Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0135/22.9T8STR.S1
Data do Acordão:11/22/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONSULTA DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - Compete aos Tribunais Judiciais a apreciação de um pedido de indemnização, deduzido, a título principal, pelos pais de vítima mortal de acidente ocorrido numa auto-estrada contra a Seguradora do veículo a cuja condutora os autores atribuem a culpa no acidente, por não ter conseguido manter o seu domínio, quando foi confrontada com a presença de um canídeo na via.
II - Compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação do pedido deduzido subsidiariamente contra a concessionária e ainda da intervenção da respectiva Seguradora.
Nº Convencional:JSTA000P31608
Nº do Documento:SAC202311220135
Recorrente:AA E BB
Recorrido 1:LUSITÂNIA COMPANHIA DE SEGUROS, S.A
Recorrido 2:BRISA – OPERAÇÃO & MANUTENÇÃO, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 14 de Janeiro de 2022, AA e BB intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém uma acção contra Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A. e Brisa – Operação & Manutenção, S.A., formulando os seguintes pedidos:


- serem os AA. declarados, ao abrigo das disposições conjugadas dos art.ºs 2131.º, 2132.º, 2133.º, n.º 1 al. b), 2136.º, 2142.º, n.ºs 2 e 3, todos do Cód. Civil, únicos e universais herdeiros de sua filha, CC, falecida em ...-...-2015;


- ser a 1.ª R. condenada a pagar aos AA. a quantia global de 250.000,00 €, nos moldes acima melhor discriminados, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal em vigor, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento, tudo com custas e o mais que legal for;


- a título subsidiário, no caso de se vir a entender que a responsabilidade pela produção do sinistro atrás descrito não cabe, na íntegra, à 1.ª R,, deverá a 2.ª R. ser igualmente condenada, solidariamente com a 1.ª R., a pagar aos AA, a referida importância de 250.000,00 €, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal em vigor, desde a citação até integral e efectivo pagamento”.


Para o efeito, e em síntese, alegaram que o acidente de viação de que resultou a morte da filha dos autores ficou a dever-se a acção da condutora do veículo ..-FZ-.., onde seguia a vítima, pedindo a condenação da ré Lusitânia – Companhia de Seguros na qualidade de seguradora para a qual “a responsabilidade emergente da circulação do veículo ..-FZ-..” se “encontrava(…), à data do sinistro, transferida (…), através de contrato de seguro válido”.


Quanto ao pedido subsidiário, mediante o qual pediram a condenação solidária das rés, os autores alegaram que a responsabilidade da ré Brisa Operação & Manutenção, S.A., resultava do incumprimento das obrigações de manutenção e segurança a que se encontrava adstrita na qualidade de concessionária do lanço do Itinerário Complementar 9 onde ocorreu o acidente, nos termos do artigo 12.º, n.º 1, al. a), da Lei 24/2007, de 18 de Julho.


Citada, a ré Brisa Operação &Manutenção, S.A., requereu a intervenção acessória provocada da Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., excepcionou a prescrição do direito invocado pelos autores, a ilegitimidade substantiva e processual da Brisa Operação & Manutenção, S.A., e impugnou os factos. Interessa recordar que, a propósito da ilegitimidade, a ré alegou que a via onde ocorreu o acidente “está subconcessionada à AELO – Auto-Estradas do Litoral Oeste, S.A.”, que “a concessionária do IC 9 não é, nem nunca foi, a Ré BO&M mas sim a EP – Estradas de Portugal, I.P. (…) a qual por sua vez, subconcedeu a construção e exploração do IC 9 à AELO (…)”.


A ré Lusitânia Companhia de Seguros, S.A., contestou, excepcionando a prescrição do direito dos autores e defendendo-se, ainda, por impugnação.


Os autores responderam às excepções deduzidas pelas rés, sustentando a sua improcedência.


Notificada, a interveniente acessória Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., contestou, aderindo ao alegado pela ré Brisa na sua contestação, incluindo os factos integrantes da matéria das excepções de prescrição e de ilegitimidade substantiva.


A requerimento dos autores, formulado na sequência de convite formulado pelo despacho de 20 de Outubro de 2022, o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Cível de Santarém – Juiz 2, por despacho de 13 de Fevereiro de 2023, deferiu a intervenção principal provocada de AELO – Auto-Estradas do Litoral Oeste, S.A., enquanto empresa (sub)concessionária da via onde ocorreu o sinistro a que se refere o presente litígio.


