Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:015/21
Data do Acordão:11/08/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P30166
Nº do Documento:SAC20221108015
Data de Entrada:04/16/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE AVEIRO, JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ALBERGARIA-A-VELHA – JUIZ 2, E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE AVEIRO, UO1
AUTOR: MUNICÍPIO DE SEVER DO VOUGA
RÉU: A……. E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos
1. Relatório

O Município de Sever do Vouga intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, acção contra A…….. e marido B……, formulando os seguintes pedidos:

"a) Ser decretada a execução específica do contrato, proferindo-se sentença que produza os efeitos da declaração negocial faltosa dos Réus, restabelecendo o direito de propriedade do Autor;

b) Ser ordenado o cancelamento do registo da transmissão/aquisição existente a favor da Ré, averbada pela AP. 2286 de 2020/06/03, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sever do Vouga, bem como todas as inscrições subsequentes;

c) Subsidiariamente, serem os Réus condenados a restituírem ao Autor a quantia recebida a título de sinal, em dobro, no montante de 3.250,00€, o que soma 6.500,00€, e ainda juros à taxa legal, a contar da sua citação e até integral pagamento;

d) A reporem o imóvel descrito no art.º 4, da P.I., exactamente no mesmo estado em que se encontrava aquando da celebração do auto de aquisição por via do direito privado;

e) A condenação dos Réus a absterem-se de praticar qualquer acto que possa perturbar o direito de propriedade do Autor;

f) A condenação dos Réus a indemnizarem o Autor por todos os prejuízos a estes causados pelo atraso da construção, despesas de projecto e danos não patrimoniais que se vier a liquidar em execução de sentença;

g) Juros de mora vincendos à taxa legal de 8% calculados desde a citação, até efectivo e integral pagamento;

h) Por fim, deverão os Réus ser condenados nas custas e nas demais despesas da presente acção judicial"

Em síntese, o Autor alega que, para a execução de uma empreitada da "….”, celebrou com a legítima proprietária, entretanto falecida e mãe da Ré, um Auto de Expropriação (Aquisição por via do Direito Privado) a que ambos atribuíram valor igual a contrato promessa, tendo nele sido acordada a compra e venda do imóvel aqui em causa (bem como de outros imóveis). Refere ainda que foi pago um valor como sinal e princípio de pagamento e que o remanescente seria liquidado na data de celebração da escritura definitiva do contrato, que veio a ser efectuada relativamente aos outros imóveis, mas não se realizou para o prédio aqui em causa, tendo a proprietária entretanto falecido.

Mais alega que a Ré fez constar o referido imóvel na relação de bens deixados pela falecida sua mãe, registando-o definitivamente a seu favor, e que os Réus se recusam a celebrar a escritura de compra e venda prometida naquele contrato.

Em 15.12.2020, no Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, Juiz 2, foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria e absolvidos os Réus da instância.

Em seguida, o Autor Município propôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, acção administrativa contra os mesmos Réus, A…… e B……., efectuando idênticos pedidos. Por sentença de 19.01.2021, este Tribunal também se declarou incompetente em razão da matéria.

Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.

Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum.

2. Os Factos

Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito

O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, Juiz 2, e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro.

Entendeu o Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha que “(...) em causa está efectivamente uma questão do foro administrativo, na medida em que o A. pretende a execução de um contrato que foi celebrado por si, entidade de administração pública no uso de um poder público (Auto de Expropriação (Aquisição por via do Direito Privado). O A. pretende proteger o seu direito que praticou com base em disposições de direito administrativo, não sendo consequentemente este tribunal competente em razão da matéria para a apreciar o pedido deduzido".

Por sua vez o TAF de Aveiro considerou que "No caso em apreço é manifesto que a relação jurídica subjacente ao litígio emerge de uma relação jurídica de direito privado e não de uma relação jurídica administrativa. Está em causa nos presentes autos um litígio relativo a um direito real que, como é entendimento firme do Tribunal de Conflitos, cabe na competência dos tribunais judiciais".

Vejamos.

Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas "que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º nº1, da CRP; 64° do CPC; e 40°, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas "emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais" [artigos 212º, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF].

A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.° do ETAF com delimitação do "âmbito da jurisdição" mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).

Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. 08/14 "A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo".

Na presente acção está em causa a execução de um contrato constante de um documento chamado "Auto de Expropriação (Aquisição por via do Direito Privado)", a que as partes atribuíram valor igual a contrato promessa de compra e venda de imóvel.

