Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:030/18
Data do Acordão:04/11/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:NUNO GOMES DA SILVA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24462
Nº do Documento:SAC20190411030
Data de Entrada:06/19/2018
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA, LISBOA - INSTÂNCIA CENTRAL, 1ª SECÇÃO CÍVEL, JUIZ 3 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
RECORRENTE: A.........
RECORRIDOS: COMISSÃO DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: I
Relatório

1. – A…………………. intentou no Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juiz 3, acção declarativa de condenação com processo comum contra:

(I) Banco Espírito Santo, S.A.;

(II) Banco de Portugal;

(III) Novo Banco, S.A.;

(IV) Fundo de Resolução;

(V) CMVM - Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e

(VI) B………………, pedindo, a final, a procedência da acção por provada estar:

"a) A responsabilidade civil dos RR enquanto intermediários financeiros, por violação dos deveres de informação, diligência e lealdade, nos termos do disposto no art. 304º-A, do Código dos Valores Mobiliários, devendo em consequência os RR. serem solidariamente condenados a pagar à A., a quantia de €204.266,915, acrescida de:

i) €38.470,57 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias da A.;

ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;

Caso assim não seja entendido:

b) A nulidade do contrato de intermediação financeira por inobservância de forma nos termos do disposto no art. 321º do CVM, devendo em consequência serem os RR. solidariamente condenados a restituir à A. a quantia de €204.266,915, acrescida de:

i) €38.470,57 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do A.;

ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória.".

Pediu ainda a condenação solidária dos Réus no ressarcimento dos "danos não patrimoniais que lhe foram causados, em valor a ser calculado em sede de liquidação de sentença. ".

Para tanto, alegou, em síntese, ser cliente do 1º R. desde há cerca de 15 anos, tendo-se tal relação materializado na existência da conta bancária nº ……. EUR - sediada no departamento de "Private Banking" daquele, também denominado por "Sucursal Financeira Exterior - Madeira Branch" - de que a A. é titular.

Mais alegou que foi por critério e exclusiva determinação do 1º R., que a conta bancária da A. passou a ser sediada e tratada pelo denominado "Private Bank", exercido pelo 1º R. na República da África do Sul, tendo sido atribuída, à A., desde então, uma Gestora de Conta, a 6ª R., que a convenceu a criar um "Trust Cheraton Holdings Limited".

E que face às "ofertas" de investimento feitas pela 6ª R., a A. sempre lhe deu instruções de que não desejava aplicar o seu dinheiro em produtos com qualquer risco associado, querendo ter a certeza de que tinha o seu capital garantido e disponível para qualquer eventualidade, sempre lhe sendo garantido pela 6ª R. que aqueles produtos eram como "depósitos a prazo". Concluiu alegando que no âmbito das suas funções e sob a subordinação do 1º R., a 6ª R., no seio do departamento de "Private Bank" do 1º R., aplicou €549.265,25 da A., depositados no 1º R., na compra de produtos estruturados que constam actualmente da sua "Carteira de Títulos Custódia".

Alegou também que, em 03.08.2014, o 2º R., Banco de Portugal, decidiu-se pela aplicação da medida de resolução ao 1º R., criando assim o Novo Banco, o 3° R., sendo que, com aquela decisão de Resolução, o 2° R determinou que os activos de real valor, e que poderiam responder sobre os credores do 1º R., fossem transferidos para o 3º R., cujo capital social é inteiramente detido pelo 4º R..

Invocou ainda que o 1º R. criou uma provisão do valor de produtos vendidos, assumindo assim o seu reembolso, e que a rubrica contabilística "Provisão" constituída pelo 1º R., em momento anterior à medida de resolução, não consta dos itens excluídos e elencados no Anexo 2 à Deliberação do 2º R., de 03.08.2014, tendo concluído que aquela obrigação de reembolso terá sido transferida para o 3° R. existindo uma assunção de obrigação de reembolso conjunta do 2° R. (Banco de Portugal) e do 3º R. (Novo Banco).

Por fim, alegou que legalmente competiam ao 2º R. e 5ª R. deveres de supervisão sobre a actuação do 1º R., que não foram cumpridos, sendo que tal incumprimento terá como consequência a sua co-responsabilização nos danos causados à A. pela actuação do 1º e 6ª R., recorrendo aos montantes sob tutela do 4º R..

2. - Contestações ao pedido da Autora

2.1 - O 1º R., "BES - Em Liquidação" contestou a acção, pedindo que a instância seja, quanto a si, julgada extinta nos termos do art. 277º, al. e), do CPC, em consequência da deliberação tomada no dia 13.07.2016 pelo BCE, que revogou a autorização para o exercício da actividade do BES, deliberação essa que, nos termos do nº 2 do art. 8º do DL 199/2006, de 25 de Outubro, produz os efeitos da insolvência. Impugnou ainda os factos invocados pela A..

2.2 - O 3º R., "Novo Banco, S.A.", e a 6ª R., B……………., também contestaram pugnando pela verificação da excepção que designaram de "ilegitimidade passiva", tendo terminado pedindo:

"Devem os 3° e o 6.° Réus ser declarados parte ilegítimas nos presentes autos, absolvendo-se, em consequência, do pedido (consumpção da legitimidade pelo mérito) ou, pelo menos, da instância (artigos 278.º/1/alínea d), 576.°/2, 577.º/alínea e) do Código de Processo Civil), devendo a excepção ser conhecida no despacho saneador, na medida em que o estado do processo permite, sem mais provas, o conhecimento da excepção de ilegitimidade arguida (artigo 595.°/1 CPC)".

No mais, impugnaram a factualidade invocada pela A..

2.3 - Os 2º, 4º e 5º RR., Banco de Portugal, Fundo de Resolução e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, por sua vez, deduziram a excepção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais comuns, em razão da matéria, para tramitar e julgar a presente acção, considerando serem competentes para o efeito os tribunais administrativos.

3. - A A. respondeu às excepções invocadas pelos RR., pugnando pela sua improcedência.

4. - Em 1ª instância foi declarada a incompetente em razão da matéria por serem competentes os tribunais administrativos e os RR. absolvidos da instância.