Citada, AELO – Auto-Estradas do Litoral Oeste, S.A., requereu a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros Fidelidade e contestou, excepcionado a prescrição do direito invocado pelos autores e impugnando os factos.


Por despacho de 7 de Setembro de 2023, o Juiz 2 do Juízo Central Cível de Santarém – Tribunal Judicial da Comarca de Santarém decidiu formular uma consulta prejudicial ao Tribunal dos Conflitos, ao abrigo do disposto no artigo 15.º, n.º 1, da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, por entender existirem “fundadas dúvidas acerca da competência material do presente Juízo para a causa (no que tange à responsabilidade da R. Brisa S.A. e ou AELO S.A.), por a competência poder pertencer aos Tribunais da Ordem Administrativa”.


Assim, solicitou ao Tribunal dos Conflitos “consulta, a título prejudicial, no sentido de confirmar a competência ou incompetência total ou parcial deste Tribunal, para apreciar os pedidos formulados nestes autos, pelos AA. contra as RR. Lusitânia S.A., Brisa S.A., interveniente acessória Fidelidade S.A. e interveniente principal provocada a AELO S.A.”.


2. Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que se seguissem os termos previstos na Lei n.º 91/2019.


Apenas os autores responderam à notificação que foi dirigida às partes para se pronunciarem, querendo. Sustentaram que o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém é competente para a causa; pelo menos, quanto ao pedido principal que formularam.


O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência aos Tribunais Judiciais para conhecer do pedido principal deduzido contra a ré Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A., e aos Tribunais Administrativos e Fiscais para apreciar o pedido subsidiário formulado contra a subconcessionária da via onde ocorreu o acidente, uma vez que “está a ser demandada por omissão praticada no âmbito de um contrato de subconcessão de obras públicas ou de serviço público”.


3. Os factos relevantes constam do relatório.


Está pois em causa, apenas, determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido dos autores, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.


Os tribunais administrativos «são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).


Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 2 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 1.º e artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).


Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 52-53, o legislador deveria esclarecer o que se entende como “relação jurídica administrativa”, nomeadamente para ser possível saber, com segurança, como delimitar o âmbito da jurisdição administrativa: “De facto, face à complexidade actual das relações entre o direito público e o direito privado no âmbito da actividade administrativa, a questão (…) transformou-se numa decisão, numa opção política entre soluções igualmente defensáveis” (nota 68).


«Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)


A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.


Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».


4. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção; ou, ainda, no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, processo n.º 020/18, “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…). A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.


5. No caso dos autos, os autores formularam um pedido principal contra Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A., alegando que o acidente se deveu à acção da condutora do veículo onde a vítima se fazia transportar – conduzia desatenta e não teve perícia para desviar o automóvel de um canídeo, que se encontrava caído inanimado sobre parte da via por onde circulava, sem perder o respectivo controlo.


Relativamente a este pedido, formulado por particulares contra uma pessoa colectiva privada, estando em causa uma relação puramente de direito privado, a competência para o apreciar cabe aos Tribunais Judiciais, nos termos do disposto nos artigos acima citados, dos quais resulta a sua competência residual, no contexto da organização judiciária.


Antes de prosseguir, cabe recordar que as decisões de admissão de intervenção de terceiros proferidas nos presentes autos não são definitivas, ou seja, não têm força de caso julgado formal, desde logo, porque não admitem recurso de apelação autónomo (cfr. o artigo 644.º do Código de Processo Civil).


Não há pois caso julgado, nem quanto à conexão com o objecto da acção, nem quanto à competência do tribunal da acção para os apreciar. Note-se, aliás, que não houve sequer decisão expressa quanto à competência, que é a questão que agora nos interessa, e que não se encontra precludida a possibilidade de o tribunal se julgar incompetente (cfr. artigo 97.º do Código de Processo Civil).


Por fim, recorde-se que a admissibilidade da dedução de pedidos subsidiários, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 554.º e n.º 1 do artigo 37.º do Código de Processo Civil, depende de o tribunal competente para a acção ser competente em razão da matéria para conhece do pedido subsidiário, isoladamente considerado; e que não foi a ré Lusitânia que chamou terceiros a intervir, não resultando portanto do artigo 91.º do Código de Processo Civil a competência para conhecer dos incidentes que se colocaram na presente acção.


O Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém é, pois, cometente para o pedido principal, nos termos do disposto nos artigos 40.º, n.º 1, 117.º, n.º 1, a) e anexo II da Lei n.º 62/2013, do mapa III anexo ao Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março e do n.º 2 do artigo 71.º do Código de Processo Civil.


6. Mas os autores pediram, ainda, a título subsidiário, a condenação solidária das rés Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A., e BRISA – Operação & Manutenção, S.A., alegando que, “à data do sinistro, a 2.ª Ré era a responsável pela operação e manutenção do Itinerário Complementar 9”, via onde ocorreu o acidente, para o caso de se entender que a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos emergentes do sinistro não incumbe, na íntegra, a Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A.


Para o efeito, sustentaram que, enquanto responsável pela operação e manutenção do Itinerário Complementar 9, integrado na Subconcessão do Litoral Oeste, incumbia à ré Brisa garantir o bom estado de conservação e as condições de utilização daquela via, designadamente, a execução das medidas necessárias para evitar que ali entrassem e permanecessem animais, deveres esses que não cumpriu.


Foi, entretanto, admitida a intervenção principal provocada de AELO – Auto-Estradas do Litoral Oeste, S.A..


A determinação da jurisdição competente e, dentro desta, do tribunal ao qual especificamente compete apreciar este pedido – condenação solidária da ré Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A., e da BRISA – Operação & Manutenção, S.A., e/ou com a interveniente AELO – Auto-Estradas do Litoral Oeste, S.A. [admite-se que da conjugação do pedido subsidiário deduzido pelos autores com o despacho a convidá-los “a fazer intervir nos autos, através do competente incidente, a empresa concessionária da via onde ocorreu o sinistro a que se reporta o presente litígio (AELO – Auto-Estradas do Litoral Oeste, S.A.)”, a fls. 209, e o requerimento da sua intervenção principal, de fls. 211, se deva concluir no sentido da alternativa], como se frisou já, decorre do pedido que foi formulado, e não, nem daquele que se entenda que haveria de ter sido, nem da sua hipotética procedência.


Em qualquer dos casos, a consideração isolada do pedido de indemnização dirigido contra uma ou outra, fundado na sua qualidade de concessionárias e na omissão do dever de garantir as condições de segurança na via, obriga a concluir tratar-se de pedidos abrangidos pela al. h) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e, portanto, da competência da jurisdição administrativa e fiscal – compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público” (n.º 1, al. h))” –, conjugada com os n.ºs 1, 2 e 5 do artigo 1.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro (aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas).


Como se escreveu no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 19 de Maio de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 06/20, a propósito de questão próxima, “Sobre a matéria de responsabilidade civil de um concessionário por incumprimento dos deveres resultantes do contrato de concessão, nomeadamente o dever de assegurar em boas condições de segurança e comodidade a circulação nas auto-estradas, a jurisprudência do Tribunal dos Conflitos tem afirmado de forma pacífica que ela se insere no âmbito de aplicação do art 1º, nº 5 da Lei nº 67/2007 e a sua apreciação compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal nos termos do art. 4º, nº 1, al. h) do ETAF (cfr. Acórdãos de 30.05.2013, Proc. 49/14 e de 23.11.2017, Proc. 10/17 e demais jurisprudência aí citada)”.


Significa isto, desde logo, que o Tribunal da Comarca de Santarém, competente para o pedido principal, não é competente para a apreciação do pedido subsidiário, no que à ré BRISA – Operação & Manutenção, S.A., respeita; assim como não é competente para apreciar um pedido de indemnização dirigido contra AELO ­– Auto-Estradas do Litoral Oeste, S.A..


A competência para os pedidos dirigidos contra qualquer uma destas rés cabe à Jurisdição Administrativa e Fiscal; concretamente, ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (artigos 4.º, n.º 1, h) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 18.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, mapa anexo ao Decreto-Lei n.º 325/2003, de 29 de Dezembro e 7.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro).


