Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
Processo: | 031/15 |
Data do Acordão: | 02/02/2016 |
Tribunal: | CONFLITOS |
Relator: | HELDER ROQUE |
Descritores: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO |
Sumário: | I - A competência é um pressuposto processual que se determina pelo modo como o autor configura o pedido e a respetiva causa de pedir, de que depende poder o Juiz proferir decisão sobre o mérito da causa, o que pressupõe uma relação direta, um nexo jurídico, entre a competência e a causa e o pedido, e que não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da ação, mas antes dos termos em que a mesma é proposta, seja quanto aos seus elementos objetivos, como acontece com a natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, seja quanto aos seus elementos subjetivos. II - O conceito de relação jurídica administrativa, a que importa atender para determinar a competência material do Tribunal, passou a ser erigido em operador nuclear de repartição de jurisprudência entre os tribunais administrativos e tribunais judiciais, devendo considerar-se relações jurídicas públicas aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público, legalmente, definido. III - São entidades adjudicantes, para efeitos do Código dos Contratos Públicos, quaisquer pessoas coletivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada, tenham sido criadas, especificamente, para satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial, entendendo-se como tal aquelas cuja atividade económica se não submeta à lógica do mercado e da livre concorrência, abrangendo, designadamente, contratações que contendam com a aquisição de serviços. IV - São contraentes públicos as entidades adjudicantes, nomeadamente, quando os contratos por si celebrados têm natureza administrativa pública, seja porque tal qualificação decorre da vontade das partes, seja porque foram submetidos a um regime substantivo de direito público, seja, finalmente, porque se trate de entidades que, independentemente da sua natureza, pública ou privada, celebrem contratos no exercício de funções, materialmente, administrativas. V - Ainda que as partes não tivessem, expressamente, atribuído ao contrato natureza administrativa, como aconteceu, a mesma adviria, igualmente, do facto de o contrato ter sido celebrado, no exercício de funções, materialmente, administrativas, por uma sociedade anónima de capitais, maioritariamente, públicos, integrada no sector empresarial regional, concessionária de um serviço público, com utilidade pública, com vista à realização de um interesse público, sendo as empresas públicas regionais equiparadas a entidades administrativas. VI - Encontrando-se o contrato cuja ilicitude da resolução pela ré a autora pretende ver reconhecida, submetido pelas partes a um regime substantivo de direito público, em que a ré é uma entidade pública ou, no mínimo, uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público, legalmente, definido, assumindo-se na posição contratual de contraente público, pertence aos tribunais da jurisdição administrativa a competência material para a apreciação de litígios dele emergentes, sem que as partes, por acordo, possam derrogar essa competência, resultante de norma imperativa definida pelo ordenamento jurídico. |
Nº Convencional: | JSTA00069544 |
Nº do Documento: | SAC20160202031 |
Data de Entrada: | 06/29/2015 |
Recorrente: | A... SA NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DOS AÇORES - INSTÂNCIA LOCAL CÍVEL DE PONTA DELGADA, JUIZ 3 E O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA |
Recorrido 1: | * |
Votação: | UNANIMIDADE |
Meio Processual: | CONFLITO |
Objecto: | NEGATIVO JURISDIÇÃO INST CIVEL PONTA DELGADA - TAF PONTA DELGADA. |
Decisão: | DECL COMPETENTE TAF PONTA DELGADA. |
Área Temática 1: | DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO. |
Legislação Nacional: | CPC13 ART95 N1 ART104 ART64. L 62/2013 DE 2013/08/26 ART40 N1. ETAF02 ART1 ART4 N1 F. CCP ART2 N1 B N2 A B ART3 N1 A B. CCIV66 ART294 ART286 ART405 N1. CONST76 ART211 N1 ART212 N3. DRR 34/81/A DE 07/18 ART1 ART2. DLR 7/2008/A DE 04/30. DLR 7/2011/A DE 03/22 ART3 A ART22. |
Jurisprudência Nacional: | AC TCF PROC010/03 DE 2004/03/04.; AC TCF PROC0508/94 DE 1994/07/14. |
Referência a Doutrina: | VIEIRA DE ANDRADE - A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 9ED PAG55-56. ESTEVES DE OLIVEIRA - CPTA VOLI PAG21. TEIXEIRA DE SOUSA - A NOVA COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS CIVIS PAG31-32. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CRP ANOTADA 3ED PAG814. MANUEL DE ANDRADE - NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL PAG74-75. ANSELMO DE CASTRO - LIÇÕES PC VOLII 1970 PAG379. CASTRO MENDES - DPC VOLI PAG557. |