Isto por ser considerado que a presente acção consubstanciava a situação prevista na al. f) do nº 1 do art. 4º e do ETAF e nº 2 do mesmo preceito legal.


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5. - A A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 06.02.2018, julgou improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

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6. - Inconformada, a A. interpôs recurso que (indevidamente) qualificou como de "revista excepcional", tendo o mesmo sido admitido como recurso para o Tribunal dos Conflitos, nos termos do art. 101°, nº 2, do CPC.

Concluiu nos seguintes termos as suas alegações (transcrição):

A) Vêm as presentes alegações de recurso interpostas do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que julgou improcedente a Apelação e, em consequência, manteve a decisão da Primeira Instância.

B) Assim, não se conforma, o ora Recorrente, com a decisão de incompetência material do Tribunal Judicial Cível para julgar a presente ação, porquanto constitui doutrina e jurisprudência pacíficas que a competência material do tribunal é aferida em função dos termos em que a ação é proposta pelo Autor, atendendo-se a estruturação dada pelo Autor, ao pedido e a causa de pedir, relevando, assim, para fixação da competência do tribunal o "quid disputatum" e não o "quid decisum".

C) Ora, na presente ação, a Autora, ora Recorrente, peticiona pela responsabilização civil dos RR. por violação das regras de intermediação financeira, mormente por via do consagrado nos artigos 304.º A e 321.º do Código dos Valores Mobiliários, isto é, está em causa a apreciação da violação dos deveres de informação, diligência e lealdade que impendem sobre os intermediários financeiros, bem assim como a nulidade daquela relação jurídica por inobservância de forma, encontrando-nos perante o Direito dos Valores Mobiliários que representa uma área do Direito Comercial e/ou Financeiro - que não se confunde com Finanças Públicas -, constituindo um ramo do direito privado (in Paulo Câmara, Manual do Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, 2009).

D) Invoca-se, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/06/2015 (acórdão fundamento) que apreciou a mesma questão e julgou em sentido contrário ao Acórdão em recurso.

E) Assim, entende a ora Recorrente que o fundamento da presente Revista radica em erro de interpretação e aplicação da lei processual, concretamente, dos artigos 64.º, 96.º al. a), 99° n.º 1, 278º n.º 1 do C.P.C., 80º n.º 1 da L.O.S.J. e artigo 4.º n.º 1 al. f) e n.º 2 do E.T.A.F..

F) Pelo que, subjaz a correta interpretação e aplicação dos referidos normativos legais, concluir pela competência material do Tribunal Judicial (Civil) para apreciar e julgar o presente litígio, ou seja, para dirimir litígios nos quais entidades com natureza pública atuam como privados, à luz do direito privado e, nessa qualidade, devem ser responsabilizadas.

G) O Autor, ora Recorrente, peticionou contra os RR: "Nestes termos e nos mais de Direito que v/ Exa. doutamente suprirá deverá a presente acção ser julgada totalmente procedente por provada que ficou:

a) A responsabilidade civil dos RR., enquanto intermediários financeiros, por violação dos deveres de informação, diligência e lealdade, nos termos do disposto no artigo 304º-A do CVM, devendo em consequência os RR. serem solidariamente condenados a pagar ao A, a quantia do € 204.266,915 acrescida de:

i) € 38.470,57 a título dos juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do A.;

ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;

Caso assim não se entenda:

b) A nulidade do contrato de intermediação financeira por inobservância de forma nos termos do disposto no artigo 321º do CVM, devendo em consequência serem os RR solidariamente condenados a restituir ao A. a quantia do € 204.266,915 acrescida de:

i) € 38.470,57 a título de juros vencidos a taxa legal em vigor, calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do A.;

ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;

c) Mais se requer, que sejam ainda os RR. condenados a ressarcir solidariamente ao A. os danos não patrimoniais que lhe foram causados, em valor a ser calculado em sede de liquidação de sentença;" cfr. petição inicial.

H) No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.06.2015, (acórdão fundamento disponível para consulta in www.dgsi.pt) pode ler-se: "É entendimento pacífico que a competência material dum tribunal constitui um pressuposto processual sendo aferida pela questão ou questões que a A coloca na respectiva petição inicial e pelo pedido formulado, conforme ensina Manuel de Andrade. E nesta lógica, a apreciação da competência dum tribunal tem de resolver-se face aos termos em que a acção é proposta, aferindo-se portanto pelo "quid disputatum", ou seja, pelo pedido do A e respectiva causa de pedir, sendo irrelevantes as qualificações jurídicas alegadas pelas partes ou qualquer juízo de prognose que possa fazer-se quanto a viabilidade ou inviabilidade da pretensão formulada pelo Autor. Foi neste sentido que se firmou a jurisprudência, podendo ver-se o acórdão do STJ de 14/5/2009, www.dgsi.pt. de cujo sumário se conclui que "a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados."

I) É também esta a orientação do Tribunal de Conflitos, conforme se colhe do acórdão de 30.10.2013, proferido no Conflito n.º 37/13, donde se conclui que "é pois a estrutura da causa apresentada pela parte que recorre ao tribunal que fixa o tema decisivo para efeitos de competência material, o que significa que é pelo quid decidendum que a competência se afere, sendo irrelevante qualquer tipo de indagação atinente ao mérito do pedido formulado, ou seja, sendo irrelevante o quid decisum". Será portanto a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial e do respectivo pedido que deveremos decidir da questão de saber qual é a jurisdição competente para o seu conhecimento."

J) Logo, a natureza pública ou privada de cada um dos RR. é irrelevante na medida em que o "thema decidendum", tal como configurado pela Autora, ora Recorrente, não se prende com qualquer questão de domínio administrativo. Sendo que também o pedido indemnizatório deduzido pela Autora, ora Recorrente, não colide, nem depende, da apreciação jurídico-administrativa dos atos que conduziram à resolução do Réu Banco BES, pelos RR. intervenientes naquela decisão.

