Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:013/22
Data do Acordão:07/14/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL
COMISSÃO NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS
ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL
Sumário:I - Compete à Jurisdição Administrativa e Fiscal a competência para conhecer das decisões da CNPD, incluindo as de natureza contra-ordenacional;
II - Tal resulta de se encontrar expressamente prevista no art. 34º, nºs 1 e 2 da Lei nº 58/2019 a competência material dos tribunais administrativos para impugnação de todas as decisões da CNPD, incluindo as de natureza contra-ordenacional;
III - Assim, há que ter em conta essa atribuição expressa de competência, independentemente de a mesma não ter sido contemplada na enumeração constante do art. 4º, nº 1 do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P29793
Nº do Documento:SAC20220714013
Data de Entrada:04/13/2022
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DO BARREIRO - JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE ALMADA
REQUERENTE: CHBM — CENTRO HOSPITALAR BARREIRO MONTIJO, E .P. E.
REQUERIDA: COMISSÃO NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 13/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
O CHBM – Centro Hospitalar Barreiro Montijo, EPE [CHBM], melhor identificado nos autos, veio, deduzir recurso de impugnação judicial, nos termos do artigo 59º do DL nº 433/82, de 27/10, da Deliberação da CNPD – Comissão Nacional de Proteção de Dados, nº 209605, de 26.11.2019, que lhe aplicou, no âmbito do processo de contra-ordenação nº 9932/2018, uma coima única de €380.000,00, pela prática de duas contra-ordenações previstas e punidas nos termos das disposições conjugadas do art. 5º, nºs 1, al. c) e f) e art. 83º, nº 5 do Regulamento (UE) nº 679/2016, de 27/4, e uma contra-ordenação prevista e punida nos termos das disposições conjugadas do art. 32º, nº 1, alíneas b) e d) e art. 83º, nº 4, al. a) do mesmo Regulamento.
Remetidos os autos ao Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal do Barreiro, este fez os autos presentes a esse Tribunal, em 19.03.2020, nos termos do art. 62º, nº 1 do DL nº 433/82, de 27/10. Sendo o recurso admitido por despacho de 18.06.2020, proferido a fls. 596, tendo sido designada data para julgamento.
Por decisão proferida pelo Juízo Local Criminal do Barreiro, Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em 17.11.2020, foi declarada a incompetência desse Tribunal, em razão da matéria, para apreciação do recurso interposto pelo arguido, em síntese, face ao disposto no art. 34º, nºs 1 e 2 da Lei nº 58/2019, de 8/8, considerando ser competente para o efeito o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
Faz esta decisão referência à argumentação da Recorrente de que ao presente recurso deverá aplicar-se a lei em vigor na data em que foi apresentado o primeiro requerimento de recurso e, por isso, seria inaplicável o referido preceito legal. Expendeu a tal propósito o seguinte: “A decisão proferida anteriormente pela C.N.P.D. foi julgada nula, tendo a mesma sido remetida à autoridade administrativa que procedeu à sua reformulação.
Notificado da nova decisão proferida em 26/11/2019, veio o recorrente interpor recurso. Como é fácil concluir, trata-se efectivamente de uma nova decisão e de um novo recurso, na medida em que o tribunal não irá apreciar a anterior, aquela que foi declarada nula, nem o anterior requerimento de recurso, designadamente quanto às conclusões constantes do mesmo.
Saliente-se que ao ser declarada nula a decisão da entidade administrativa há uma destruição de todos os efeitos decorrentes da mesma, existindo um retroagir do processo administrativo – e não se confunda o mesmo com estes autos, que são autos de recurso – ao momento em que a mesma foi proferida.
Ainda se diga em abono daquele entendimento, que poderia a recorrente simplesmente não recorrer da nova decisão.
Mas veio a fazê-lo, tendo apresentado novo requerimento de recurso que motivou a remessa do mesmo a este tribunal. E é a data da apresentação dos autos de recurso de contraordenação no tribunal que marca o momento em que esta competência se fixa, facto que ocorreu em 19/03/2020.
A competência material é de conhecimento oficioso (cf. artigo 32.º do Código de Processo Penal aplicável ex vi artigo 32.º do R.G.C.O.C), implicando a remessa do processo ao tribunal competente (cfr. artigo 33º, do mesmo diploma legal).


Após trânsito, foi o processo remetido ao TAF de Almada.