Aditamento: | |
Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DE CONFLITOS (Relator: Helder Roque …): “A…………., SA”, com sede no Empreendimento ………., …………., n° ….., Edifício …., Piso …., Amadora, propôs a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra “B…………., SA”, com sede na Rua …………., …., Ponta Delgada, pedindo que, na sua procedência, seja reconhecida a ilicitude da resolução do contrato pela ré e, em consequência, esta seja condenada no pagamento à autora da quantia de €27237,47, correspondente ao lucro cessante do contrato de aquisição de consultadoria, no âmbito do regime “CELE - Comércio Europeu de Licenças de Emissão – A…………….”, ilicitamente, resolvido, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal aplicável aos créditos de que são titulares empresas comerciais, desde a data da citação e até integral pagamento, e a pagar-lhe a quantia de €332,34, a título de indemnização, em sede de responsabilidade contratual, e bem assim como a pagar-lhe a quantia de €3367,66, relativa aos honorários devidos pela prestação de serviços, no período compreendido entre 1 de julho de 2013 e 20 de agosto de 2013. Na contestação, a ré invoca a exceção da incompetência material do tribunal comum cível, porquanto, não obstante a previsão contratual de um pacto de aforamento, segundo o qual seria competente para a resolução de todos os litígios decorrentes do contrato o foro da comarca de Ponta Delgada, está-se perante uma questão de competência material, que não pode ser afastada, por vontade das partes, por se tratar de um contrato administrativo, celebrado no quadro do poder de autoridade da ré, que remete a competência material para a jurisdição administrativa. O Tribunal Judicial da Comarca dos Açores declarou incompetente, em razão da matéria, a Instância Local Cível de Ponta Delgada – Juiz 3 e, consequentemente, absolveu a ré da instância. Desta decisão, a autora interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a apelação e, em consequência, confirmou a sentença recorrida. Do acórdão da Relação de Lisboa, a autora interpôs agora recurso para este Tribunal de Conflitos, pedindo que, na sua procedência, o mesmo seja revogado e substituído por outro que fixe, definitivamente, a competência do Tribunal da Comarca dos Açores, Instância Local Cível de Ponta Delgada, para a resolução do litígio, objeto dos autos, deduzindo as seguintes conclusões, que se transcrevem, integralmente: 1ª – A competência para a resolução do presente litígio pertence aos tribunais judiciais, uma vez que não estamos perante uma relação jurídica administrativa. 2ª – O que caracteriza uma relação jurídica administrativa - critério definidor do âmbito da jurisdição administrativa nos termos dos artigos 212.º/3 da Constituição e 1.º/1 do ETAF - é o facto de pelo menos um dos seus sujeitos ser uma entidade pública ou uma entidade privada no exercício de poderes de autoridade para desenvolver o fim público, o que não se verifica nos presentes autos. 3ª – De acordo com o artigo 4.º/1/f) in fine do ETAF, compete aos tribunais administrativos a resolução de litígios que tenham por objecto questões relativas à execução de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública e tenha sido expressamente submetido a um regime substantivo de direito público. 4ª – A Recorrente e a Recorrida são ambas entidades privadas. A Recorrida é uma sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos, constituída nos termos da lei comercial e regida pelo direito privado, nos termos dos artigos 3.º e 9.º/1 do RSPERAA, pelo que é uma entidade privada. 5ª – O conceito de “entidade pública” utilizado na previsão do artigo 4.º/1/f) in fine do ETAF não corresponde aos conceitos do CCP de “entidade adjudicante” e “contraente público”. 6ª – O contrato celebrado pelas partes não constitui o exercício de um poder de autoridade da Recorrida, nem resulta do mesmo. É um mero contrato privado de prestação de serviços. 7ª – O contrato celebrado pelas partes é um contrato de direito privado, regulado pelo regime estabelecido ao abrigo da respectiva autonomia contratual, prevista no artigo 405.º do Código Civil, ainda que as partes tenham optado por uma remissão para a Parte III do CCP. 8ª – As entidades privadas, actuando fora do exercício de poderes de autoridade, não têm capacidade para se submeterem a um regime de direito público. 9ª – A competência absoluta dos tribunais é de conhecimento oficioso, não tendo as partes a capacidade de, por si só e por meio da vontade contratual, alterar as regras legais de competência absoluta, atribuindo aos tribunais administrativos o que é da competência dos tribunais comuns. 