K) A Autora, ora Recorrente peticiona pela responsabilização civil dos RR. por violação das regras de intermediação financeira, mormente por via do consagrado nos artigos 304º A e 321º do Código dos Valores Mobiliários, isto é, está em causa a apreciação da violação dos deveres de informação, diligência e lealdade que impendem sobre os intermediários financeiros, bem assim como a nulidade daquela relação jurídica por inobservância de forma. O Direito dos Valores Mobiliários é um ramo do Direito Comercial e/ou Financeiro, afastado da conceção de Direito de Finanças Públicas, e designado como: "conjunto de normas que regulam as actividades ligadas aos mercados financeiros e exercidas de forma profissional pelos intermediários financeiros" (in Morais, Jorge Alves, Código dos Valores Mobiliários Anotado, Quid Juris 2015). Sendo ainda que: "(…) todo o regime geral sobre o valor mobiliário, seu conteúdo transmissão, encontrado no Título II do Código constitui direito privado. Na componente privada do direito mobiliário cabe ainda mencionar as regras (…) sobre responsabilidade civil dos intermediários financeiros." (in Paulo Câmara, Manual do Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, 2009).

L) As entidades de natureza administrativas também são entidades civilmente responsáveis, sendo tal asserção justificada, p. ex., com o facto de a Lei Orgânica do Réu Banco de Portugal prever no seu artigo 62° que: "compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que o Banco seja parte, incluindo as ações para efetivação da responsabilidade civil por atos dos seus órgãos, bem como a apreciação da responsabilidade civil dos titulares desses órgãos para com o Banco.".

M) A Recorrente não está isolada neste seu entendimento, como se pode verificar da seguinte jurisprudência recente, onde se entendeu que: "Porém, esse acto administrativo já não releva no domínio factual que agora se encontra controvertido nos autos, ou seja, já não contende com a factualidade subjacente aos prejuízos que os Autores alegam ter sofrido, sendo uma realidade pretérita distinta da que agora se pretende discutir. Ou seja, a responsabilidade civil extra-contratual aqui invocada contra as Rés já não dimana de relações jurídicas administrativas, não dependendo a sua apreciação e julgamento das relações jurídico-administrativas havidas entre as partes e que foram declaradas anuladas, não havendo a necessidade de aplicação de normas de direito administrativo, antes se centrando a controvérsia no plano puramente privado e civilístico, bastando à decisão o ordenamento jurídico decorrente do Código Civil. Dito de outro modo, a relação material controvertida, envolvente dos prejuízos sofridos pelos Autores, não provém da prática de actos de gestão pública, assentando sim no âmbito das relações de natureza privatística que entre as partes surgiram após a anulação daquele acto expropriativo. Aliás, tendo o acto expropriativo sido anulado, assim tendo deixado do existir, mal se compreenderia que a pretensão indemnizatória formulada pelos Autores ainda pudesse ter assento na esfera jurídico-administrativa que se exauriu com aquela decisão anulatória" (negrito nosso in Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 10.11.2016 in www.dgsi.pt). E, ainda, "Por conseguinte, nenhum impedimento legal existe para que o Fundo do Resolução possa ser demandado, sendo certo ainda que a sua natureza de direito público não afasta, em tese, a possibilidade de ser demandado nos Tribunais Cíveis, desde que na relação jurídica que está subjacente à demanda esteja desprovido de prerrogativas de ius imperium." (negrito nosso in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.11.2016 Processo nº 26688/15.0T8LSB-A.L1-6, Relator MARIA DE DEUS CORREIA in www.dgsi.pt.

N) Pretendendo-se explicar que não está em causa a apreciação de qualquer conduta dos RR., munidos do ius imperi, pelo contrário, está em causa a apreciação de atos de intermediação financeira por quem exerce profissionalmente esta atividade, prévios aos atos de resolução que vieram a ser tomados posteriormente. Pese embora ao Tribunal Judicial como a qualquer outro tribunal - não esteja vedado, antes pelo contrário, conhecer da conformidade à lei e à Constituição da República Portuguesa de qualquer lei lato sensu. Prevê o artigo 280.º, n.º1, da C.R.P. que os tribunais podem recusar a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, em causa que se encontra a restrição do direito fundamental de propriedade do Recorrente, pois que aos tribunais compete administrar a justiça em nome do povo, assegurando a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimindo a violação da legalidade democrática e dirimindo os conflitos dos interesses públicos e privados, não podendo aplicar normas que infrinjam a Constituição ou os princípios nela consignados (artigos 202.º e 204.º da C.R.P.).

O) Nos termos do artigo 212.º, n.º3 da Constituição da República Portuguesa «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais». Nas palavras dos Constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira a relação jurídica administrativa "(...) transporta duas dimensões caracterizadoras: as ações e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal" - Vide in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed.

P) Logo, no artigo 4.º, n.º 1, alínea f) do E.T.A.F não cabe a relação jurídica puramente civilista trazida pelo Autor, ora Recorrente que, assim, soçobrará na jurisdição dos tribunais judiciais, definida pelo artigo 211.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, plasmada também no artigo 64.º do Código do Processo Civil e artigos 40.º, n.º 1 e 80.º, n.º 1, da L.O.S.J. que determinam que a competência dos tribunais judiciais para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

87. Afigura-se, em nosso modesto entendimento que, a aplicação do número 2, do artigo 4.º do E.T.A.F. exige Iitisconsórcio necessário passivo - "(...) litígios nos quais devam ser conjuntamente demandados (..)" - o que, não se verificando, in casu, porquanto estamos perante litisconsórcio voluntário, afasta a aplicação daquele normativo e, consequentemente, da competência dos Tribunais Administrativos para dirimir o presente litígio. Não despiciendo sendo o facto de a 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa ter vindo a decidir, com fundamento no litisconsórcio voluntário passivo, no sentido de o Tribunal Judicial Cível ser competente, pelo menos, para julgamento da ação contra os RR BES, SA., Novo Banco, S.A. e B………… (uma vez que o artigo 4.º, n.º 2 do ETAF exige uma situação de Iitisconsórcio necessário passivo que não se verifica no caso concreto) - Vide, neste sentido, Acórdão de 11.01.2018 proferido no processo n.º 19125/16.4T8LSB.L1, Acórdão de 06.12.2017 proferido no processo 18455/16.0T8LSB.L2, Acórdão de 15.02.2018 proferido no processo 19541/16.1T8LSB.L1, e a 2.ª Secção, o Acórdão de 01.02.2018 proferido no processo 18595/16.5T8LSB.L1.

