Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:038/13
Data do Acordão:12/18/2013
Tribunal:CONFLITOS
Relator:PAULO SÁ
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P16766
Nº do Documento:SAC20131218038
Data de Entrada:05/23/2013
Recorrente:A..................., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE FAFE E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.° 38/13 (Nº 4 TC Relator: Paulo Sá Adjuntos:)

Acordam no Tribunal de Conflitos:

I. “A..............................., SA” veio intentar acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos contra o Condomínio do Prédio, sito no gaveto da Rua ………… com a Rua …………, na cidade de Fafe, onde conclui pedindo, na procedência do pedido, a condenação do réu a pagar à autora a quantia de € 1.417,36, acrescida de juros, à taxa legal de 11,20% e 11,07% até 13/10/2008, que se calcula em € 35,81, o que totaliza a quantia de € 1.453,17, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal para juros comerciais, desde a data de vencimento de cada factura até efectivo e integral pagamento.

Para tanto alega a autora, em síntese:

Dedica-se e tem por objecto a exploração do sistema de captação e tratamento de água, resultante da concessão que lhe foi outorgada pela Câmara Municipal de Fafe.

Toda a actividade da A se rege pelo Regulamento do Serviço de Abastecimento de Água do Concelho de Fafe sendo que, nos termos do artigo 35.° do referido Regulamento, compete à A.............. “estabelecer em conformidade com o disposto na lei e no Contrato de Concessão as tarifas e as taxas que devem ser pagas pelos consumidores, como contrapartida da prestação de um serviço público”

O local do consumo é o do condomínio, reportando-se a um contador totalizador instalado na respectiva entrada, pretendendo cobrar o valor das facturas que junta, relativas a consumos de água, tarifas e taxas, cujo pagamento terá solicitado ao réu.

O réu, Condomínio do Prédio, sito no gaveto da Rua ………… com a Rua …………, apresentou contestação, onde, além do mais suscita as questões da nulidade da cláusula contratual que impõe uma taxa de disponibilidade pelo contador totalizador e do abuso de direito que consubstancia a cobrança dessa taxa, por desproporcionada ao serviço prestado e representar uma dupla tributação, face ao pagamento por cada condómino de uma taxa por cada contador individual. Conclui dever a acção ser julgada improcedente, atentas as excepções alegadas.

Na réplica, a A. responde às excepções invocadas e conclui como na petição inicial, sem deixar de referir que o Tribunal Judicial de Fafe “é incompetente em razão da matéria para se pronunciar sobre a validade” da tarifa de disponibilidade.

O tribunal lavrou despacho, a fls. 85, onde referiu afigurar-se-lhe ocorrer uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, de incompetência em razão da matéria, por entender ser o Tribunal Administrativo o competente para conhecer do litígio, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.° 1, alíneas b) e f) do ETAF, pelo que determinou a notificação das partes para querendo, se pronunciarem sobre a mencionada excepção dilatória.

O Réu apresentou requerimento onde entende dever ser reconhecida a existência da excepção dilatória de incompetência do tribunal, em razão da matéria e, em consequência, ser a ré absolvida do pedido.

A autora “A..............., SA” apresentou requerimento, onde afirma que nunca o tribunal (comum) foi declarado por qualquer tribunal superior como incompetente para tal, (o que parece de alguma forma contraditório com o afirmado na réplica e com a ressalva constante do mesmo requerimento “à excepção do preço fixo”), pelo que não se verifica qualquer excepção dilatória que possa ser conhecida.

Foi proferida a decisão de fls. 93 e ss, onde se decidiu julgar por verificada a excepção dilatória da incompetência absoluta e consequentemente declarar o Tribunal Judicial de Fafe materialmente incompetente, absolvendo-se o réu da instância.

Inconformada com a douta decisão, veio a autora “A....................................., SA” interpor recurso para a Relação de Guimarães que foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 113) mas, sem êxito, uma vez que este tribunal proferiu acórdão a negar provimento ao recurso jurisdicional e a manter a sentença recorrida.

Vem ora a A. requerer nos termos do artigo 107°, n.° 2, do CPC e dos Decretos 19243, de 16.1.1931 e 23185, de 30.10.33, a resolução do pré-conflito de jurisdição configurado, tendo formulado as seguintes conclusões:

