Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:034/21
Data do Acordão:11/08/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P30174
Nº do Documento:SAC20221108034
Data de Entrada:11/10/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE AVEIRO, JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ESTARREJA – JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE AVEIRO UO1
AUTOR: A....... E OUTROS
RÉU: INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, SA E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 34/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório

A……. e mulher B………., identificados nos autos, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Estarreja, acção contra Infraestruturas de Portugal, SA, e Ascendi - Costa da Prata, Auto Estradas da Costa da Prata, SA, pedindo a condenação solidária das Rés:

"a) no reconhecimento do direito de propriedade dos AA. sobre o prédio rústico sito em ….., na actual União das Freguesias de Beduído e Veiros, concelho de Estarreja, inscrito na matriz sob o artigo n.º … (anterior artigo …) da referida União de Freguesias, concelho de Estarreja, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Estarreja sob o n.º 1987/19921026;
b) na desocupação e restituição aos AA. da totalidade da área que ocupam (pelo menos, 283,8 m2) e que pertence ao referido prédio dos AA., no estado em que esta se encontrava, e livre de pessoas e bens;
c) no pagamento de uma indemnização pela ocupação abusiva e pela consequente privação do uso dos AA. desta parcela, que se computa atualmente e de forma simbólica em € 2.852 (2852 dias x € 1,00), acrescido de juros de mora no valor de € 438,07, e vincendos, até efectivo e integral pagamento;
d) Subsidiariamente, e caso se considerasse a tort que tal restituição não seria possível, o que apenas e tão-somente se admite por mera hipótese académica, sempre deveriam as RR. ser condenadas no pagamento de uma compensação aos AA. pela perda e privação definitiva de tal tracto do sobredito prédio, no valor mínimo de € 1. 135,20, acrescido da devida actualização ou dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos, contados a partir do momento em que teve inicio a ocupação e até à efectiva restituição, e que na presente data perfaz o valor de € 359,93;
e) Sempre e em qualquer caso, devem as RR. ser condenadas no pagamento de uma indemnização aos AA pelos prejuízos decorrentes do corte de eucaliptos e de outras árvores, e respectivos cepos, e na remoção do coberto florestal existente na parcela com a área 283,3 m2 e melhor identificada no número 49.º da pi. (no valor mínimo de € 850,00), da extracção da areia tout-venant (no valor mínimo de € 7. 720,00), da impossibilidade de exploração florestal e de comercialização de astradura nessa mesma parcela (no valor mínimo de € 462,59), tudo acrescido de juros de mora, vencidos de € 2.527,19 (€265,01 + €2.117,95 + €111,49 + €32,74) e vincendos, até efectivo e integral pagamento;
f) Sempre e em qualquer caso, devem as RR. ser condenadas no pagamento de uma indemnização aos AA. pelos prejuízos decorrentes da perda de acesso ao restante prédio (sobrante), e pela consequente impossibilidade de corte e retirada de madeira do prédio dos AA. e de replantação (no valor mínimo de € 1.416,52), e pela impossibilidade de limpeza e comercialização da astradura (no valor mínimo de € 1.750,00) e pela impossibilidade definitiva de exploração da área de 36 m2 ocupada pelas RR. para abertura de um arremedo de acesso (€ 72,00), tudo acrescido de juros de mora, vencidos no valor de € 1.009,71 (€ 441,64 + € 545,62 + € 22,45) e vincendos, até efectivo e integral pagamento;
g) Sempre e em qualquer caso, no pagamento de uma indemnização aos AA. pelos prejuízos morais que sofreram e sofrem, actualmente, no montante (módico) de, pelo menos € 2.852,00, e pelas despesas em apoio jurídico, em documentos, em deslocações, telefone, correio e fax (no mínimo de € 790,20), tudo acrescido de juros de mora, vencidos € 684,44 (€ 438,07 + € 246,37) e vincendos, até efectivo e integral pagamento;
o que, subsidiariamente, sempre seria devido aos AA. pelo menos a título de enriquecimento sem causa, com todas as legais consequências".
Em síntese, os Autores alegam que são os donos e legítimos proprietários do prédio rústico que identificam, quer por sucessão hereditária do pai do Autor quer por usucapião, e que tal prédio foi objecto de uma expropriação parcelar para construção de uma estrada [SCUT Costa da Prata - IC1 - Lanço Angeja (IP5)/Maceda - Sublanço Angeja (lP5)/Estarreja (Km 7+975 ao Km 10+980)].
Mais alegam que as Rés ocuparam de forma abusiva e ilegal uma parcela daquele terreno com a área de 283,80m2, que não havia sido objecto do processo de expropriação, onde erigiram o talude e a valeta de águas pluviais e colocaram marcos.
Pretendem ser reconhecidos como donos e legítimos possuidores do referido prédio rústico e que lhes seja entregue a referida parcela de 283,80 m2 livre e devoluta, incluído das obras nela efectuadas, restituindo-a no estado em que se encontrava, bem como uma indemnização pelos prejuízos sofridos nomeadamente com a privação de uso e fruição da mesma.
Em sede de contestação, as Rés e as Intervenientes admitidas arguiram, além do mais, a excepção de incompetência material do tribunal.
Os Autores, notificados para se pronunciarem sobre a invocada excepção de incompetência material, pugnaram pela sua improcedência afirmando que, face aos pedidos principais que enunciam, a jurisprudência vem entendendo ser da competência dos tribunais comuns o conhecimento de acção em que está em causa um pedido de reconhecimento do direito de propriedade.
Em 30.05.2017, no Juízo de Competência Genérica de Estarreja, Juiz 1, foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer do objecto da acção, absolvendo as Rés e as Chamadas da instância.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro (TAF de Aveiro), foi aí proferida sentença em 22.09.2021 a julgar verificada a excepção dilatória de incompetência do tribunal em razão da jurisdição.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do artigo 11º, da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída aos tribunais comuns.