Q) Conclui-se, assim, pela competência material do tribunal judicial civil para apreciar e dirimir o presente litígio.

R) A entender-se diferentemente, será privilegiar a forma em detrimento da substância, invocando-se figuras jurídicas que não solucionam o litígio, que dificultam o acesso à justiça do caso concreto e contribuem para a tão famigerada crise na justiça atentando contra os basilares princípios de um Estado Democrático, designadamente, o direito constitucionalmente consagrado de obter, com força de caso julgado, uma decisão judicial que aprecie do mérito a sua pretensão (artigos 2.º, 20.º, 202º, n.º 1 e nº 2, todos da Constituição da República Portuguesa e artigo 2º do C.P.C.).

S) Atentando, também, contra as normas constantes na Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, transposta para a ordem jurídica portuguesa, designadamente, artigo 1.º do Protocolo n.º 1, com a denominação "Proteção da propriedade" "Qualquer pessoa singular ou coletiva tem o direito ao respeito dos seus bens (...)", incluindo-se nesses bens os créditos, por meio dos quais o Recorrente pode pretender ter, pelo menos, uma "expectativa legítima" de obter o gozo efetivo de um direito de propriedade.

T) Revela-se essencial para uma melhor aplicação do direito determinar o sentido e alcance com que deve ser interpretado e aplicado o disposto na alínea f) do número 1, do artigo 4.º do E.T.A.F. em situações idênticas, atento o ritmo crescente de processos resultantes do colapso de diversas instituições financeiras que integravam o nosso sistema financeiro tem vindo a subir drasticamente e que põe em causa o direito de propriedade, constitucionalmente consagrado.

U) O efeito dos últimos acontecimentos verificados na vida do sistema bancário português provocaram um abalo, quiçá, irreversível na confiança depositada pela população nos Bancos portugueses a na banca em geral. A confiança no sistema bancário é interesse de particular relevância social e vital na sociedade hodierna.

V) Assim, contar com uma clara a uniforme interpretação a aplicação do Direito que salvaguarde os interesses patrimoniais da comunidade e garanta uma solução uniforme e igual para todos, sem surpresas e percalços injustificados de caminho, é questão de particular interesse social.

W) Razão porque os interesses jurídicos sindicados na presente Revista devem ser considerados de particular relevância social.

X) Assim, o Acórdão sindicado encontra-se em contradição com o Acórdão Fundamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 16/06/2015 porquanto decidiram diversamente a mesma questão de direito, a saber, num mesmo contexto jurídico ou situação equiparada, perante o pedido de declaração de nulidade de negócio jurídico, o Acórdão em apreço absolveu os RR por incompetência absoluta do tribunal judicial enquanto o Acórdão fundamento julgou competente o tribunal judicial para conhecer da causa,

Y) O que ora se defende.


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7. - A 5.ª R., CMVM - Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, concluiu assim as suas contra-alegações (transcrição):

a. A Recorrente não apresentou requerimento prévio no qual demonstrasse que se encontravam reunidos os pressupostos previstos no artigo 671.º, n. º 1 do CPC, de acordo com o entendimento unânime da Formação, pelo que deve o recurso ser rejeitado.

b. Sem prescindir, caso assim não se entenda, deve o Venerando Supremo Tribunal de Justiça declarar-se incompetente para julgar o presente recurso.

c. Com efeito, por Acórdão de 06.02.2018, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou materialmente incompetente o tribunal judicial para apreciar a presente ação quanto a todos os RR..

d. Inconformado veio a A/Recorrente interpor recurso excecional de revista para o STJ, recurso que deverá ser rejeitado, atento o disposto no artigo 101.º, n.º 2 do CPC que impõe que do acórdão do Tribunal da Relação que julgue incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer aos tribunais administrativos e fiscais apenas poderá haver recurso para o Tribunal dos Conflitos, ou caso assim não se entenda, o que se admite por mera hipótese de raciocínio, deverá o mesmo ser convolado em recurso para o Tribunal dos Conflitos, com a consequente remessa para esse Tribunal.

e. Sem conceder, o recurso em apreço não satisfaz os pressupostos previstos no artigo 672.º, n.º 1, do CPC, nem a Recorrente dá cumprimento ao disposto n.º 2 do mesmo preceito legal, razões pelas quais o recurso em causa deverá ser considerado inadmissível, e consequentemente, rejeitado nos termos previstos nos n.ºs 3 e 4 daquele artigo.

f. Por outro lado, nos presentes autos não se discute uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja necessária para uma melhor aplicação do direito, pois trata-se de uma questão pacífica e que não suscita dúvidas, sendo a lei clara e a jurisprudência uniforme: a CMVM é uma pessoa coletiva de direito público e os tribunais judiciais não são materialmente competentes para conhecer matéria respeitante a alegada responsabilidade civil extracontratual desta entidade.

g. Também não se encontra verificado o interesse de "particular relevância social", pois o que está a ser discutido nestes autos é a competência material do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para conhecer desta causa, que é uma questão meramente processual, cuja resolução não interagirá com comportamentos sociais relevantes.

h. Por último, também não se encontram preenchidos os requisitos previstos para a contradição de julgados, uma vez que o requerente não indicou os aspectos de identidade que determinam a contradição alegada, ónus que não cumprido, implica a rejeição do recurso.

i. Não obstante, não existe contradição de julgados entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento, porquanto, não estamos perante a mesma questão de direito.

j. Pois, no Acórdão recorrido e no Acórdão fundamento invocado pela Recorrente não está em causa a interpretação e aplicação da mesma disposição legal: o Acórdão referido aplica interpreta os artigos 64.º, 96, al. a), 99.º, n. º 1, 278.º, n.º 1, al. a), 279.º, 576, n.º 2, 577.º, al. a), 578.º e 595.º, n.º 1, al. a), todos do CPC, artigos 40.º, n.º 1 e 80.º, n.º 1, ambos da LOFTJ, e artigos 4.º, n.º 1, al. f) (este conforme o própria Recorrente afirma) e n.º 2 do ETAF; o Acórdão fundamento, diferentemente, interpreta e aplica o artigo 4.º, n.º 3 do ETAF, o artigo 17.º, n.º 2 da Lei n. º 59/2008, de 11 de setembro, artigo 83.º da Lei n.º 12- A/2008, de 27 de fevereiro, e artigo 85.º, als b) e o), da LOFTJ.