1ª - Vem o presente recurso interposto do aliás douto acórdão de fls..., datado de 23 de Janeiro de 2012, através da qual se decidiu julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta e consequentemente declarar o Tribunal Judicial de Fafe materialmente incompetente para julgar a acção que a ora Recorrente intentou contra o ora Recorrido, absolvendo os aí Réus da instância.
2.ª - Sustenta tal decisão que é “da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e não dos Tribunais Judiciais, a preparação e julgamento de um litígio entre um particular consumidor de água e uma empresa concessionária de um serviço público próprio de um Município ao abrigo de um contrato administrativo celebrado entre ela e a autarquia no exercício da sua actividade de gestão administrativa para a prática de actos de utilidade pública e interesse colectivo, impróprios de relações de natureza tipicamente privada, como é o sistema multidimensional de contínuo abastecimento de água e de saneamento”, sustentando tal decisão no argumento de que “a causa de pedir da acção desenha-se pela prática de actos característicos da actividade administrativa” (apesar de estar me causa apenas uma AECOPEC) e que, portanto, tratando-se de “questões suscitadas no âmbito do referido contrato (…) não pertence aos tribunais judiciais, mas, essencialmente nos termos dos artigos 178º, n.º 1 e n.º 2, al.s g) e h) do CPA e dos artigos 1 e 4 n.º 1 al. f) do ETAF, aos tribunais administrativos”.
3.ª - Porém a relação contratual em causa nestes autos é uma relação jurídica de direito privado, no âmbito de um contrato de prestação de serviços (abastecimento de água e saneamento), com obrigações emergentes desse mesmo contrato.
4.ª - A Recorrente não actua revestida de um poder público, não tendo as partes submetido a execução do contrato em causa a um regime substantivo de direito público (cfr. artigo 4°. n° 1, alínea f, a contrario, do ETAF).
5.ª - A Recorrente não impõe taxas, nem tarifas, antes presta serviços, por força de um contrato celebrado com o recorrido, cuja contrapartida se intitula de preço, nos termos do Regulamento do Serviço de Abastecimento de Água ao Concelho de Fafe e do Contrato de Concessão celebrado entre a Autora e o município de Fafe, regulamento esse que impõe as referidas taxas e tarifas, bem como outras regras de conduta, seja à recorrente, seja ao recorrido.
6.ª - No caso em apreço não está em causa a competência para conhecer das questões relativas à validade de regulamentos administrativos ou de contratos administrativos, mas sim da competência para conhecer das questões relativas à validade do contrato celebrado entre a ora Recorrente e o ora Recorrido e da execução e do seu cumprimento pelos outorgantes, o qual é uma manifestação de uma relação jurídica de direito privado.
7.ª - Nesta parte, em que a recorrente se limita a fornecer bens ao Recorrido, tendo este como obrigação pagar o preço correspondente e os acréscimos legais e regulamentares, não está em causa qualquer relação jurídico-administrativa, nem o contrato celebrado entre as partes tem natureza de contrato administrativo, logo à partida porque a relação em causa se destina a prover as necessidades dos recorridos e não quaisquer fins de “interesse público”.
8.ª - Apesar da Recorrente se tratar de uma empresa concessionária de um serviço público essencial, para determinar a natureza pública ou privada das relações jurídicas que esta estabelece, será necessário determinar em concreto se o fim visado de interesse público ou geral, sendo este corolário exibido de forma plana pela doutrina existente.
9.ª – O regime substantivo previsto na Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, que regula o fornecimento e prestação de “serviços públicos essenciais”, apesar de conter normas imperativas de direito público é um regime substantivo de direito privado, enformando não só a relação entre recorrente e recorrido, mas igualmente a actividade das distribuidoras de gás, electricidade, operadoras de serviços de transmissão de dados ou serviços postais.
10.ª – A expressão “serviços públicos essenciais”, prevista na Lei nº 23/96, de 26 de Julho não tem correspondência com a definição de interesse público.
11.ª – Ao invés, ao relacionar a actividade da Recorrente e os serviços que presta ao Recorrido na supra identificadas lei, o legislador pretendeu submeter todos os contratos dessas categorias a um regime idêntico, que é de direito civil.
12.ª - É certo que, no tocante à criação e fixação de taxas pela prestação de um serviço público, correspondendo ao exercício de poderes públicos, apenas a jurisdição administrativa se pode pronunciar, mas tal questão não tem qualquer correspondência com o objecto do litígio, tal qual foi conformado pela Recorrente na petição inicial, uma vez que este se destina unicamente a obter a cobrança da contra-prestação que lhe é devida pela Recorrida pelo fornecimento de água e saneamento e respectivos acréscimos regulamentar e legalmente impostos.
13.ª - A continuação, resulta que o contrato celebrado entre a Recorrente e os Recorridos não é enquadrável no artigo 178° do CPA, não podendo ser classificado como um contrato administrativo, não se tratando, pois, de um contrato de “fornecimento contínuo e de utilidade pública imediata”, nas asserções previstas nas alíneas g) e f) do n.° 2 do mesmo artigo.
14.ª - Isto porque aqueles contratos de “fornecimento contínuo e de utilidade pública imediata” são os que se destinam ao suprimento do interesse público e, portanto, ao prosseguimento dos fins visados (atribuições) por determinado entre público, no âmbito das suas competências.
15.ª - Em suma, pretendendo discutir a validade das normas (legais, regulamentares ou contratuais) de natureza administrativa ou fiscal que balizam a sua relação com a Recorrente, terá o Réu que se socorrer dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
16.ª - Estando em causa a exigência do cumprimento das obrigações sinalagmáticas decorrentes do contrato e da sua execução e a cobrança dos acréscimos legais, os tribunais competentes são os Tribunais judiciais, in casu o Tribunal Judicial de Fafe, por força do disposto no artigo 66° do CPC.
17.ª - A decisão proferida no Acórdão da Relação de Guimarães proferido no processo 12698209.2YIPRT.G1 (22.2.2008) e a decisão recorrida estão em directa oposição com o sentido da decisão proferida no processo n.° 103 108.8TBFAF.G1, já transitado, e do acórdão proferido no processo n.º 103543/08.8YIPRT (23.10.2012), todos do Tribunal da Relação de Guimarães.
18.ª - Nesta medida, é forçoso concluir que ao julgar procedente a excepção de incompetência material andou mal o Tribunal da Relação de Guimarães, fazendo uma errada interpretação das disposições conjugadas do artigo 178º n.º 1 e n.º 2 g) e h) do CPA, então em vigor, e ainda dos artigos 1º n.º 1 e 4º n.º 1 alínea f) do ETAF, violando assim o disposto no artigo 66º do CPC e o artigo 24º e 26º da LOFTJ.
19.ª – Finalmente, em revolução definitiva do pré-conflito de competência, deve o Tribunal dos Conflitos fixar, com força de caso julgado material que compete aos tribunais judiciais a preparação e julgamento das acções especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de fornecimento de água canalizada para consumo público e saneamento, celebrados entre um ente privado, concessionário do respectivo serviço público, e outro particular.

Foi dada vista ao M. P.° que emitiu o seguinte parecer:

Neste conflito pretende-se apurar qual o Tribunal competente para apreciar a Acção Especial para Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos de fornecimento de água canalizada para consumo público, intentada pela empresa “A....................... SA, contra o Condomínio do Prédio (…) sito na cidade de Fafe.

Quer o Tribunal Judicial de Fafe, quer o Tribunal da Relação de Guimarães, entenderam que os Tribunais Judiciais eram materialmente incompetentes para conhecer da acção.

Este último Tribunal alicerçando-se em jurisprudência vária sobre esta matéria, designadamente no Ac. n° 12.698209.2JIPRT.6 — de 22.02.2011, entendeu que os Tribunais Administrativos e Fiscais eram materialmente competentes, para conhecer do litígio entre um particular consumidor de um serviço público próprio de um Município.

No recurso interposto desta decisão para o Tribunal de Conflitos a Autora pugna pela competência do foro comum, alegando tratar-se de uma relação jurídica de direito privado, no âmbito de uma prestação de serviços (vide conclusão n° 3 das alegações do recurso a fls. 161). Mais alega, na parte que nos importa salientar, que apesar de se tratar de uma empresa concessionária de um serviço público essencial, não existe correspondência com a definição de interesse público (sublinhado nosso) (vide conclusão 7 a fls. 162 e 163).

Vejamos.

O contrato de concessão entre a Câmara Municipal de Fafe e a “A........................ foi celebrado em 11.01.1996 com vista ao fornecimento de água às populações.

A Autora é uma sociedade anónima de direito privado e através daquele contrato ficou incumbida de prestar um serviço de primeira necessidade, ou seja, de prestar um serviço público essencial.

A propósito desta matéria, embora relacionada com a cobrança de consumos mínimos, denominados como tarifa de disponibilidade, por parte de uma empresa concessionária de exploração e gestão de serviços públicos municipais de água e de saneamento, o Tribunal de Conflitos já se pronunciou no Ac. nº 17/10, de 09.11 2010 (.).

Neste acórdão entendeu-se que os Tribunais Administrativos e Tributários eram competentes para conhecer da acção.

É certo que a ora Recorrente alega que nos presentes autos não está em causa o pagamento de taxas, nem tarifas, as quais admite que se enquadram numa relação de natureza pública “… para cobrança de valores por serviços efectivamente prestados ou bens efectivamente fornecidos a um particular” (vide fls. 159 in fine) e são, por isso da competência dos Tribunais Administrativos, tal como se decidiu naquele Conflito.

Ao invés, defende que a relação jurídica subjacente ao contrato de fornecimento de água ao condomínio, ora Réu, constitui uma relação jurídica de direito privado, por estar “… em causa a exigência do cumprimento das obrigações sinalagmáticas decorrentes do contrato e da sua execução e a cobrança dos acréscimos legais, os tribunais competentes são os Tribunais Judiciais...” (vide conclusão 6 a fls. 163).