O TAF de Almada, por decisão de 13.03.2022, julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do recurso de impugnação contra-ordenacional, considerando serem competentes para tal os tribunais judiciais, face à regra de competência residual destes (arts. 211º, nº 1 da CRP, 40º, nº 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) e 64º do CPC), expendendo, nomeadamente, o seguinte: “Como vimos, a CNPD defendeu que o artigo 34.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto, atribui aos tribunais administrativos a competência para apreciar as impugnações judiciais das suas decisões que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas do Regulamento (EU) n.º 679/2016, do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, tendo o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Criminal do Barreiro – Juiz 2, declarado a incompetência absoluta, por considerar que a competência material para conhecer o presente recurso pertence aos tribunais administrativos, face ao disposto no citado artigo 34.º, n.ºs 1 e 2.
A referência aos processos de natureza contraordenacional feita no n.º 1, do artigo 34.º, da Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto, relativo à legitimidade processual para propor ações contra atos e omissões da CNPD e ações para efetivação de responsabilidade civil, não permite concluir que foi intenção inequívoca do legislador atribuir aos tribunais administrativos a competência para conhecer os recursos de impugnação judicial das decisões da CNPD que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social, sendo que consta expressamente do nº 2, do artigo 34.º, da Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto, que os tribunais administrativos são competentes para as “[a]s ações propostas contra a CNPD”, que não é parte nos recursos de impugnação judicial das suas decisões que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social. Recebido o recurso, caso mantenha a decisão recorrida, deve enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este ato como acusação (artigos 59.º, n.º 3, e 62.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, (…).

Remetido o processo a este Tribunal dos Conflitos foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 2019, de 4/9, tendo o Recorrente aderido às alegações de recurso apresentadas pelo MP, na sequência de conflito negativo de competência entre o TAF de Almada e o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Criminal do Barreiro.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer em 02.05.2022, no sentido de que a competência para julgar a impugnação judicial da decisão punitiva em causa deverá ser atribuída aos tribunais administrativos e fiscais, no caso o TAF de Almada.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Criminal do Barreiro, Juiz 2 e o TAF de Almada.
A questão que está em causa nos autos é a de saber qual a jurisdição competente para apreciar a impugnação judicial apresentada pelo arguido CHBM na CNPD, e, remetida pelo Ministério Público ao tribunal em 19.03.2020, respeitante a coima que a CNPD lhe aplicou, no âmbito do processo de contra-ordenação nº 9932/2018, coima única de €380.000,00, pela prática de duas contra-ordenações previstas e punidas nos termos das disposições conjugadas do art. 5º, nºs 1, al. c) e f) e art. 83º, nº 5 do Regulamento (UE) nº 679/2016, de 27/4, e uma contra-ordenação prevista e punida nos termos das disposições conjugadas do art. 32º, nº 1, alíneas b) e d) e art. 83º, nº 4, al. a) do mesmo Regulamento.

Entendeu o Juízo Local Criminal do Barreiro que, face ao disposto no art. 34º, nºs 1 e 2 da Lei nº 58/2019, era competente para conhecer o recurso de contra-ordenação o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.

Remetido o processo ao TAF de Almada, este, por sua vez, considerou-se igualmente incompetente, em razão da matéria nos termos supra transcritos. E, por despacho de 11.04.2022 determinou a remessa do processo a este Tribunal dos Conflitos, na sequência de requerimento do Ministério Público nesse sentido.