k. Entre os dois Acórdãos não existe também identidade da situação de facto, uma vez que no Acórdão recorrido discute-se a competência dos tribunais judiciais para apreciarem questões de responsabilidade civil extracontratual em que estão em causa entidades públicas, e no Acórdão fundamento debate-se a competência dos tribunais de trabalho para apreciarem litígios emergentes de uma relação laboral em que o empregador é uma entidade pública.

l. Acresce ainda que, ao contrário do afirmado pela Recorrente, não corresponde a verdade que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa desconsiderou a configuração que a A. atribuiu a ação, tendo-a tido em conta ao longo de toda a fundamentação do douto Acórdão.

m. Pois pode ler-se no douto Acórdão recorrido designadamente que: "Na ação declarativa de condenação em que é imputada a violação de deveres de conduta de informação, diligência e lealdade por parte dos Réus, atenta a incontroversa natureza pública dos Réus Banco de Portugal, do Fundo de Resolução e da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), bem como a sua postura nesses factos alegados, a sua responsabilidade civil encontra-se coberta pelo regime previsto na Lei n° 67/2007, de 31 de Dezembro, concernente ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas. (...).

Designadamente, nem o Banco de Portugal, nem o Fundo de Resolução, nem a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) desempenharam qualquer papel, ou assumiram qualquer função, nos factos que constituem a causa de pedir nesta demanda, por acção ou omissão, na qualidade de meros sujeitos do direito privado, no domínio puramente comercial, o que seria totalmente desconforme com a sua natureza e com o tipo de competências que lhe estão legalmente cometidas.”

n. E caso assim não se entenda, o que se concebe, sem conceder, sempre se dirá que o presente recurso sempre carece de fundamento, tendo em conta que, ao contrário do alegado pela A./Recorrente e conforme já se referiu a propósito da inexistência de contradição de julgados, não corresponde a verdade que o Tribunal da Relação de Lisboa não tenha considerado a configuração da ação para aferir da competência dos tribunais administrativos e fiscais para apreciar esta ação.

o. Nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3, al. b), da Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, cujo artigo 2.º aprova a LQER, a CMVM constitui uma entidade reguladora, e, como tal, é uma pessoa coletiva de direito público, com a natureza de entidade administrativa independente (cfr. artigo 3.º, n.º 1, da LQER).

p. Nos termos do artigo 5.º, n.º 2, da LQER, são subsidiariamente aplicáveis a CMVM, quando esta atua no exercício de poderes públicos, o Código de Procedimento Administrativo e as leis do contencioso administrativo, assim como, em consonância, ainda, com o artigo 5.º, n.º 3, alínea b), da LQER, o regime da responsabilidade civil do Estado.

q. A configuração atribuída pela Autora, ora Recorrente, à presente causa impõe que se conclua que o litígio assume, no que a CMVM diz respeito, natureza jusadministrativa e, portanto, que se verifica incompetência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa por infração das regras de competência em razão da matéria.

r. Com efeito, sendo peticionado o ressarcimento de (alegados) danos por (também alegada) omissão da CMVM no exercício das suas atribuições de supervisão, é aplicável o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pelo artigo 1.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, na redação introduzida pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 31/2008, de 17 de julho ("RRCEE").

s. Ora, são exclusivamente competentes para a apreciação da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos conjugados do artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa ("CRP") e dos artigos 1.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ("ETAF"), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, na redação introduzida pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro.

t. De onde resulta que a R. CMVM deve ser absolvida da instância por verificação de exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, decorrente da infração das regras de competência em razão da matéria, em conformidade com o disposto nos artigos 64.º, 96.º, alínea a) e 99.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, alínea a), todos do CPC, confirmando-se o douto Acórdão recorrido.

u. E na hipótese remota de se entender que, na ação em causa, no que toca a CMVM, estamos perante uma relação jurídica de direito privado ou perante atos de gestão privada, a verdade é que é entendimento consolidado do Tribunal dos Conflitos que é da competência dos Tribunais Administrativos o julgamento das ações de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado e demais entes públicos ainda que esteja em causa uma relação jurídica de direito privado (Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 01.06.2017, Proc. n.º 08/17).

v. Ora, no presente caso não há qualquer dúvida sobre a natureza pública da CMVM, nem a A./ Recorrente impugna essa natureza, e também não pode negar que, tal como a A. configura a ação, está em causa a responsabilidade extracontratual da CMVM, pelo que deve concluir-se que a competência para julgar o presente litígio pertence aos tribunais administrativos e fiscais.

8. - O 2º R., Banco de Portugal, concluiu da forma seguinte as suas contra-alegações (transcrição):

a. A responsabilidade que a Autora aqui vem demandar ao Banco de Portugal - uma pessoa colectiva de direito público, como expressamente o qualifica o art. 1.º da sua Lei Orgânica - funda-se na alegada violação dos seus deveres legais de supervisão sobre as entidades do sector bancário, incluindo o BES;

b. Está aqui em causa, portanto, uma suposta responsabilidade civil extracontratual do Banco de Portugal;

c. Nos temos da alínea f) do art. 4.º/1 do ETAF, da competência exclusiva dos Tribunais Administrativos "a apreciação dos litígios que tenham por objecto questões relativas [à] responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público";

d. Não merece, pois, a decisão recorrida - que confirmou a sentença do Tribunal de 1.ª instância ao julgar como procedente a excepção de incompetência material dos Tribunais cíveis para conhecer do presente litígio e absolveu, por isso, o Banco de Portugal da instância - qualquer censura;

e. Acresce que, tendo vindo a Autora, ora Recorrente, pedir nesta acção a condenação solidária do Banco de Portugal e dos restantes Réus, o presente caso se subsume directamente na previsão do art. 4.º/2 do ETAF, resultando também daí a incompetência dos Tribunais da jurisdição cível para conhecer deste litígio;

f. E, alegou-se ainda, que mesmo à luz da Lei Orgânica do Banco de Portugal, a jurisdição administrativa é a competente para conhecer das acções que envolvam tais atos ou decisões - quer as que digam respeito à respectiva validade, quer as que digam respeito a eventual responsabilidade civil do Banco de Portugal, decorrente da sua prática;