Porém, não vemos razão para haver tratamento jurídico diferente nas duas situações, uma vez que o que está subjacente é a prestação de “serviços públicos essenciais” prevista na Lei dos Serviços Públicos n° 23/96, de 26.07.

O fornecimento de água, além de ser um serviço público essencial tem em vista, também, a realização de um interesse público, por se tratar do fornecimento de um bem indispensável à colectividade, conforme dispõe o art° 2°, n° 1, alínea a) do Dec-Lei n° 379/93, de 05.11 que refere: “... São os seguintes os princípios fundamentais do regime de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais:
a) O princípio da prossecução do interesse público”.
Deste modo, a causa de pedir consiste na prática de actos característicos de actividade administrativa, da competência dos municípios, enquadrando-se na previsão dos art°s 1° e 4°, n° 1, alínea f) do ETAF.

Assim, nos termos da decisão proferida pela Relação de Guimarães, somos de parecer que a competência pertence aos Tribunais Administrativos.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

II. Fundamentação.

A. De facto

Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.

B. De Direito

B.1 Conforme dispõe o art° 209.º, da Constituição da República Portuguesa, CRP, existem diversas ordens ou categorias de tribunais (Cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Anotada, 3.ª ed., p. 805), uma das quais a dos tribunais judiciais, que são, nos termos do artigo 211.° da lei fundamental, os «comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».

A competência residual dos tribunais judiciais resulta também do art.° 18.º, n.° 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, a Lei n.° 3/99, de 13.01 (objecto de sucessivas alterações), e do art.° 66.° do CPC, com a redacção dada pelo DL n.° 329-A/95, de 12.12, ao referir que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Outra ordem ou categoria é a dos tribunais administrativos e fiscais, aos quais, de acordo com o preceituado no art.° 212.°, n.° 3, da Constituição, compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

São os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 1.°, n.° 1 do ETAF, aprovado pela Lei n° 13/2002 de 19.02).

A competência desta jurisdição está prevista e regulada, ainda, e exemplificadamente, nos artigos 4.° e 44.° do ETAF, e capitulo III do Titulo I do CPTA.

Aos tribunais administrativos incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas, competindo-lhes, nomeadamente, conhecer das acções sobre responsabilidade civil dos entes públicos e dos titulares dos seus órgãos ou agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso, do mesmo passo que lhes é retirada competência para conhecimento de acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público (arts. 212°, n.° 3, da Constituição da República Portuguesa e, 4.° e 44.° do ETAF).

Comentando o citado n.° 3 do artigo 212.° da CRP, dizem GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA (obra supra referida acima, p. 815):
TRIBUNAL DOS CONFLITOS

«Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração); 2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal».

VIEIRA DE ANDRADE (in A Justiça Administrativa, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, p. 55) perfilha idêntico entendimento:

«Esta questão sobre o que se entende por “relação jurídica administrativa”, sendo fulcral, devia ser resolvida expressamente pelo legislador. Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração […]».

A competência material está ligada à defesa de interesses de ordem pública, pelo que o seu conhecimento deve preceder qualquer outro, podendo ser arguida pelas partes ou suscitada oficiosamente até ao trânsito em julgado da decisão sobre o fundo da causa, nos termos dos art.os 101.º, 102.°, n.° 1, 288.°, n.° 1, a), e 494°, a), do Código de Processo Civil.

A atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pelo autor, projectando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto, a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, não havendo, caberá ela, subsidiária e residualmente, aos designados “tribunais comuns” (Cf. Acs STJ de 27.05.03, Proc. n.° 03A1376 e de 11.12.03, Proc. n.° 03B3845, disponível em http://www.dgsi.pt).

O Tribunal Judicial de Fafe fundou a sua decisão de incompetência no facto de considerar os tribunais administrativos como os competentes em razão da matéria para conhecer da acção, porquanto entendeu que “o pedido formulado se reporta ao fornecimento de água e saneamento, prestados pela A. à Ré, a primeira na qualidade de concessionária e, consequentemente, actuando por delegação da autarquia a quem competem as respectivas atribuições públicas.

Como é incontroverso, doutrinal e jurisprudencialmente, a competência do tribunal é determinada pelo pedido feito pelo autor e pelos fundamentos que invoca [o quid disputatum].

Como se sustentou no acórdão da Relação é necessário ponderar se os pedidos e causa de pedir da acção, tal como ficaram supra explicitados, serão de conhecimento dos tribunais administrativos ou dos tribunais comuns, e, para isso, esclarecer se emergem, ou não, de uma relação jurídico-administrativa.

É patente que a qualificação da acção proposta no tribunal comum como de responsabilidade civil contratual, tout court, não logra qualquer ponto de apoio.

Como bem se afirma no acórdão da Relação:

«Pela análise das diversas alíneas do art.° 4.° do ETAF conclui-se que o legislador pretendeu consagrar o princípio de que a jurisdição administrativa está vocacionada para o conhecimento de todos os litígios emergentes de relações administrativas.

Escreveu-se no acórdão da Relação do Porto proferido no proc. n.° 2861/09TJVNF.PI relatado pela Ex.ma Desembargadora Catarina Gonçalves, depois de se citarem dois acórdãos do Tribunal de Conflitos, que a noção e caracterização da relação jurídica administrativa assenta nos seguintes pressupostos:

— É uma relação estabelecida com a Administração que, emergindo do exercício (por parte da Administração) de um poder público e da realização de uma função pública e assentando na prevalência do interesse público sobre o particular, confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração; e

— É uma relação regulada, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo.

Também do acórdão de 16.10.2008 da Relação de Guimarães (Proc. n.° 1609/08-1, in www.dgsi.pt, também citado no acórdão desta Relação do Porto de 30.4.2009, proc. n.° 0831167, publicado na mesma base de dados), resulta que “no quadro da competência material dos tribunais administrativos, distingue-se entre o contencioso por natureza ou essencial e o contencioso por atribuição ou acidental, abrangendo, o primeiro, os atos e regulamentos administrativos e o último, os contratos administrativos, a responsabilidade da administração, os direitos e interesses legítimos e as questões eleitorais.

Como é intuitivo ao concretizar, mesmo que exemplificativamente, os litígios da competência da jurisdição administrativa o legislador não pretendeu exorbitar da matriz constitucional de tal jurisdição, confinada às relações administrativas.

É competente, em razão da matéria, o foro administrativo quando, além da qualidade da pessoa responsável, exista um facto que seja característico da atividade administrativa, ou seja, da gestão pública.

Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas.

Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras:

(1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração);

(2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal”.

O acórdão da Relação do Porto de 31.3.2011 (Proc. n.° 147/09.8TBVPA.P1, in www.dgsi.pt.), citando um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.9.2010, conclui que o critério em causa, de conteúdo material, entronca agora em conceitos como a relação jurídica administrativa e a função administrativa, havendo que deparar-se com uma relação jurídica em que um dos sujeitos, pelo menos, seja ente público (Administração, intervindo com poderes de autoridade, com vista à realização do interesse público), regulada por normas de direito administrativo.