7. Poder-se-á colocar a questão de saber se, para evitar a atribuição de competências a tribunais de diferentes jurisdições, não poderia aplicar-se o disposto no n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e considerar-se competente para a acção a jurisdição administrativa. O Código de Processo Civil não contém disposição idêntica


Como se recordou no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 13 de julho de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 1974/21.3T8LRA.S1, “O n.º 2 do artigo 4.º, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro (“2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.”) – e que deve ser entendido em conjunto com o n.º 10 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, relativo à legitimidade passiva – traz para o âmbito da jurisdição administrativa o conhecimento de litígios que envolvem entidades privadas, desprovidas de poderes de autoridade, quando estão ligadas a entidades públicas por vínculos de solidariedade, nomeadamente nos exemplos referidos no citado n.º 2. A ampliação da competência da jurisdição administrativa verifica-se relativamente a essas entidades privadas, ou seja, só ocorre quando aquela competência abrange as entidades públicas nos termos das diversas alíneas do n.º 1 do artigo 4.º (ou de outra disposição legal) e justifica-se pela vantagem manifesta de possibilitar o conhecimento global do litígio, sem obrigar à propositura de acções diferentes em diferentes jurisdições, com a duplicação de actividade processual e o risco de decisões contraditórias (“O art. 4.º, n.º 2, do ETAF apresenta-se como uma concretização do princípio da tutela jurisdicional efectiva, designadamente dos sub-princípios da economia e da celeridade processual (…)”, escreve Sandra dos Reis Luís, O artigo 4.º, n.º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: sentido e alcance, in Comentários à Legislação Processual Administrativa, vol. I, 5.ª ed., Lisboa, 2020, pág. 407 e segs.., pág. 434).”


E como se entendeu neste mesmo acórdão, “Deve (…) interpretar-se o n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais no sentido de que a ampliação da jurisdição administrativa a entidades privadas, nas condições ali previstas, pode ser provocada por entidades privadas às quais “seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” (al. h) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), como aqui sucede.


A resposta é, todavia, negativa, desde logo e decisivamente, porque implicaria trazer para a jurisdição administrativa o pedido principal, como que invertendo a sua precedência sobre o(s) pedido(s) subsidiário(s); e seria igualmente negativa se apenas tivéssemos em vista o pedido subsidiário (contra a/as ré/s Brisa – Operação & Manutenção, S.A. e/ou AELO – Auto-Estradas do Oeste, S.A.), porque, como se observou no já citado acórdão do Tribunal dos Conflitos de 19 de Maio de 2021, “A competência emergente desta norma tem como pressuposto as situações de responsabilidade solidária entre entidades públicas e privadas pela reparação de danos para cuja produção tenham conjuntamente contribuído, ou que tenham assumido contratualmente a obrigação de reparação desses danos.”


Ora, no caso dos autos, os autores, pedindo embora, subsidiariamente, a condenação conjunta das rés, não invocaram devidamente vínculos de solidariedade, designadamente a concorrência de causas na produção dos danos que pretendem ver ressarcidos, sendo que entre a Lusitânia e a Brisa não existe, in casu, qualquer relação jurídica contratual.


Recorde-se que, tendo a acção sido proposta no âmbito e dentro dos limites do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, a acção devia ser proposta apenas contra a seguradora (al. a) do n.º 1 do artigo 64.º).


8. Resposta diferente merece, todavia, a questão de saber se, ao abrigo deste n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a jurisdição administrativa vê a sua competência estendida ao conhecimento da intervenção acessória provocada ou principal de Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. – não cabe aqui averiguar qual seria o meio adequado – , uma vez que assentam na alegação de contratos de seguro celebrados, respectivamente, com a ré Brisa – Operação e Manutenção, S.A., e AELO – Auto-Estradas do Oeste, S.A., hipótese expressamente prevista naquele preceito.


9. Assim, responde-se à consulta da seguinte forma:


a) Compete aos Tribunais Judiciais a apreciação do pedido principal, deduzido contra a ré Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A.; nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 16.º e no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, concretamente, ao Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, nos termos do disposto nos artigos 40.º, n.º 1, 117.º, n.º 1, a) e anexo II da Lei n.º 62/2013, do mapa III anexo ao Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março e do n.º 2 do artigo 71.º do Código de Processo Civil;


b) Compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação do pedido deduzido contra Brisa – Operação e Manutenção, S.A, bem como do pedido que se considere deduzido contra AELO – Auto-Estradas do Oeste, S.A, e ainda da intervenção, acessória e principal, de Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.; nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 16.º e no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, concretamente, ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (artigos 4.º, n.º 1, h) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 18.º, n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos mapa anexo ao Decreto-Lei n.º 325/2003, de 29 de Dezembro, e 7.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro).


Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).


Lisboa, 22 de Novembro de 2023. - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.