g. Pois que a resolução do Banco Espírito Santo adoptada pelo Réu Banco de Portugal foi consubstanciada no exercício de funções públicas de autoridade - e nesse particular dúvidas não restam quando o próprio RGICSF estabelece que "[...] as decisões do Banco de Portugal que adotem medidas de resolução estão sujeitas aos meios processuais previstos na legislação do contencioso administrativo […]” (art. 145.º-N/1);

h. Alegou-se, por fim, que o facto de se ter entendido no Acórdão recorrido que os Tribunais da jurisdição cível não são competentes para conhecerem da presente acção, como vem configurada, não constitui qualquer violação ou compressão do direito à tutela judicial efectiva, nada impedindo a Autora de accionar os Tribunais administrativos, que são os competentes, e de ver julgada a pretensão aqui deduzida;

i. Razões pelas quais deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se o Acórdão recorrido, com todos os seus efeitos.

9. - E o 4.º R., Fundo de Resolução, concluiu da forma seguinte as suas contra-alegações (transcrição):

a. Decidiu bem o Tribunal a quo ao considerar que a qualidade em que o Fundo de Resolução vem demandado na presente acção - a de "accionista único" do Novo Banco - uma qualidade que lhe advém de normas de direito administrativo, não de direito privado, não agindo ele, aí, portanto, no âmbito do direito privado e ii) ao confirmar, consequentemente, a decisão da 1.ª instância, em que se julgou procedente a excepção dilatória de incompetência dos tribunais judiciais para conhecer do pedido formulado contra o Fundo de Resolução;

b. Na verdade, a suposta qualidade de "accionista único" do Novo Banco - e é esse o único fundamento invocado pela Recorrente para demandar aqui o ora Recorrido - é uma qualidade que assiste ao Fundo de Resolução enquanto pessoa colectiva de direito público, advindo-lhe essa natureza e a capacidade jurídica de que dispõe de normas e de actos de direito administrativo, não de actos ou de normas de direito civil ou comercial;

c. Advêm-lhe tal qualidade e capacidade jurídicas, desde logo, do art. 145.º-G/4 do RGICSF e do art. 4.º do Anexo 1 da Medida de Resolução do BES, de 3 de Agosto de 2014, a qual configura um acto jurídico-público do Banco de Portugal (um acto administrativo ou um acto normativo, é indiferente);

d. Por outro lado, a dotação de capital dos bancos de transição (como o Novo Banco) pelo Fundo de Resolução é fruto exclusivo de um dever de capitalização exorbitante do direito privado, que lhe impõem normas de direito administrativo do RGICSF e o acto jurídico-público de criação do Novo Banco pelo Banco de Portugal;

e. Não deriva a criação e a capitalização do Novo Banco de qualquer acto voluntário de accionista praticado pelo Fundo de Resolução ao abrigo das correspondentes normas do (Código Civil ou do) Código das Sociedades Comerciais;

f. Toda a sua organização, funcionamento, actividade e responsabilidade encontram-se extensa e exclusivamente reguladas no RGICSF (e nos regulamentos emitidos ao seu abrigo), como é o caso, nomeadamente, da alínea c) do n.º 1 e do n.º 3 do respectivo art. 145.º-B;

g. Dele resulta, é certo, o dever jurídico-público do Fundo de Resolução de responder pelas dívidas e obrigações mas dos bancos resolvidos (não dos bancos de transição, note-se) e apenas nos casos e na medida aí expressamente fixados, como se mostrou;

h. Aliás, todas as restantes normas do RGICSF citadas nestas contra-alegações de recurso, seja em relação à constituição, capitalização, administração dos bancos de transição, seja quanto a responsabilização, nesse quadro, do Fundo de Resolução, são manifesta e tipicamente normas de direito administrativo, estabelecendo-se nelas, e nos actos jurídicos concretos praticados ao seu abrigo, a disciplina de relações jurídicas em que simples particulares não podem estar constituídos - isto é, a disciplina de relações jurídicas das quais são sujeitos únicos e obrigatórios o Fundo de Resolução (o Banco de Portugal) e os bancos de transição;

i. Por esse motivo e por todos os restantes avançados ao mesmo propósito nestas contra-alegações, o Fundo de Resolução não é, portanto - para efeitos da responsabilidade assacada pelos arts. 491.º e 501.º do CSC às sociedades com domínio total -, accionista único do Novo Banco;

j. É sim, um mero detentor público do seu capital social e credor público – repete-se, credor - dos bancos de transição, como resulta claramente da alínea a) do n.º 3 do art. 145.º-I do RGlCSF;

k. Por outro lado, estando legalmente constituído no dever jurídico-público de apoio financeiro à adopção de medidas de resolução pelo Banco de Portugal, através da realização do capital dos bancos de transição, o Fundo de Resolução não está, porém, em parte alguma, constituído na responsabilidade de responder pelas obrigações a que tais bancos estejam vinculados;

l. Para além de que, por força das leis de organização judiciária portuguesa em matéria de repartição de competências jurisdicionais, é a causa de pedir invocada relativamente ao Fundo de Resolução - isto é, é a natureza da relação jurídica que o liga ao Novo Banco (e "derivadamente" à ora Recorrente) -, reportada a uma relação jurídica regulada, como abundantemente se procurou demonstrar, por normas e actos de direito administrativo, que contagia a totalidade do objecto da acção, inclusivamente no que respeita a eventual aplicação nela de normas jurídicas de direito privado;

m. Subsumindo-se, por tudo, a parte do presente litígio que respeita à alegada responsabilidade do Fundo de Resolução pela satisfação do suposto direito de crédito da Autora, ora Recorrente, enquanto detentor do capital social do Novo Banco, nas alíneas a) e f) do art. 4.º/1 do ETAF;

n. Mesmo que assim não se entendesse, essa parte do presente litígio subsumir-se-ia sempre na alínea o) desse mesmo art. 4.º/1 do ETAF - já para não falar, também, na alínea f) do art. 2.º/2 e na alínea f) do art. 37.º/1 do CPTA;