2. Os Factos

Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Estarreja, e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro.
Entendeu o Juízo de Competência Genérica de Estarreja ser aplicável aos autos a redacção dada ao art 4º do ETAF pelo DL nº 214-/2015, de 2 de Outubro, por considerar que tais alterações teriam entrada em vigor em 3 de Outubro de 2105 e, assim, concluiu que "(…) em face da expressa e inequívoca intenção do legislador no alargamento do âmbito da Jurisdição administrativa e fiscal às acções de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime e estando em causa, nos presentes autos, precisamente a remoção de uma situação criada pelas RR., na qualidade de concessionária do Estado, pelo que agindo em execução de tarefas do Estado, situação essa constituída em via de facto e sem título que as legitime, bem como na respectiva responsabilidade extracontratual daí decorrente, temos que a competência é dos tribunais administrativos.
Daqui resulta manifesto que, nos presentes autos, caberá aos Tribunais Administrativos a competência para conhecer do litígio em causa nos autos nos termos do art.º 4.º, n.º 1 aI. i) do ETAF (na redacção actual, dada pelo DL 214-G/2015, de 02.10), sendo este tribunal incompetente em razão da matéria".
Por sua vez o TAF de Aveiro considerou que "No caso em apreço é manifesto que a relação jurídica subjacente ao litígio emerge de uma relação jurídica de direito privado e não de uma relação jurídica administrativa, sendo certo que inexiste norma específica que atribua a competência aos tribunais administrativos.
Estando em causa o reconhecimento da propriedade de determinado prédio e, como consequência da violação desse direito de propriedade, a desocupação e restituição do mesmo e pagamento de indemnização, não se descortina a existência de uma qualquer relação jurídico-administrativa, nem se poderá entender como ação de responsabilidade extracontratual.
Na verdade, está em causa nos presentes autos um litígio relativo a um direito real que, como é entendimento firme do Tribunal de Conflitos, cabe na competência dos tribunais judiciais, mesmo que cumulativamente se formule um pedido indemnizatório contra a entidade pública (cf., a título de exemplo, Acórdão n.º 043/18, processo n.º 13.12.2018).
Pela conjugação dos pedidos formulados e da causa de pedir, bem como dos mencionados dispositivos legais, resulta que os tribunais administrativos não são competentes para a resolução da questão em causa, pertencendo tal competência aos tribunais judiciais".
Vejamos.
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)].
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do artigo 212º da CRP, em que se estabelece que "compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais".
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada nos artigos 1º e 4º do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, com várias alterações legislativas.
A sentença do Juízo de Competência Genérica de Estarreja, que considerou o tribunal judicial comum incompetente, em razão da matéria, para o conhecimento do litígio, teve como fundamento a nova redacção da alínea i), do art. 4º, do ETAF, introduzida pelo DL nº 214-G/2015, que diz ser da competência dos tribunais administrativos a apreciação dos litígios que tenham por objecto questões relativas à "condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime".