E, segundo DIOGO FREITAS DO AMARAL E MÁRIO AROSO DE ALMEIDA (Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 2.ª edição, págs. 101 e 102), há no âmbito da aI. f) do art.° 42.° do ETAF, três situações a distinguir:

Primeira situação: A dos contratos de “objeto passível de ato administrativo” — que os mesmos autores referem serem aqueles “que determinem a produção de efeitos que também poderiam ser determinados através da prática, pela entidade pública contratante, de um ato administrativo unilateral” —, apresentando adiante como excluídos desse campo os casos em que esteja “apenas em causa a previsão da possibilidade do exercício de direitos meramente potestativos, passíveis de serem estipulados no âmbito de relações de natureza puramente privada.

Com efeito, a mera estipulação, por exemplo, de um direito de rescisão sem outra referência que especifique que esse direito pode ser exercido por ato administrativo não faz com que a entidade pública fique titular de um poder público, mas apenas de um direito potestativo, a exercer nos mesmos moldes em que o seria por um privado.

Tem, pois, de ser expressamente assumida, de forma inequívoca, a atribuição ao contraente público do poder de praticar atos administrativos no âmbito da relação”.

A segunda situação respeita a “contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo”, ou seja, os contratos administrativos típicos.

A terceira situação é relativa a “contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”.

Ou seja, comum a todas as situações previstas no art.° 4.º, n.° 1, al. f), do ETAF, é a indispensabilidade de intervenção nos contratos de uma entidade pública.

Como ensina Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, 1991, vol. 1, p. 643), atos de gestão pública são aqueles que, visando a satisfação de interesses coletivos, realizam fins específicos do Estado ou de outro ente público e assentam sobre o jus auctoritatis da entidade que os pratica, enquanto de gestão privada são os atos que, embora praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares.

No acórdão do Tribunal de Conflitos de 5.11.1981 (BMJ, n.° 311/195) cuja distinção foi acolhida nos mesmos termos pelos acórdãos do STA de 26.11.96, Proc. n.° 41222, e de 26.6.97, in ADSTA, n.° 433, Janeiro de 1998, considerou-se que “ solução do problema da qualificação como de gestão pública” ou de “gestão privada”, dos atos praticados pelos titulares de órgãos ou agentes de uma pessoa coletiva pública, reside em apurar:

— se tais atos se compreendem numa atividade da pessoa coletiva em que esta, despida do poder público, se encontra e atua numa posição de paridade com os particulares a que os atos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado; ou se, contrariamente,

— esses atos se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos atos devem ser observadas”

Resulta do art.° 13.° da Lei n.° 159/99, de 14 de Setembro que os municípios têm atribuições em vários domínios, designadamente na área do equipamento rural e urbano, ambiente, saneamento básico e urbanismo.

É da competência dos órgãos municipais fazer a gestão e a realização de investimentos em vários domínios, entre eles, os sistemas municipal de abastecimento de água, de drenagem e tratamento de águas residuais urbanas e de limpeza pública e de recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos [art.° 26°, n.° 1, al.s a), b) e c) da mesma lei].

É ainda da competência dos órgãos municipais no domínio do apoio ao desenvolvimento local, além do mais, criar ou participar em empresas municipais e intermunicipais, sociedades e associações de desenvolvimento regional (al. b) do n° 1 do subsequente art.° 28°).

O art.° 179°, n.° 1, do CPA prevê que os órgãos administrativos celebrem quaisquer contratos administrativos na prossecução das atribuições da pessoa coletiva em que se integram, fazendo parte daquela categoria de contratos os que se destinam à “prestação de serviços para fins de imediata utilidade pública” (al. h) do mesmo preceito legal).

Com a aprovação do Decreto-Lei n.° 372/93, de 29 de Outubro, que alterou o art.° 49.° da Lei n.° 46/77, de 8 de Julho, consagrou-se a possibilidade de participação de capitais privados, embora sob a forma de concessão, a empresas intervenientes no sector da captação, tratamento e distribuição da água para consumo público, recolha, tratamento e rejeição de efluentes e recolha e tratamento de resíduos sólidos, criando-se a distinção entre sistemas multimunicipais e sistemas municipais.

Em todo o caso, a concessão, a outorgar pelo Estado, destina-se sempre a empresas que resultem da associação de entidades do sector público, designadamente autarquias locais, em posição obrigatoriamente maioritária no capital social da nova sociedade, com outras entidades privadas (art.° 4.º, n.° 3, daquele diploma legal).

O contrato de concessão à A.................... existe e foi celebrado no dia 11 de Janeiro de 1996, conforme alegado.

O abastecimento de água às populações é um serviço de primeira necessidade, como é sabido, um serviço público essencial, tradicional e prioritário, controlado pela Câmara Municipal através da concessão.

Pese embora a A................................, SA, seja uma sociedade anónima (de direito privado), prossegue fins contratados de interesse público que, não fosse a concessão, seriam desenvolvidos directamente por normais atos de gestão autárquica administrativa.

Casos há em que a administratividade dos contratos deriva da existência de fatores legais dessa natureza, sem que seja necessário que as partes declarem expressamente que os mesmos ficam sujeitos a um regime substantivo desses.

Como se vê, é de direito público o contrato celebrado entre a requerente e o requerido, com base em normas que regulam “aspetos específicos do respetivo regime substantivo”, incluído na própria concessão.

A relação jurídica corporizada pelo contrato celebrado, prossegue o interesse público, patente, além do mais, na definição do regime tarifário e no regime de faturação, em obrigações assumidas pelo município que se regem pelo estabelecido no contrato de concessão, de que depende a vigência do próprio contrato celebrado entre requerente e requerida.

Afigura-se-nos, neste circunstancialismo, que os serviços prestados pela requerente a favor do requerido não revestem a natureza de atos privados, suscetíveis de serem desenvolvidos por qualquer particular, mas, ao invés, têm natureza pública; são praticados num condicionamento legalmente determinado no domínio de atos de gestão para a prática de serviços contínuos e de utilidade pública imediata (art.° 178°, n.°s 1 e 2, al. h), do Código do Procedimento Administrativo), ainda que não se trate de uma pura relação de autoridade caracterizada pelo jus imperii que ocorre em determinadas relações da administração com os particulares.

Para o Prof. A. Varela (RLJ, 1242/59), “atividades de gestão pública são todas aquelas em que se reflete o poder de soberania próprio da pessoa coletiva pública e em cujo regime jurídico transparece, consequentemente, o nexo de subordinação existente entre os sujeitos da relação, característico do direito público”.

Mas acrescenta que “simplesmente, nem todos os atos que integram gestão pública representam o exercício imediato do jus imperii ou refletem diretamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoas coletivas.
Essencial para que seja considerada de gestão pública é que a atividade do Estado (ou de qualquer outra entidade pública) se destine a realizar um fim típico ou específico dele, com meios ou instrumentos também próprios do agente”.