o. Julgou bem, também, o Tribunal a quo ao decidir, tendo em conta o disposto no art. 4.º/2 do ETAF, que a competência material dos tribunais administrativos para conhecer do pedido de condenação formulado contra o Fundo de Resolução, nos termos e com os fundamentos antes explicitados, se estende aos demais Réus, BES e Novo Banco, com ele solidariamente demandados nesta acção;

p. Na verdade, como se viu e demonstrou, por força dessa disposição do art. 4.º/2 do ETAF, é a componente jurídico-pública deste litígio que se propaga a totalidade do respectivo objecto, contaminando a competência material dos tribunais comuns e atribuindo-a aos tribunais da jurisdição administrativa;

q. Alegou-se, por fim, que o facto de se ter entendido no Acórdão recorrido que os Tribunais da jurisdição cível não são competentes para conhecerem da presente acção, tal como vem configurada, não constitui qualquer violação ou compressão do direito a tutela judicial efectiva, nada impedindo a Autora de accionar os Tribunais administrativos, que são os competentes, e de ver julgada a pretensão aqui deduzida;

r. Razões pelas quais deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se o Acórdão recorrido, com todos os seus efeitos.

10. - A Sra. Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido de que a competência para apreciação da causa deve ser atribuída aos tribunais administrativos, aderindo aos argumentos explanados no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.02.2018.


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II - Fundamentação


O circunstancialismo relevante para o julgamento do presente conflito é o que acaba de descrever-se no precedente relatório e que, em termos probatórios, se funda nas peças processuais que antecedem.

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III - Apreciação


1. - Nos termos do art. 101°, nº 2, do CPC "Se a Relação tiver julgado incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal dos Conflitos."

É este o caso uma vez que o acórdão do Tribunal da Relação julgou incompetente o tribunal judicial, considerando que a causa pertence à jurisdição administrativa, cumprindo decidir que tribunal será competente para conhecer da acção. Se os tribunais administrativos, como consideraram o Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juiz 3 e o Tribunal da Relação de Lisboa; se os tribunais comuns, como defende a A.

2. - Constitui jurisprudência pacífica deste Tribunal de Conflitos, o entendimento de que, a competência, tal como ocorre com qualquer pressuposto processual, se afere pelo pedido concatenado com a causa de pedir, ou seja, pela natureza da relação material em litígio, tal como configurada pelo autor Cfr., entre outros, os acórdãos proferidos nos processos nºs 01/08, 08/10, 21/10, 14/10, 37/13, 02/14, 19/14, 41/14, 53/14, 8/15 e 14/15 do Tribunal dos Conflitos, proferidos, respectivamente, a 21.05.2008, 09.06.2010, 25.11.2010, 03.03.2011, 30.10.2013, 21.01.2015, 25.03.2015, 13.11.2014, 25.03.2015, 25.06.2015 e 09.07.2015, todos disponíveis em www.dgsi.pt .

Diz-se assim que a competência se determina pelo pedido do autor. A decisão sobre qual é o tribunal (jurisdição) competente deve ser feita de acordo com os termos da pretensão daquele, aí compreendidos os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão. Manuel Andrade, in "Noções Elementares de Processo Civil", Coimbra Editora, 1963, pág. 89.

A competência do tribunal não depende, pois, da procedência da acção. É, antes, questão prévia a tal apreciação, a decidir independentemente do mérito/demérito da acção; a decidir, pois, apenas e só com base no concreto pedido e respectiva causa de pedir tal como foram deduzidos.

3. - No plano interno o poder jurisdicional divide-se por diversas categorias de tribunais, de acordo com a natureza da matéria das causas.

Como fundamento da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram. Trata-se de uma competência ratione materiae: a instituição de diversas espécies de tribunais e da demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes.

Conforme resulta dos arts. 211º, nº 1, da CRP e 64º, do CPC, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência genérica), enquanto os restantes tribunais têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.

Especificamente no que toca à competência dos tribunais administrativos estabelece o art. 212º, nº 3, da CRP, que "Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais".

4. - O critério material que enforma a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa é o de "relação jurídica administrativa", enunciado no dito art. 212º, nº 3, da CRP: o conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público.

Dito isto.

5. - A matéria em discussão foi já objecto de apreciação pelo Tribunal de Conflitos nos Acórdãos proferidos em 2019.02.14, nos processos nºs 31/18 e 46/18 Ambos consultáveis em www.dgsi.pt

sendo decidido, em suma, repartir a competência em razão da matéria pelos tribunais judiciais e pelos tribunais administrativos consoante a obrigação de indemnizar se funda essencialmente numa relação de direito privado, tal como se encontra configurado o pedido feito contra o Banco Espírito Santo, SA, Novo Banco, SA, B…………. e Fundo de Resolução ou se trata de questão emergente de uma relação jurídica de natureza administrativa, como acontece com o Banco de Portugal e a Comissão de Mercado de Valores Imobiliários.

Como se escreveu no Acórdão proferido no processo nº 46/18:

«Este Tribunal de Conflitos pronunciou-se em acórdãos recentes, uniforme e reiteradamente, no sentido da atribuição da competência material aos tribunais da jurisdição comum em diversos autos em que os demandantes ofereceram à acção uma configuração muito idêntica à aqui exibida pelo A, ou seja, em que vinham formuladas pretensões ressarcitórias com fundamentos análogos aos alegados nos presentes, mas com a radical dissemelhança de naqueles não haverem sido demandados o Banco de Portugal e a CMVM, ao invés destes [cf. acórdãos de 22-03-2018 (p. 56/17), 22-03-2018 (p. 50/17), 17-05-2018 (p. 52/17), 07-06-2018 (p. 61/17) e 08-11-2018 (p. 20/18), acessíveis na base de dados da dgsi.pt.].

Não pode deixar de ser aqui convocada essa orientação uniforme, sob pena de se pôr em causa a relativa previsibilidade e segurança na aplicação do direito, bem como o princípio da igualdade, consagrado no art. 13º da CRP - que exige que se tenha em consideração «todos os casos que mereçam tratamento análogo» (art. 8º nº 3 do CC).

Vejamos.

