n.º 114/2019, cabia aos Tribunais Judiciais ou aos Tribunais Administrativos e Fiscais, em particular aos Tribunais Tributários, o Tribunal dos Conflitos concluiu no sentido na não aplicação da exclusão hoje contida na al. e) do n.º 4 do artigo 4.º. Entendeu (cfr., a título de exemplo, o acórdão de 20 de Janeiro de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 1574/20.5T8CSC.S1), em síntese, que tais oposições se inseriam em relações de natureza administrativa, já que um dos seus sujeitos era uma entidade pública que actuava com vista à prossecução de um interesse público cometido por lei e respeitavam à cobrança coerciva de taxas, contrapartida pelos serviços prestados, cujas quantias haviam sido unilateralmente definidas.


Decidiu, assim, que a respectiva apreciação competia à jurisdição administrativa e fiscal (al. d) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e, especificamente, aos tribunais tributários (al. d) do n.º 1 do artigo 49.º, também do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais). No mesmo sentido, cfr. o acórdão de 18 de Janeiro de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 0443/20.3BEALM.S1 também do Tribunal dos Conflitos.


7. Este Tribunal dos Conflitos também já teve a oportunidade de afirmar que está em causa, nestas situações, “A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais”, condição necessária à sua inclusão na versão actual da al. e) do n.º 4 do artigo 4.º.


Assim, no acórdão de 13 de Setembro de 2021, www.dgsi.pt, escreveu-se:


“(…) a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à proteção do utente. Entre os serviços públicos abrangidos encontra-se o serviço de fornecimento de água (n.º 2, alínea a), do mesmo diploma). Coloca-se então a questão de saber se deve entender-se que, nesta acção, está ou não em causa um litígio correspondente à prestação de serviços públicos essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96. Ora, no acórdão de 17 de Fevereiro de 2021 do Supremo Tribunal Administrativo, disponível em www.dgsi.pt, proc. n.º 01685/18.7BEBRG, entendeu-se que «a ligação à rede pública de saneamento, como acto prévio ao serviço a prestar, não assume a qualificação de serviço público essencial, daí não lhe ser aplicável a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho» e que «uma coisa é a ligação ao sistema público de saneamento, facturada uma única vez ao utilizador, ocorrida antes do início da utilização, outra, a prestação do serviço de recolha de águas residuais que são facturadas aos utilizadores, de forma periódica (artigo 67.º do Dec. Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto – que estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos) (…)”.


8. Conclui-se, portanto, que a presente oposição, enquanto se dirige contra a cobrança coerciva de fornecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos respeita à prestação de serviços essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho. Não obstante tratar-se do fornecimento por uma entidade pública, no exercício das atribuições que legalmente lhe são deferidas, e estar em causa uma taxa unilateralmente fixada como contrapartida do serviço, a competência para conhecer a oposição encontra-se subtraída à jurisdição administrativa e fiscal pela citada al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, lei posterior ao n.º 1 do artigo 151.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário.


Compete, portanto, aos Tribunais Judiciais a correspondente apreciação, tendo em conta a respectiva competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013).


Refira-se, ainda, que a competência dos Juízos de Execução previsto no artigo 129.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário se viu ampliada pela Lei n.º 114/2019.


9. Nestes termos, julga-se que a apreciação da presente oposição cabe à Jurisdição dos Tribunais Judiciais; concretamente, ao Juízo de Execução de Soure do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra (n.º 1 do artigo 89.º do Código de Processo Civil).


Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).


Lisboa, 1 de Março de 2023. – Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.