Como se refere no acórdão desta Relação de Guimarães de 22.2.2011 (Proc. 12698209.2Y1PRTG1, in www.dgsi.pt), citando Marcelo Caetano (Manual de Direito Administrativo, p. 1081 e seguintes), “o concedente mantém a titularidade dos direitos e poderes relativos à organização e gestão do serviço público concedido, como o poder de regulamentar e de fiscalizar a gestão do concessionário, aplicando-se aqui, no essencial, os princípios da tutela administrativa.

O serviço público concedido nunca deixa, pois, de ser uma atribuição e um instrumento da entidade concedente, que continua a dona do serviço, sendo o concessionário a entidade que recebe o encargo de geri-lo, por sua conta e risco”.

A causa de pedir da ação desenha-se pela prática de atos característicos da atividade administrativa, da competência dos municípios; uma relação dirigida à satisfação do interesse público e das necessidades coletivas, em que se inclui, como vimos, a celebração de contratos administrativos.

A forma processual de cobrança destas dívidas não passa nem nunca passou obrigatoriamente pela instauração de uma injunção ou de uma AECOP.,

E se a Lei dos Serviços Públicos (Lei n.° 23/96, de 26 de Julho), na sua versão de Junho de 2008 (Lei n.° 24/2008) passou a referir-se expressamente ao processo de injunção, sob o n.° 4 do art.° 102°, tal como se referiu a ação, não significa, só por si, que seja essa a forma de processo adequada quando, segundo as atuais regras prevalentes da competência, essa forma não seja admissível.

Por outro lado, nem todos os serviços abrangidos pela proteção daquela lei são prestados nas mesmas condições, pelo Estado ou autarquias locais.

Assim sendo, a competência para conhecer, judicialmente, das questões suscitadas no âmbito do referido contrato, surgido no âmbito de uma relação jurídica administrativa e inserido no âmbito da gestão da coisa pública, não pertence aos tribunais judiciais, mas, essencialmente nos termos dos art.°s 178°, n.° 1 e n.° 2, al.s g) e h) do CPA e dos art.°s 1.º e 4°. n.° 1, al. f) do ETAF, aos tribunais administrativos.

Por isso, o tribunal judicial de Fafe é absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objeto da ação»

Abster-nos-íamos de algo acrescentar, não fora o caso de ter sido recentemente publicado outro acórdão do Tribunal de Conflitos, com toda a similitude com a situação em apreço, como contributo que não pode deixar de ser valorizado.

Neste acórdão de 25.06.2013, proferido no processo n.º 33/2013, começa-se por chamar à colação os acórdãos deste Tribunal, proferidos nos Conf. 14/06 e 17/10, de 26.09.2006 e 9.11.2010, onde se sustenta «que a generalidade das alíneas do artigo 4.° n.° 1 do ETAF que enumeram exemplificativamente os litígios que são atribuídos à jurisdição especializada dos tribunais administrativos e fiscais, visam concretizar pela positiva o conceito de matriz constitucional de relações administrativas e fiscais.

É também o caso, como neles se referiu da aI. d) nos termos da qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a fiscalização das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente por concessionários, no exercício de poderes administrativos.

(...) Na espécie apreciada no Conflito 17/10 era A. o condomínio de um prédio e R. uma concessionária do Município de Gondomar. O A. pretendia ver a R. condenada a reconhecer a inadmissibilidade e ilegalidade da cobrança de consumos mínimos denominados tarifa de disponibilidade. O Acórdão entendeu que a concessionária tinha o poder conferido pelo art.° 13°, n.° 2, do DL 379/93 de, precedendo aprovação pelo concedente, fixar, liquidar e cobrar taxas aos utentes, portanto, um poder conferido por normas de direito administrativo.

(...) No caso presente também não há dúvida de que a requerente é concessionária do serviço público de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público do Município de Fafe, actividade vedada a particulares, salvo quando concessionadas — n.° 1, al. a), do DL 88-A/97, de 25/7. Na verdade, o art.° 407°, n.° 2, do DL n.° 18/2008, de 29/1, republicado pelo DL 278/2009, de 2/10, dispõe que se entende por concessão de serviço público o contrato pelo qual o co-contratante se obriga a gerir em nome próprio e sob sua responsabilidade, uma actividade de serviço público durante um determinado período, sendo remunerado pelos resultados financeiros dessa gestão, ou directamente pelo contraente público.

(…) No âmbito do contrato celebrado entre a concessionária e o utente, no caso o 1.° R., (a fls. 48) este aceitou pagar as tarifas em vigor à data e as que venham a ser fixadas, as tabelas de aluguer de contadores e depósitos de garantia e sujeitar-se a todas as demais condições de fornecimento fixados pela Câmara Municipal ou por Regulamento. Isto é, a fixação do tarifário em vigor estava fixado por acto de autoridade da câmara tal como ficava dependente de futuros actos unilaterais de autoridade e as taxas dependem de aprovação segundo a Lei das Finanças Locais, isto é, fora do regime contratual baseado no acordo como expressão da vontade dos contratantes.
A colocação de um contador totalizador, para além dos contadores das fracções e das partes comuns, a cobrança de uma quantia fixa por este contador e os fins e a forma de cobrar encargos por este equipamento fazem também parte de disposições pré-existentes ou determinadas unilateralmente, fora do controlo da vontade do consumidor e portanto, uma imposição unilateral, mesmo que, no caso concreto tenham como referencial no texto do contrato a cláusula que refere: “os clientes são responsáveis por todo o gasto de água em fuga ou perdas nas canalizações da distribuição interior e dispositivos de utilização”.
Podemos assim concluir que a A. ao pedir a condenação dos RR a pagar as tarifas e encargos com fornecimento de água ao Condomínio estava a exigir e cobrar um crédito cuja formação assenta em tarifas, encargos e eventualmente taxas que são a final estabelecidas pelo detentor do exclusivo do serviço, o Município de Fafe, segundo poderes e normas de direito administrativo, pelo que a matéria cabe na previsão da al. d) do n.° 1 do art.° 4.° do ETAF como matéria submetida aos tribunais administrativos e fiscais.
Assim como cabe igualmente na al. f), visto da perspectiva do contrato em cujo âmbito surge a cobrança do serviço, já que como se viu, existem normas de direito público que regulam aspectos específicos do respectivo regime substantivo.»

E continuou-se no referido acórdão:

«Como acabamos de ver a acção emerge do litígio provocado pela exigência ao condomínio, pela empresa concessionária do abastecimento de água, de um preço fixo por um contador totalizador que colocou no edifício, como contrapartida do serviço. A imposição deste encargo a estes contadores reveste a natureza de questão fiscal por resultar de “resolução autoritária que impõe aos cidadãos o pagamento de uma prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas”. Igualmente a questão de saber se é devida a tarifa pela água contada por um contador totalizador colocado fora e antes do circuito dos contadores dos consumidores de um prédio em regime de propriedade horizontal releva de normas legais e regulamentares sobre a prestação deste serviço público que são normas de direito público e extravasam do regime comum dos contratos. Além disso são matérias que relevam da natureza fiscal segundo o critério que acaba de enunciar-se.»