Considerando o pedido do A, em si mesmo, e os respectivos fundamentos, a sua pretensão em obter a condenação de todos os RR a pagar-lhe, solidariamente, uma indemnização estrutura-se, por um lado, quanto às 1ª e 2ª RR, na obrigação decorrente da violação de deveres contratuais e da prática de factos tidos por ilícitos, enquanto em relação à 3ª R (Novo Banco SA), apenas na alegada transferência para a mesma da responsabilidade (originária) do BES SA e, por sua vez, o fundamento da responsabilidade do Fundo de Resolução (4º R) pela satisfação de tal obrigação repousaria, simplesmente, no facto de, por força da supra aludida medida de resolução adoptada pelo Banco de Portugal, ser ele o único detentor do capital do Novo Banco.

Por outro lado, o alargamento dessa suposta responsabilidade solidária ao Banco de Portugal e à CMVM (5º e 6ª RR) já se estribaria, muito diferentemente, no incumprimento dos deveres de supervisão bancária, na prestação de informações erróneas ao mercado e nos actos cometidos no contexto da resolução do BES, nomeadamente, nas deliberações adoptadas, logo em 3-08-2014 (medida de resolução) e subsequentemente.

Portanto, no caso em apreço, da análise do pedido formulado na acção e das respectivas causas de pedir resulta que o A acciona a responsabilidade civil contratual e extracontratual das 1ª a 3ª RR, pelo que o conhecimento do pedido contra estas dirigido, incidindo sobre relações inequivocamente privatísticas, compete à jurisdição comum, por não dever nem poder ser deduzido na jurisdição administrativa. Conclusão que se estendeu à 3ª R (Novo Banco SA) porque o A, embora sem a envolver na prática de qualquer dos factos ilícitos em que fundamenta a constituição da obrigação de indemnizar das duas primeiras RR, estrutura a respectiva responsabilidade na sua alegada qualidade de sucessora nos direitos e obrigações da 1ª R (BES SA).

Quanto aos demais RR, Banco de Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e Fundo de Resolução, são todos pessoas colectivas de direito público, como resulta do art. 1º da Lei Orgânica do primeiro (Lei 5/98, de 31/1), do art. 1º dos Estatutos da segunda (DL 5/2015, de 8/1) e, quanto ao último, do art. 153º-B do RGICSF (DL 298/92, de 31/12, com a actualização da Lei 23-A/2015, de 26/03).

Ora, relativamente às entidades públicas BdP e CMVM, dada a configuração da acção feita pelo A, suscita-se, claramente, a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, radicando os danos que, alegadamente, o mesmo sofreu e que fundam os direitos que pretende exercer - consistentes no ressarcimento de tais danos - em actos cometidos no exercício de funções públicas ou na prossecução de um interesse público, uma vez que, sem a invocação de qualquer relação contratual com eles estabelecida, se fundamentam na falta de cumprimento dos deveres - essencialmente de supervisão - que sobre eles impendiam, tendo em conta as funções determinadas pela lei.

Especificamente quanto ao Fundo de Resolução, que vem demandado, apenas, com base na titularidade do capital do «Novo Banco» - e, igualmente, sem que lhe seja imputado qualquer concreto facto ilícito -, não só essa titularidade tem origem na aludida medida de resolução bancária decretada pelo Banco de Portugal, como a sua responsabilidade apenas se poderia estribar na sua qualidade de instrumento (dependente) da entidade pública junto da qual funciona para lhe prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução pela mesma adotadas (cf. art. 153º-C do citado RGICSF), ou seja, no caso em apreço, para a execução das deliberações do Banco de Portugal concernentes à medida de resolução tomada em relação ao BES no exercício de funções públicas e na prossecução de um interesse público.

Todavia, no que concerne a este R, considerando o estritamente alegado quanto à fundamentação da sua demanda - ser ele o único detentor do capital do Novo Banco - e o uniformemente decidido nos precedentes arestos deste Tribunal, deve concluir-se que também cabe aos tribunais judiciais a competência para conhecer a pretensão deduzida contra o mesmo.

É certo que, como supra foi relatado, o A formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais. Contudo, não enformou os fundamentos dessa sua pretensão com qualquer espécie de intervenção das entidades públicas nos factos ilícitos imputados às 1ªs RR, pelo que não ressuma da PI o fundamento previsto no citado nº 2 do art. 4º do ETAF para deverem ser demandados conjuntamente todos os RR, porquanto não se vê em que medida aqueles entes poderiam estar ligados por vínculos jurídicos de solidariedade com as demais RR (particulares), designadamente por terem concorrido em conjunto com estas para a produção dos mesmos danos Mário Aroso de Almeida [Em "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 3ª ed., pp. 253-254]) refere que aquela regra procurou obviar a dificuldades que se vinham suscitando «quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de ações de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio». .

Como uniformemente foi ponderado nos arestos deste Tribunal precedentemente referenciados, a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do artigo 513º do CC, só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao Tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos - para os poder vir a demonstrar - «de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária» [cit. acórdão de 22-03-2018 (p. 56/17)].

Em suma, no caso concreto, apenas em parte concordamos com o ajuizado pela Relação de Lisboa, pois a configuração da acção feita pelo A mostra que, enquanto relativamente aos 1ª a 4º RR a questão em que se funda a obrigação de indemnizar solicitada é, essencialmente e apenas, de direito privado, já quanto aos 5º e 6ª RR está em apreço uma questão emergente de uma relação jurídica administrativa, regulada por normas de direito administrativo, atributivas de prerrogativas de autoridade.»

Consolidada esta jurisprudência é a mesma de manter pelos fundamentos supra transcritos.


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IV - Decisão


Em face do que se decide atribuir a competência material para conhecer da acção aos tribunais judiciais no tocante aos pedidos deduzidos contra o Banco Espírito Santo SA, B………., Novo Banco SA e Fundo de Resolução; e aos tribunais administrativos, no tocante aos pedidos deduzidos contra o Banco de Portugal e Comissão de Mercado de Valores Mobiliários.

Sem custas (art. 96º do Dec. nº 19243, de 16.01.1931).

Lisboa, 11 de Abril de 2019. – Nuno de Melo Gomes da Silva (relator) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – António Leones Dantas – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Francisco Manuel Caetano – José Augusto Araújo Veloso.