No entanto, o art. 15º daquele diploma, que regula a entrada em vigor das alterações, determina que "As alterações efetuadas pelo presente decreto-lei ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, em matéria de organização e funcionamento dos tribunais administrativos, incluindo dos tribunais administrativos de círculo, entram em vigor no dia seguinte ao da publicação do presente decreto-lei” (n.º 4) e que "A alteração efetuada pelo presente decreto-lei à alínea I) do n. º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, em matéria de ilícitos de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, entra em vigor no dia 1 de setembro de 2016" (n.º5).
Aplicam-se às restantes alterações feitas ao ETAF a norma geral constante no nº1 do mesmo artigo, que diz: "Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o presente decreto-lei entra em vigor 60 dias após a sua publicação".
Deste modo, as alterações ao ETAF, nomeadamente ao seu art. 4º, introduzidas pelo DL nº 214-G/2015, com excepção das acima referidas, entraram em vigor no dia 1 de Dezembro de 2015.
A presente acção deu entrada em 23 de Outubro de 2015. Ora, fixando-se a competência no momento em que a acção se propõe, dado se mostrarem irrelevantes, salvo nos casos especialmente previstos na lei, as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito operadas (cfr. art. 5°, nº 1 do ETAF e o art. 38º da LOSJ), a competência material, no caso concreto, deve aferir-se pela redacção do ETAF anterior à dada pelo DL nº 214-G/2015.
Não é, pois, aplicável ao caso dos autos a norma constante da alínea i) do art. 4° do ETAF, introduzida por aquele Decreto-Lei, e que fundamentou a decisão de incompetência do Juízo de Competência Genérica de Estarreja.
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. 08/14 "A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo".
Por outro lado, a competência deve ser aferida em função do pedido principal, não relevando para o efeito o pedido deduzido subsidiariamente (cfr., entre outros, Acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 14.09.2017, Proc. nº 09/17, disponível em www.dgsi.pt)
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio cuja causa de pedir se situa no âmbito dos direitos reais, alegando os Autores factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o prédio, que consideram ter sido violado pelas Rés, e pretendendo, para além do reconhecimento da sua propriedade, que as Rés desocupem e restituam, no estado em que se encontrava, a parcela de terreno que, sem qualquer autorização ou consentimento, ocuparam e onde construíram um talude e valeta de águas pluviais e colocaram marcos, causando-lhe prejuízos que pretendem ver indemnizados.
A jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acórdãos de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19 e de 02.12.2021, Proc.03802/20.8T8GMR.G1.S1 (todos consultáveis in www.dgsi.pt).
A apreciação do pedido indemnizatório mostra-se dependente do que vier a ser decidido quanto ao pedido principal, trata-se pois de pedidos que, na economia da acção não têm autonomia, "sendo uma mera decorrência da pretensa violação do direito de propriedade e que, por isso, não relevam para a determinação da competência material do tribunal”' (cfr. Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 23.01.2020, Proc. n.º 041/19 e jurisprudência nele citada, disponível em www.dgsi.pt).
É esta jurisprudência que se reitera, pelo que a competência para apreciar a pretensão dos Autores cabe aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Estarreja.
Sem custas.

Lisboa, 8 de Novembro de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.