Finalmente não deixou o Tribunal de Conflitos de reforçar a respectiva fundamentação com o decidido no acórdão de 10 de Abril de 2013, (proc. 015/12) do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, onde se formulou a seguinte jurisprudência:

«No domínio de vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei n.° 2/2007, de 15 de Janeiro) e do DL n.° 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, uma vez que, o termo “preços” utilizado naquela Lei equivale ao conceito de “tarifas” usado nas anteriores Leis de Finanças Locais e a que a doutrina e jurisprudência reconheciam a natureza de taxas, pelo que podem tais dívidas ser coercivamente cobradas em processo de execução fiscal».

No caso tratado no acórdão do Pleno citado estava em apreciação a cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal, mas entendeu o acórdão de 25 de Junho a que nos temos vindo a referir que a cobrança de dívidas a uma concessionária deveria ser vista no mesmo enquadramento e com a mesma solução, porquanto naquele «se inclui o próprio diferendo sobre o preço da água — fixado segundo regras de direito público em regime excluído da concorrência — como aspecto submetido à competência dos tribunais tributários, mesmo quando se reconhece que o concessionário não dispõe da possibilidade de recorrer à execução fiscal.»

Importa apenas sublinhar que, nestes autos, a A. começou por invocar o seu estatuto de concessionária e os poderes daí decorrentes, designadamente o de fixar taxas e tarifas; que o R, na sua contestação, para além de impugnar o débito, excepciona a legalidade da cobrança de uma taxa de disponibilidade e o abuso de direito que a sua exigência configura e que, na réplica, a A. sustenta a incompetência em razão da matéria do tribunal judicial para se pronunciar sobre a validade da “tarifa de disponibilidade”.
Face à configuração inicial da acção, ao seu desenvolvimento face às questões suscitadas na contestação, não é possível deixar de extrair as devidas consequências da relação jurídica administrativa em causa, sendo incontroverso que seria inadmissível que o tribunal comum apreciasse e decidisse sobre o reconhecimento da dívida, sem poder conhecer, por falta de competência material, da questão controvertida sobre a validade da “tarifa de disponibilidade”.

Por tudo o exposto é de concluir que a jurisdição competente para conhecer do litígio, tal como se concluiu nos aludidos Conflitos 14/06, 17/10 e 33/13, são os tribunais administrativos e fiscais, através dos tribunais tributários, face ao disposto no artigo 49°, n.° 1, al. c), do ETAF.

III. Decisão:

Pelo exposto, acordam em declarar competentes os tribunais administrativos e fiscais, através dos tribunais tributários, para conhecer da acção proposta.

