Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:018/15
Data do Acordão:12/03/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:ERRO JUDICIÁRIO
Sumário:Verificando-se subjacente à causa de pedir e ao pedido o erro ou irregularidade nas decisões proferidas, enquadrados no erro judiciário, definido na Lei nº 67/2007, a aferição da competência em razão da matéria, far-se-à com recurso ao regime previsto no nº 3 do artº 4º do ETAF, sendo por isso competente a jurisdição comum.
Nº Convencional:JSTA00069462
Nº do Documento:SAC20151203018
Data de Entrada:04/14/2015
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TAF DE BRAGA E A 1ª SECÇÃO CÍVEL - J5 DA INSTÂNCIA CENTRAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE BRAGA
AUTOR: A...
RÉU: MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:NEGATIVO JURISDIÇÃO TAF BRAGA - TJ BRAGA
Decisão:DECL COMPETENTE JURISDIÇÃO COMUM
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO
Legislação Nacional:CONST05 ART209 ART211 N1 ART212 N3.
ETAF02 ART1 N1 ART4 N1 N3.
CPC13 ART64.
L 62/13 DE 2013/08/26 ART40 N1.
L 67/07 DE 2007/12/31 ART13.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC025/10 DE 2011/03/29.; AC TCF PROC09/10 DE 2011/03/02.; AC TCF PROC02/10 DE 2010/09/28.; AC TCF PROC011/10 DE 2010/09/09.
Referência a Doutrina:FREITAS DO AMARAL E AROSO DE ALMEIDA - IN GRANDES LINHAS DA REFORMA DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO 3ED REVISTA.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos
1. A…………….. e mulher B…………….., residentes no lugar de ………….., …………., Braga, intentaram a presente acção administrativa comum contra o Estado Português, consubstanciada na alegação de factos que visam decisões judiciais, que reputam ilegais e injustas e, por via disso, determinaram a sua condenação e responsabilidade patrimonial.

Alegam, em síntese, terem sido proferidas pelo Tribunal Judicial de Braga duas decisões, transitadas em julgado e que foram objecto de recurso até ao STJ, que entendem ser contraditórias entre si no que respeita aos respectivos efeitos; na verdade, enquanto que na primeira dessas acções, intentada pelos AA, foi ordenado que os aí RR não prosseguissem com uma obra que levavam a efeito (sem que previamente construíssem uma parede de suporte de terras), na segunda acção, os aqui AA (e aí RR) foram condenados no pagamento de uma indemnização aos aí AA (e RR na primeira das acções mencionadas) em consequência da paralisação da mesma obra, que o primeiro Tribunal decretara e considerara legítima.

Concluem, assim, que a segunda decisão proferida é injusta e ilegal, afrontando o Estado de Direito Democrático, por ter censurado uma decisão transitada em julgado e ter feito impender sobre eles AA, a responsabilidade patrimonial de uma decisão anteriormente proferida por outro Tribunal.

E, peticionam, a final, a condenação do Estado Português, no seguinte:

a) reconhecer que as decisões judiciais a que aludem na petição inicial lhes causaram danos ilegítimos, decorrentes do exercício da função jurisdicional, não tendo os AA a menor responsabilidade no respectivo desfecho, já que exerceram o contraditório, forneceram meios de prova e esgotaram os meios recursórios, tendo, pelo contrário, agido sempre por forma a respeitarem integralmente as decisões judiciais, apenas exercendo os direitos delas decorrentes;

b) pagar aos AA uma indemnização de 526.122,09€, dos quais 476.122,09€ a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal a contar da citação até ressarcimento integral.


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No Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga foi proferido despacho que, ponderando que a causa de pedir na presente acção se traduz, no essencial, nas decisões judiciais que os AA reputam injustas e ilegais, maxime na prática de irregularidades jurisdicionais cometidas na acção sumária nº 248/01, que correu termos no 3º juízo cível da Comarca de Braga e que na perspectiva dos AA conduziu a uma decisão errada, considerou estarmos perante um alegado erro judiciário e, deste modo, julgou a jurisdição administrativa incompetente em razão da matéria, por força do disposto no artº 4º, nº 3, al. a) do ETAF, e consequentemente absolveu o R. da instância.

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Transitada em julgado esta decisão foram os autos, a pedido dos AA remetidos à Instância Central, 1ª secção Cível de Braga, tendo aí sido proferido despacho que igualmente considerou a jurisdição comum incompetente para decidir do mérito dos presentes autos, considerando que a causa de pedir formulada não se reconduz à figura do “erro judiciário”, nos termos definidos no artº 13º, nº 1, da Lei nº 67/07 de 31/12.

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Os autos foram remetidos, oficiosamente, pelo Juiz da Secção Cível da Comarca de Braga, ao Tribunal de Conflitos.

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Cumpre apreciar e decidir.

2. A factualidade com relevo para a resolução do conflito a decidir e que resulta dos autos, é a supra referida em sede de relatório.


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Estamos perante um conflito negativo de jurisdição motivado pela pronúncia de duas decisões judiciais, de sentido inverso, emitidas, primeiro, por um tribunal da jurisdição administrativa e fiscal e, subsequentemente, por um tribunal da jurisdição comum, decisões que, mutuamente, declinaram a competência material para dirimir o litígio submetido a juízo.

O poder jurisdicional, é sabido, encontra-se repartido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias das causas que perante eles se suscitam - cfr. arts. 209º e segs da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Nos termos do disposto no art. 211º, nº 1 da CRP, os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas.

Estabelecendo o art. 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26/8 – Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -, que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (também o art. 64º do CPC).

Por sua vez, art. 212º, nº 3 da CRP estabelece que, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Também o artº 1º, nº 1 do ETAF estatui que, “os tribunais administrativos e fiscais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.