O Município é uma entidade pública cuja actividade visa a realização de um interesse público, mas pode praticar actos de direito privado.

O art. 11º do Código das Expropriações impõe a qualquer entidade interessada em expropriar o dever de diligenciar no sentido de adquirir os bens por via do direito privado. A aquisição por via do direito privado tem um regime próprio, diverso do processo de expropriação amigável, como se alcança dos artigos 33º a 37º do referido Código, expropriação essa que, tal como a litigiosa, pressupõe a prévia existência de acto de declaração de utilidade pública.

No caso dos autos não houve acto de declaração de utilidade pública. Não estamos, portanto, perante uma expropriação amigável mas perante uma aquisição por via do direito privado, prevista no mencionado art. 11°, procedimento que se situa no domínio do direito privado.

Não se trata de uma situação equiparável à que foi considerada no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 23.01.2020, Proc. 032/19, (onde estava em causa a reversão do bem e tinha havido declaração de utilidade pública antes da celebração do contrato de compra e venda) em que se concluiu pela competência dos tribunais administrativos: "Sendo certo que foi celebrado um contrato de compra e venda entre os AA. e o R. MPorto, a verdade é que ele funcionou como sucedâneo da expropriação amigável, impossibilitada a mesma, como acima se disse, pela indisponibilidade manifestada pelos AA. em vender a sua parcela de terreno. Antes da celebração do contrato em questão, o MPorto conseguiu que a parcela de terreno dos AA. fosse declarada como de interesse Público para efeitos de expropriação.

Com a declaração de utilidade pública, o direito de propriedade dos interessados é sacrificado e os bens por ela atingidos ficam de imediato adstritos ao fim específico da expropriação.

A substituição da expropriação amigável pela compra e venda dos bens expropriados, in casu, da parcela de terreno dos AA., não transmuta a relação jurídico-administrativa decorrente da expropriação numa relação jurídico-privada.

O contrato de compra e venda apenas serve como meio mais expedito para concluir rapidamente o procedimento de expropriação, pelo que, mantendo-se a natureza expropriativa do contrato, o pedido de resolução do mesmo contrato por pretenso incumprimento do fim expropriador move-se no âmbito da relação jurídico-administrativa de expropriação, transportando a resolução dos litígios dela emergentes para a jurisdição administrativa. Efectivamente, cumpre sublinhar que o pedido de resolução do contrato de compra e venda visa a reversão da parcela expropriada (artigo 5° do CE). A reversão traduz-se no direito conferido ao expropriado de recuperar os bens expropriados quando os mesmos se mostrarem desnecessários para a realização do interesse público que justificou a expropriação. E esse fenómeno da reversão baseia-se em fundamentos de direito público e a sua competência é deferida à entidade que houver declarado a utilidade pública da expropriação ou que haja sucedido na respetiva competência (artigo 74º/1 do CE)."
E também não tem aqui aplicação o Acórdão da Relação do Porto, de 26.03.2019, citado na decisão do tribunal judicial, dado que é um caso onde também existiu prévia declaração de utilidade pública, como aí se refere: “(…) não fora a prévia declaração de expropriação de utilidade pública, não teríamos dúvidas em afirmar que as partes se vincularam por um contrato de compra e venda, submetido às regras do direito privado, pelo que a sua resolução não poderia deixar de ser tratada pelos tribunais comuns".

Por outro lado, não estamos em presença de questão respeitante a execução de contrato administrativo ou outro contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública de modo a poder ser incluída no artigo 4° do ETAF. Nem se trata de um litígio de direitos reais pois o Autor não reivindica a propriedade, o que pretende é adquirir a propriedade do imóvel.

A acção tal como configurada pelo Autor, tendo presente o pedido e a causa de pedir, respeita a um litígio sobre o cumprimento de um contrato promessa de transmissão onerosa de imóvel, regido pelo direito privado. E, por isso, o Autor, perante o incumprimento do contrato promessa, pediu a execução específica do mesmo, pretendendo que seja proferida "sentença que produza os efeitos da declaração negocial faltosa dos Réus".

Não estamos, por isso, perante um litígio subsumível no artigo 4° do ETAF, ou emergente de uma relação jurídica administrativa para cujo conhecimento seja competente a jurisdição administrativa.

Ora, sendo da competência dos tribunais judiciais conhecer e decidir as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conclui-se que a competência material para conhecer da presente acção cabe à jurisdição comum.

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, Juiz 2.

Sem custas.

Lisboa, 8 de Novembro de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.