Sem custas.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2013. - Paulo Armínio de Oliveira e Sá (relator) - Alberto Augusto Andrade de Oliveira - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - António Políbio Ferreira Henriques - José Adriano Machado Souto de Moura - Maria Fernanda dos Santos Maçãs, voto conforme Declaração de voto anexa.
Conflito n° 38/13
Voto de vencida
Não acompanho a tese que fez vencimento quando se conclui, a p. 16, que “a A. ao pedir a condenação dos RR a pagar as tarifas e encargos com fornecimento de água ao Condomínio estava a exigir e cobrar um crédito cuja formação assenta em tarifas, encargos e eventualmente taxas que são a final estabelecidas pelo detentor do exclusivo serviço, o Município de Fafe, segundo poderes e normas de direito administrativo, pelo que a matéria cabe na previsão da al. d) do n° 1 do art. 4º do ETAF como matéria submetida aos tribunais administrativos e fiscais”, pelas razões que se seguem.
No mesmo acórdão pode ler-se a dado passo que “Como é incontroverso, doutrina e jurisprudencialmente, a competência do tribunal é determinada pelo pedido feito pelo autor e pelos fundamentos que invoca”.
Resulta dos autos que a A. intentou acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos contra “o Condomínio do prédio” X pedindo a condenação do R. a pagar à A. “a quantia de € 1.417,36, acrescida de juros, à taxa legal de 11,20% até 13/10/2008, que se calcula em € 35,81, o que totaliza a quantia de €1.453,17, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal para juros comerciais, desde a data do vencimento de cada factura até efectivo e integral pagamento”.
Alega para o efeito que, “no âmbito da sua actividade comercial, por concessão da exploração do sistema de captação, tratamento e distribuição de água ao concelho de Fafe, efectuou um contrato com a requerida tendo-lhe sido prestado os serviços contratados, sendo que findo o prazo de vencimento o pagamento devido não foi efectuado”.
Assim sendo. a seguir-se o entendimento perfilhado no acórdão, quanto à determinação da competência, a conclusão a extrair-se teria de ser no sentido de a cometer, no caso dos autos, aos tribunais comuns.
Senão vejamos.
1. O art. 4°, n° 1, alínea f), do ETAF comete à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios sobre a interpretação, validade e execução de:
i) Contratos de objecto passível de acto administrativo; ii) De contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo; iii) Ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
Atentas as características do caso em apreço, o mesmo poderia subsumir-se apenas na hipótese prevista no ponto ii), se se pudesse concluir estarmos perante um contrato especificamente a respeito do qual existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo.
Vejamos.
“(...) O serviço de fornecimento de água é qualificado como um serviço público essencial (art. 1°, n° 2, alínea a), da Lei n° 23/96 de Julho), cabendo ao Decreto-Lei n° 194/2009, de 20 de Agosto, explicitar o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos.
Segundo o seu art° 3° “A exploração e gestão dos sistemas municipais (...) consubstanciam serviços de interesse geral e visam a prossecução do interesse público, estando sujeitas a obrigações específicas de serviço público”’.
A gestão dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, é uma atribuição dos municípios e pode ser por eles prosseguida isoladamente ou através de associações de municípios ou de áreas metropolitanas, mediante sistemas intermunicipais (artigo 6°, n° 1, do Decreto-Lei n° 194/2009).
A gestão daqueles serviços pode ser efectuada de acordo com um dos seguintes modelos de gestão (art. 7°, n°1):
a) Prestação directa do serviço;
b) Delegação do serviço em empresa constituída em parceria com o Estado;
c) Delegação do serviço em empresa do sector empresarial local;
d) Concessão do serviço.
Segundo o corpo do preceito, a entidade gestora dos serviços municipais é definida pela entidade titular, segundo o regime estabelecido no art. 6° do mesmo diploma, conforme a opção por cada um dos modelos mencionados.
No modelo de gestão directa o serviço pode ser prestado através de serviços municipais, de serviços intermunicipais, de serviços municipalizados ou de serviços intermunicipalizados (art° 14º, n°1).
No modelo de gestão em parceria podem ser estabelecidas parcerias entre o Estado e os municípios, as associações de municípios ou as áreas metropolitanas com vista à exploração e gestão de sistemas municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos (art° 16°, n° 1).
No modelo de delegação do serviço em empresa do sector empresarial local o serviço é prestado por empresa municipal delegatária constituída nos termos previstos no regime jurídico do sector empresarial local, aprovado pela Lei n.° 53-F/2006 (O novo regime consta da Lei n 50/2012, de 3 de Agosto. ), de 29 de Dezembro (art°s 17° e 18°).
No modelo de gestão concessionada a concessão dos serviços municipais, a realizar de acordo com este diploma e, subsidiariamente, com o Código dos Contratos Públicos, inclui a operação, a manutenção e a conservação do sistema, previstas no n.° 1 do artigo 2.°, e pode incluir ainda a construção, a renovação e a substituição de infra-estruturas, instalações e equipamentos (art°s 31° e 32°).
Em suma, de acordo com a nossa legislação, a responsabilidade por assegurar a provisão dos serviços de águas é de natureza pública, constituindo atribuição dos Municípios ou do Estado (cfr. Lei n° 159/99, de 14 de Setembro, Decreto-Lei n° 379/93, de 5 de Novembro e Decreto-Lei n° 194/2009), mas pode ser prestado por privados, com base num contrato de concessão.
Neste último caso, ninguém discute a natureza administrativa do contrato que liga a entidade titular ao concessionário, contrato de concessão de serviço público, mas não é deste contrato que estamos a tratar.
Com efeito, uma coisa é o título (contrato) que liga o prestador do serviço à entidade titular e que varia em conformidade, como vimos, com o modelo de gestão escolhido, outra bem diferente são os contratos celebrados entre o prestador do serviço e os utilizadores/consumidores finais. Em relação a estes contratos, não subsistem razões para assumirem natureza diferente, entre o mais, por se tratar de contratos tipo, de massa, ou seja, contratos de consumo, como será melhor analisado de seguida.
Senão vejamos.
Dada a importância que reveste o serviço de fornecimento de água, o legislador procedeu à sua classificação entre os serviços públicos essenciais [cfr. o art. 1, n° 2, alínea a), da Lei n° 23/96, de 26 de Julho], encontrando-se por isso sujeito a um regime jurídico especial destinado a proteger os utilizadores finais e que consta fundamentalmente, em geral, daquela Lei e, em particular, do Decreto-Lei n° 194/2009. Tendo presente a disciplina dos mencionados diplomas, importa determinar qual a natureza jurídica das relações que se estabelecem entre as entidades prestadoras do serviço e os utentes, ou seja, qual a natureza do contrato de fornecimento do serviço que os utilizadores/utentes têm de estabelecer com a entidade gestora qualquer que seja o modelo de gestão.
Como ficou dito, a Lei n° 23/96 criou mecanismos destinados proteger o utente de serviços públicos essenciais, que se caracterizam por estabelecer uma disciplina regulatória assente em garantir, designadamente: i) O direito de participação das organizações representativas dos utentes (art. 2°); ii) O dever de informação recaindo sobre o prestador o dever de informar, de forma clara e conveniente, a outra parte das condições em que o serviço é fornecido e a prestar-lhe todos os esclarecimentos que se justifiquem (art. 4°); iii) As regras sobre a suspensão do serviço, estatuindo-se, designadamente que o mesmo não pode ser suspenso sem pré-aviso adequado (art. 5°); A sujeição da prestação do serviço a padrões de qualidade (art. 7°); iv) A proibição da imposição e cobrança de consumos mínimos (art. 8°, n°1); vi) A proibição designadamente da cobrança de qualquer importância a título de preço, aluguer, amortização ou inspecção periódica de contadores ou outros instrumentos de medição dos serviços utilizados [art. 8°, n° 2, alínea a)]; vii) As regras sobre facturação (art. 9°); viii) As regras sobre prescrição e caducidade (art. 10°); ix) As regras sobre resolução de litígios (art. 15°); etc.
As regras apontadas regem a prestação de todos os serviços essenciais referidos no n° 2 do art. 1°, compreendendo, além do serviço de fornecimento de água: o serviço de fornecimento de energia eléctrica; o serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados; o serviço de comunicações electrónicas; os serviços postais; serviço de recolha e tratamento de águas residuais; e o serviço de gestão de resíduos sólidos urbanos.
Por outro lado, aquele regime aplica-se a todos os serviços públicos qualificados como essenciais.
O Decreto-Lei n° 194/2009 veio, por sua vez, definir o regime comum, uniforme e harmonizado aplicável a todos os serviços municipais de abastecimento público de água, independentemente do modelo de gestão adoptado.
No preâmbulo do mencionado decreto-lei pode ler-se, entre o mais, que visa “(...) assegurar uma correcta protecção e informação do utilizador destes serviços, evitando possíveis abusos decorrentes dos direitos de exclusivo, por um lado, no que se refere à garantia e ao controlo da qualidade dos serviços públicos prestados e, por outro, no que respeita à supervisão e controlo dos preços praticados, que se revela essencial por se estar perante situações de monopólio.”
No que se refere à relação com os utilizadores, rege o Capítulo VII, art. 59° ss., cuja regulação concretiza e complementa, de alguma forma, para os utentes destes serviços, os direitos e obrigações estabelecidos em geral na Lei n° 23/96.
Assim, de forma sumária, referenciamos as regras sobre: O direito à prestação do serviço (art. 59°); O direito à continuidade do serviço (art° 60°); O direito à informação art. 61°); A exigência de um regulamento de serviço (art. 62°); A contratualização dos serviços, os chamados contratos de fornecimento e de recolha (art. 63°); Quanto à denúncia dos contratos (art. 64°); Sobre os instrumentos de mediação (art. 66°); A facturação e sua periodicidade (art. 67°); Sobre as reclamações dos utentes; etc.
O acabado de expôr mostra, como refere PEDRO GONÇALVES (Cfr. p. 3 do Parecer junto ao Processo de Conflitos n°45/13. ), que os contratos de fornecimento de água são contratos densamente regulados. No entanto, como observa o mesmo Autor “(...) está longe de se poder considerar a regulação que atinge esse contrato uma regulação baseada em normas de direito público. Com efeito, o valor que inspira uma tal regulação é, claramente, a protecção do consumidor no contexto de uma relação de consumo de um serviço público essencial. Não se trata, pois, de normas dirigidas à regulação da Administração Pública ou da actividade administrativa, mas sim à regulação de uma relação de consumo. Estamos perante um contrato regulado sim, mas no âmbito do direito privado (do consumo)” (A resposta será diferente no caso das relações entre o Estado e os Municípios (“abastecimento em alta”), no âmbito dos denominados sistemas multimunicipais. ).
No mesmo sentido, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ( Cfr. “Serviços Públicos. Contratos Privados”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, volume II, Almedina, Coimbra, 2002, pp 122/123), referindo-se à natureza contratual da relação entre utentes e prestadores de serviços públicos essenciais, pondera, porém, que não se trata de contratos administrativos, desde logo, porque a Lei n° 23/96 “eliminou todos os vestígios de poderes autoritários do fornecedor, substituindo-os por regras de protecção do utente”.
Ainda segundo o Autor, “(...) a natureza administrativa dos contratos não seria compatível com o princípio da neutralidade, que, admitindo embora a natureza pública de alguns fornecedores, não pode conviver com certos princípios da actividade administrativa, (...). Se alguns contratos de prestação de serviços públicos não podem deixar de ter natureza privada, o princípio da neutralidade impõe que a natureza privada do contrato não seja afectada pela natureza pública da entidade prestadora”.
Na verdade, o regime da Lei n° 23/96 considera prestador dos serviços toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços aí mencionados independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão (cfr. art. 1°, n° 4).
Por outro lado, não faria sentido dizer que o abastecimento de água ao domicílio se rege pelo direito público quando a lei o qualifica e regula como serviço público essencial a par dos serviços de electricidade, gás e telecomunicações, relativamente aos quais não restam dúvidas que se regem pelo direito privado.
No mesmo sentido, podemos entender o regime do Decreto-Lei n° 194/2009, na medida em que apesar de disciplinar em capítulos distintos cada um dos modelos de gestão destes serviços (capítulo III a VI) define regras relativas ao relacionamento com os utilizadores que são aplicáveis independentemente do modelo de gestão adoptado em cada serviço (cfr. o capítulo VII). A partir daqui não subsiste fundamento para se concluir pela natureza pública dos contratos de fornecimento de água ao domicílio e muito menos para qualificar de natureza diferente este tipo de contratos consoante a natureza jurídica do prestador do serviço.
Em síntese, como refere CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “(...) todas as entidades prestadoras dos serviços públicos regulados pela Lei n° 23/96 são fornecedores para o efeito de tais serviços serem considerados de consumo (Sobre a natureza civil do núcleo substancial do Direito civil, cfr. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Da Natureza Civil do Direito do Consumo”, Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, volume I, Almedina, Coimbra, 2005, p. 705.) quando o utente deles faça uso não profissional”, concluindo que “os contratos de fornecimento a consumidores de serviços públicos essenciais são contratos de consumo”.
Nesta sequência, a primeira conclusão a extrair vai no sentido de que o contrato de fornecimento de água ao domicílio que liga o prestador do serviço e o consumidor/utilizador final “não é atingido por uma regulação de direito público”, valendo esta asserção quer o serviço seja fornecido directamente pelo município, através de um serviço municipal ou municipalizado, quer seja fornecido indirectamente através da criação de uma empresa municipal ou da celebração de um contrato de concessão de serviço público com um particular (Neste sentido, cfr. PEDRO GONÇALVES, no Parecer citado, p. 4.).
Aplicando o exposto ao caso em análise, restringindo-se o litígio em causa à cobrança de um crédito por água fornecida e não paga à empresa concessionária do serviço municipal, temos de lhe dar razão à Autora quando lançou mão de acção a tramitar nos tribunais comuns.