Vejamos.
É, desde já, de definir que em causa nos autos está a decisão proferida pela CNPD de aplicação de coima em 26.11.2019 – fls. 259 -, de que o arguido CHMB interpôs recurso nos termos do disposto no art. 59º do DL nº 433/82, de 27/10, o qual deu entrada em juízo em 19.03.2020, sendo irrelevante para os efeitos do art. 38º, nº 1 da LOSJ e do art. 5º, nº 1 do ETAF, a primeira decisão proferida pela CNPD em 2018, a qual, tendo sido declarada nula, deixou de produzir quaisquer efeitos, tal como entendeu o Juízo Local Criminal do Barreiro (nos termos supra transcritos).
O que significa que a causa em apreço é a que resulta de decisão da CNPD, de 26.11.2019, presente em juízo, nos termos do art. 62º do DL nº 433/82, em 19.03.2020.
Na referida data encontrava-se já em vigor a Lei nº 58/2019, de 8/8, em cujo art. 34º se prescreve o seguinte:
1 – Qualquer pessoa, de acordo com as regras gerais de legitimidade processual, pode propor ações contra as decisões, nomeadamente de natureza contraordenacional, e omissões da CNDP, bem como ações de responsabilidade civil pelos danos que tais atos ou omissões possam ter causado.
2 – As ações propostas contra a CNDP são da competência dos tribunais administrativos (…)”.
A competência para apreciar os recursos em matéria contra-ordenacional foi-se alterando, pertencendo sempre essa competência à jurisdição comum [Lei nº 67/98, de 26/10, que previu que a competência era do tribunal da concorrência, regulação e supervisão – art. 112º, nº 1, al. g) da LOSJ; depois a Lei nº 23/2018, de 5/6, que incluiu no art. 112º, nº 1 da LOSJ a ERC mas não a CNDP, pelo que, após 04.08.2018 (data da sua entrada em vigor), passaram a ser materialmente competentes os juízos locais criminais para o conhecimento dos recursos de contra-ordenação de decisões da CNPD].
Porém, com a Lei nº 58/2019, no seu art. 34º, este paradigma de atribuir a competência para a apreciação dos recursos contra-ordenacionais como o aqui em causa aos tribunais da jurisdição comum terá sofrido uma alteração.
É o que se afigura resultar do disposto no nº 1 do art. 34º que abrange na qualificação como “ações” o recurso de impugnação judicial das decisões de natureza contra-ordenacional da CNDP, regulado nos termos dos artigos 59º e seguintes do DL nº 433/82, apesar de, verdadeiramente, tal recurso não ser instaurado “contra” a CNDP, que nele não é uma verdadeira parte.
Tal como bem salienta a EMMP, esta terminologia resultará do disposto nos artigos 78º e 79º do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27.04.2016, onde, indistintamente, se faz referência ao “direito à ação judicial” e ao “recurso”, como formas processuais similares admissíveis – referindo-se que “todas as pessoas singulares ou coletivas têm direito à ação judicial contra as decisões juridicamente vinculativas das autoridades de controlo que lhes digam respeito.”; e que “os recursos contra as autoridades de controlo são interpostos nos tribunais do Estado-Membro em cujo território se encontrem estabelecidas."
Assim, tal terminologia não constitui impedimento a que deva concluir-se que o legislador pretendeu inequivocamente, atribuir aos tribunais administrativos a competência material quer para as acções interpostas contra a CNPD, quer para os recursos de impugnação das respectivas decisões contra-ordenacionais. Aliás, se essa intenção não foi declarada expressamente na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 120/XIII/3ª, que conduziu à aprovação da Lei nº 58/2019, revela-se da consulta dos trabalhos parlamentares (indicados no Parecer do MP), verificando-se que, nomeadamente, a CNDP propôs que se excepcionasse do nº 2 do art. 34º as “ações de impugnação das deliberações sancionatórias, cuja competência jurisdicional se afere nos termos da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto”.
Ora, o legislador manteve a redacção do art. 34º que constava da proposta de lei.
Assim, tendo em atenção o disposto no art. 9º do Código Civil, sendo de reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos parlamentares, tendo em conta as circunstâncias em que a lei foi elaborada, e que o legislador não desconhecia as consequências da redacção que contemplou naquele artigo 34º – a de atribuir aos tribunais administrativos a competência em matéria de recursos contra-ordenacionais das deliberações sancionatórias da CNPD -, sendo de presumir que consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, é de concluir que pretendeu, efectivamente, atribuir aos tribunais administrativos a competência material não só para as acções interpostas contra a CNPD, como igualmente para a apreciação de recursos de impugnação de decisões de aplicação de coimas proferidas pela mesma.
É certo que tal competência não resulta expressamente prevista no art. 4º, nº 1 do ETAF, nas suas diversas alíneas (estando essa competência contra-ordenacional já contemplada quanto a impugnações em contra-ordenações respeitantes a matéria de urbanismo – 1ª parte da alínea l), daquele nº 1, do art. 4º).
No entanto, como referem Mário Aroso de Almeida e C.A. Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, 4ª ed., «O âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é identificado, no artigo 212.º, n.º 3 da CRP, por referência aos meios processuais que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes de relação jurídicas administrativas e fiscais.» (pág. 17). E que «A matéria da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é regulada pelo ETAF no seu artigo 4.º. Na ausência de determinação expressa em sentido diferente, contida em lei avulsa, valem pois, nessa matéria, os critérios estabelecidos no artigo 4.º do ETAF. A verdade, porém, é que o regime decorrente deste artigo é objeto de múltiplas derrogações resultantes de legislação especial.» [estando os Autores a referir-se a desvios ao regime do artigo 4º que devendo pertencer à jurisdição administrativa e fiscal dela foram afastadas, nomeadamente, a impugnação judicial de decisões de aplicação de coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social (sendo que com a alteração introduzida pelo DL nº 214-G/2015, a alínea l) do art. 4º, nº 1, introduziu no âmbito da jurisdição administrativa o ilícito de mera ordenação social “por violação de normas de direito administrativo em direito de urbanismo”)] – cfr. págs. 19 e 20.
Referindo-se às autoridades reguladoras independentes admitem os Autores que «… a determinação da competência contenciosa para conhecer dos litígios que a sua atividade possa gerar suscita outro tipo de dificuldades». «Dentro deste enquadramento geral, a determinação da competência contenciosa em relação a atos administrativos praticados por essas entidades carece de ser analisada casuisticamente em função do estabelecido no respetivo estatuto orgânico, quer por via do regime jurídico que se estiver definido para o seu funcionamento, quer por efeito de regras de competência que se encontrem expressamente previstas.» - págs. 25 e 26.
Ora, encontrando-se expressamente prevista no art. 34º, nºs 1 e 2 da Lei nº 58/2019 a competência material dos tribunais administrativos para impugnação de todas as decisões da CNPD, incluindo as de natureza contra-ordenacional, há que ter em conta essa atribuição expressa de competência, independentemente de a mesma não ter sido contemplada na enumeração constante do art. 4º, nº 1 do ETAF.

Pelo exposto, acordam em julgar que a competência para a referida impugnação judicial cabe aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente ao TAF de Almada – Juízo Administrativo Comum.
Sem custas.

Lisboa, 14 de julho de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.