A existência de várias categorias de tribunais supõe, naturalmente, um critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objectiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, dar origem a conflitos de jurisdição.

A determinação do tribunal competente em razão de matéria, é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os respectivos fundamentos, ou seja, afere-se por referência à relação jurídica controvertida, tal como exposta na petição inicial, atendendo-se ainda à identidade das partes, pretensão formulada e respectivos fundamentos, sendo, no entanto, nesta fase, indiferente o juízo de prognose acerca da viabilidade ou não da acção, face à sua configuração - cfr. entre muitos outros, os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 28-09-2010, processo nº 2/10 de 29-03-2011, processo nº 2510, de 02-03-2011, processo 9/10 e de 09-09-2010, proc. 011/10.

É inequívoco que a competência é apreciada em função da causa de pedir e pedido, aferidos à data da propositura da acção.

E quer o pedido, quer a causa de pedir invocados pelos AA, conforme supra se referiu consiste e deriva da prolação da decisão proferida no âmbito da acção nº 248/2001 que correu termos no 3º juízo cível do TJ da Comarca de Braga, que os AA consideram absolutamente ilegal e injusta.

Dispõe o nº 1 do artº 4º do ETAF, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

«(…)

al. g) questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa».

Por sua vez, dispõe o nº 3 deste mesmo dispositivo legal, que ficam excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

«a) a apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como, das correspondentes acções de regresso».

Por outro lado, a Lei nº 67/2007 de 31/12 veio clarificar a noção de erro judiciário, consagrando no artº 13º, sob a epígrafe “Responsabilidade por erro judiciário”:

«1. Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

2. O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».

Resulta do exposto que não são sindicáveis os actos de interpretação das normas de direito e a subsunção jurídica dos factos e das provas; e que o erro de direito só constitui fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada que esteja o referido núcleo da função jurisdicional, o erro se apresente como grosseiro, palmar, evidente e indiscutível de tal forma que converta a decisão judicial numa decisão arbitrária assente em premissas ilógicas e paradoxais, decorrente de culpa grave do errante, traduzido o erro numa actuação crassa e escandalosa por parte do julgador.

Cientes destas notas, cumpre, pois, apreciar se a causa de pedir invocada pelos AA se subsume a factos enquadráveis no erro judiciário, como sustentado pelo TAF de Braga, ou se, ao invés, como afirmado no tribunal comum na secção cível de Braga, a causa de pedir não se subsume a qualquer erro judiciário.

Torna-se, pois, decisiva, a interpretação que se tenha da petição inicial, analisando-se para isso, a verdadeira causa de pedir escolhida e pretendida pelos AA, de molde a dar forma ao pedido formulado.

Alegam os AA, em síntese, para consubstanciar a presente acção de responsabilidade civil extracontratual, que foram proferidas duas decisões, transitadas em julgada e que foram objecto de recurso jurisdicional até ao STJ, que entendem ser contraditórias entre si no que respeita às consequências que tiveram para a sua esfera jurídica; com efeito, enquanto que na acção 95/00 que correu termos no 1º juízo cível do TJ da Comarca de Braga foi ordenado o embargo de obra peticionado e, portanto que os aqui RR não prosseguissem com uma obra que estavam a erigir [sem que previamente construíssem uma parede de suporte de terras], decisão esta posteriormente “confirmada” através da correspondente acção principal, por seu turno, na outra acção nº 248/2001 que correu termos no 3º juízo cível do TJ da Comarca de Braga, os aqui AA (e aí RR) foram condenados no pagamento de uma indemnização em consequência da paralisação da referida obra.

E com base nesta causa de pedir, suportada na injustiça e na ilegalidade da segunda decisão, peticionam agora nesta acção o pagamento de uma indemnização em sede de danos patrimoniais, alegando ainda danos não patrimoniais decorrentes de sentimentos de revolta, angústia e injustiça gerados pela prolação da segunda decisão.

E ao salientarem o carácter de injustiça da decisão, invocam ainda a colisão/“contradição” de duas decisões [cfr. réplica que constitui fls. 280 a 293 dos autos], fundamentando deste modo a acção de indemnização no exercício da função jurisdicional.

Ora, este assacar de responsabilidade, que tem origem na alegada decisão ilegal e injusta só pode ter refúgio no âmbito do disposto no artº 13º da Lei nº 67/2007 de 31/12, pois, pese embora, os AA não apodarem frontalmente o erro de julgamento, é manifesto que é este erro que está subjacente na sua causa de pedir [independentemente da procedência ou não do pedido].

E assim sendo, teremos de concluir que não estamos no âmbito da responsabilidade resultante do funcionamento [bem ou mal] da administração da justiça, com concordância ou não dos visados, na solução obtida, mas sim no âmbito da responsabilidade por erro judiciário, definida na Lei nº 67/2007 – cfr. Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, in Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª ed. Revista – e, portanto a competência para apreciar a questão pertence à jurisdição comum, por força do disposto no nº 3 do artº 4º do ETAF.

Deste modo, é inequívoco que verificando-se subjacente à causa de pedir e ao pedido o erro ou irregularidade nas decisões proferidas, enquadrados no erro judiciário, a aferição da competência em razão da matéria, far-se-à com recurso ao regime previsto no nº 3 do artº 4º do ETAF, sendo por isso competente a jurisdição comum.

3. Pelo exposto, julga-se que a competência para a acção cabe aos tribunais comuns.

Sem custas.

Lisboa, 3 de Dezembro de 2015. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – António da Silva Gonçalves – Alberto Augusto Andrade de Oliveira – António Leones Dantas – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Gabriel Martim dos Anjos Catarino.