2. A resposta poderia ser diferente se a configuração da causa assim o permitisse.
Com efeito, a competência em razão da matéria poderá passar para o âmbito dos tribunais tributários se o objecto do litígio se centrar ou pelo menos envolver a discussão da legalidade do “preço” ou das “tarifas”.
Com efeito, sobre a natureza dos “preços” ou das “tarifas” JOSÉ CASALTA NABAIS (Direito Fiscal, 7ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p.55.) conclui o seguinte:
“Como verdadeiras tarifas (...) se configuravam as exigidas pelos municípios, previstas no art. 20º da anterior LFL, sob a epígrafe “tarifas e preços” a cobrar, designadamente, pelas actividades de exploração dos sistemas públicos de distribuição de água, de drenagem de águas residuais, de recolha, depósito e tratamento de resíduos sólidos, de transportes colectivos de pessoas e mercadorias, de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão (embora presentemente se encontre concessionada à EDP), etc. Com efeito, tais tarifas, que na actual LFL (do mesmo modo que na actual LFRA) se passaram a designar, por “preços” e “mais instrumentos de remuneração” dos municípios para além de não terem de ser estabelecidas pela assembleia municipal, como as taxas, podendo ser fixadas pela câmara municipal, não devem ser inferiores aos custos directa e indirectamente suportados com a prestação dos serviços e com o fornecimento dos bens (art. 16° da LFL)”.
Na procura de uma fronteira entre as taxas e os preços, no âmbito da moderna administração-prestadora, SÉRGIO VASQLEZ (Cfr. Manuel de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 208-210.), embora defendendo a necessidade de recurso a critérios materiais complementares (regime económico e indispensabilidade da prestação) o critério tradicional e principal de distinção é o formal assente “na noção de que os tributos públicos consubstanciam obrigações ex lege ao passo que os preços consubstanciam obrigações ex voIuntate”. Dito por outras palavras, o que caracteriza os preços é o facto de as obrigações se gerarem por acordo das partes, através de um mecanismo de tipo negocial, o que não se passa com a fixação dos preços cobrados pelo fornecimento de água ao domicílio, que cabe aos Municípios (câmaras municipais (Também segundo o disposto no art. 33º, nº 1, alínea e) da Lei das Autarquias Locais, aprovada em anexo à Lei nº 75/2013, de 12 de Setembro, dispõe-se que compete à câmara municipal o seguinte: “Fixar os preços da prestação ao público pelos serviços municipais ou municipalizados prestados, sem prejuízo, quando for caso disso, das competências legais das entidades reguladoras.” )), sendo que, nos termos do disposto no art. 40°, n° 1, do Decreto-Lei n° 194/2009, do contrato de concessão consta obrigatoriamente o “tarifário a aplicar no primeiro exercício económico em que o concessionário inicie a exploração, bem como a subsequente trajectória tarifária nos termos do previsto no art. 43º”. Por sua vez, de entre os poderes do concedente consta o de ratificar a actualização anual das tarifas, nos termos do previsto no contrato de concessão” [cfr. o art. 45° alínea a), daquele diploma]. Assim sendo, se o consumidor/utente quiser discutir a legalidade das “tarifas” ou dos “preços” terá de socorrer-se, quer do disposto no art. 49° n° 1, alínea a), ponto i), do ETAF — que abrange os actos de liquidação de receitas fiscais estaduais, regionais ou locais e parafiscais …”, quer da alínea e), ponto i), quando se refere à declaração de ilegalidade de normas administrativas de âmbito regional ou local, emitidas em matéria fiscal (No sentido de que à expressão “questões fiscais” deve ser dado um sentido amplo, abrangendo as denominadas tarifas (cfr., entre outros, o Acórdão do STA de 17/6/1997, proc nº 40365). O mencionado acórdão tem anotação concordante do Prof. Doutor JOSÉ CASALTA NABAIS (cfr. “Tarifa e questões fiscais: competência dos tribunais tributários”. Cadernos de Justiça Administrativa, nº 6, Novembro/Dezembro, 1997, pp. 48 ss.).). Em nossa óptica, pretendendo-se discutir a ilegalidade dos “preços” ou tarifas em causa o meio mais adequado seria precisamente o pedido de declaração de ilegalidade do regulamento municipal, (Sobre os pressupostos da utilização deste meio processual. cfr. arts 72º ss. do CPTA.) que contém e regula as tarifas, ou o pedido de anulação da deliberação da câmara que o aprova.
No caso dos autos, tal como vem configurada a causa não é esta, repete-se, a questão a decidir.
Lisboa, 18 de Dezembro de 2013.
Maria Fernanda dos Santos Maçãs