10ª – Deste modo, tendo o contrato sido celebrado por entidades privadas, fora do exercício de poderes de autoridade ou de uma função administrativa, o presente litígio não tem por objecto uma relação jurídica administrativa e não se encontra preenchida a previsão dos artigos 212.º/3 da Constituição, 1.º e 4.º/1/f) do ETAF, pelo que a competência para a sua resolução pertence aos tribunais judiciais (artigo 64.º do CPC). 11ª – Assim, o Douto Acórdão recorrido incorre em violação, entre outros, dos artigos 211º/1 e 212.º/3 da Constituição, 1.º e 4.º/1/f) do ETAF, 3.º/1/b) do CCP e 64.º do CPC. Nas suas contra-alegações, a ré conclui no sentido de que não deve ser dado provimento ao recurso, mantendo-se, assim, o acórdão recorrido, que fixou a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Com interesse para a questão decidenda, importa considerar o seguinte circunstancionalismo fáctico subjacente: 1. A ré é uma sociedade anónima de capitais sociais, maioritariamente, detidos pela Região Autónoma dos Açores, integrando o Setor Público Empresarial Regional, de acordo com o previsto no artigo 3.º, a), do DLR nº 7/2011/A, de 22 de março. 2. A ré tem por objeto social “a produção, a aquisição, o transporte, a distribuição e a venda de energia elétrica”. 3. Em 21 de janeiro de 2013, a autora e a ré celebraram um contrato de aquisição de serviços de consultadoria, no âmbito do regime “CELE - Comércio Europeu de Licenças de Emissão — A…………..”. 4. Para a resolução de todos os litígios decorrentes do contrato, aludido em 3., é competente o Tribunal da Comarca de Ponta Delgada, com expressa exclusão de qualquer outro — Cláusula Quinta do mesmo contrato, a propósito do «Foro competente». 5. Em tudo o omisso, aplicar-se-á a parte III, do Código dos Contratos Públicos, e, subsidiariamente, a demais legislação em vigor — Cláusula Sexta do mesmo contrato, a propósito da «Legislação aplicável». A Exª Procuradora-Geral Adjunta, no douto parecer que antecede, conclui no sentido de que os Tribunais Administrativos deverão ser julgados competentes para conhecer da acção. * Tudo visto e analisado, cumpre, finalmente, decidir, em conformidade com o Direito aplicável.1. Importa, desde já, começar por registar que as partes, a propósito do «Foro competente» para a resolução de todos os litígios decorrentes do contrato de aquisição de serviços de consultadoria, no âmbito do regime “CELE - Comércio Europeu de Licenças de Emissão — A…………..”, que celebraram, em 21 de janeiro de 2013, haviam clausulado a competência material do Tribunal da Comarca de Ponta Delgada, com expressa exclusão de qualquer outro. Porém, em tudo o que fosse, contratualmente, omisso, aplicar-se-ia a parte III, do Código dos Contratos Públicos, e, subsidiariamente, a demais legislação em vigor. O artigo 95º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil (CPC) [artigo 100º, n.º 1, do CPC/1961], dispõe que “as regras de competência em razão da matéria, da hierarquia e do valor da causa não podem ser afastadas por vontade das partes; mas é permitido a estas afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território, salvo nos casos a que se refere o artigo 104º”. 2. Para que o Tribunal possa decidir sobre a procedência ou o mérito de um pedido, é, desde logo, indispensável que a ação seja proposta perante o Tribunal competente para a sua apreciação, o que significa que a competência é um pressuposto processual que se determina pelo modo como o autor configura o pedido e a respetiva causa de pedir, que importa analisar antes de se conhecer do fundo da causa, e de que depende poder o Juiz proferir decisão de mérito sobre a mesma, condenando ou denegando a providência judiciária requerida pelo demandante (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, nova edição, revista e actualizada por Herculano Esteves, 1976, 74 e 75 Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, 379.) mas, também, que deve haver uma relação direta entre a competência e o pedido (Castro Mendes, Direito Processual Civil, I, 557.). Com efeito, os pressupostos processuais constituem as condições mínimas de que depende o exercício da função jurisdicional e, no caso da competência, visam assegurar a justiça da decisão, a garantia de que a mesma é dimanada do Tribunal mais idóneo (Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, 379 e 380.). Em consonância com o princípio da existência de um nexo jurídico direto entre a causa e o Tribunal, a competência afere-se pelo “quid disputatum” ou “quid decidendum”, em antítese com o que, mais tarde, será o “quid decisum”, isto é, a competência determina-se pelo pedido do autor, e tal não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da ação, mas antes dos termos em que a mesma é proposta, seja quanto aos seus elementos objetivos, como acontece com a natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, seja quanto aos seus elementos subjetivos (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, nova edição, revista e actualizada por Herculano Esteves, 1976, 91; STJ, de 21-2-01, Acórdãos Doutrinais do STA, 479º, 1539; STJ, de 9-2-99, BMJ nº 484, 292; STJ, de 9-5-95, CJ (STJ), Ano III, T2, 68.). 3. Por outro lado, a competência material dos tribunais civis é aferida, por critérios de atribuição positiva, segundo os quais pertencem à competência do tribunal civil todas as causas cujo objeto seja uma situação jurídica regulada pelo direito privado, nomeadamente, civil ou comercial, e por critérios de competência residual, nos termos dos quais se incluem na competência dos tribunais civis todas as causas que, apesar de não terem por objeto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são, legalmente, atribuídas a nenhum outro tribunal (Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, Lex, 1999, 31 e 32.). Por isso, os tribunais comuns ou judiciais são os tribunais com competência material genérica ou residual, a quem pertence o conhecimento das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, princípio este que se encontra plasmado, no texto dos artigos 64º, do CPC, e 40º, nº 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto), quando estabelecem, transpondo para a lei ordinária, o consagrado pelo artigo 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), segundo o qual “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. A Constituição da República Portuguesa distingue, quanto à competência de cada uma das categorias de tribunais, os tribunais judiciais, que “são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” [211º, nº 1], e os tribunais administrativos e fiscais, a quem compete “o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [212º, nº 3, da CRP]. O disposto no artigo 212º, nº 3, da CRP, encontra-se transposto para o artigo 1º e concretizado no artigo 4º, do ETAF, sendo, portanto, à luz daquela norma constitucional, que hão-de ser interpretados os correspondentes preceitos do ETAF e, também, da Lei da Organização do Sistema Judiciário. Da conjugação dos normativos legais acabados de citar, resulta que os tribunais administrativos e fiscais constituem a jurisdição ordinária da justiça administrativa, não apresentando a respetiva competência natureza excecional, em relação aos tribunais comuns (Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, 814.). 4. Preceitua ainda o artigo 1º, do ETAF, que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Por seu turno, o artigo 4º, nº 1, f), do mesmo diploma legal, dispõe que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos do respetivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;”. A isto acresce que são entidades adjudicantes, para efeitos do preceituado pelo artigo 2º, nº 2, a) e i), do Código dos Contratos Públicos (CCP), “quaisquer pessoas coletivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada, tenham sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial, entendendo-se como tal aquelas cuja atividade económica se não submeta à lógica do mercado e da livre concorrência;”. E, para efeitos da norma retro-mencionada, a ré é considerada uma entidade adjudicante, sempre que estejam em causa, designadamente, contratações que abrangem a aquisição de serviços, de acordo com o prescrito pelo artigo 6º, nº 2, do CCP. Por outro lado, são contraentes públicos as entidades adjudicantes, nomeadamente, quaisquer pessoas coletivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada, tenham sido criadas, especificamente, para satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial, entendendo-se como tal aquelas cuja atividade económica se não submeta à lógica do mercado e da livre concorrência, e sejam, maioritariamente, financiadas pelas entidades referidas no número anterior [As Regiões Autónomas], estejam sujeitas ao seu controlo de gestão ou tenham um órgão de administração, de direção ou de fiscalização cuja maioria dos titulares seja, direta ou indiretamente, designada por aquelas entidades, e bem assim como quaisquer pessoas coletivas que se encontrem na situação referida na alínea anterior, relativamente a uma entidade que seja, ela própria, uma entidade adjudicante, nos termos do disposto na mesma alínea, sendo, igualmente, contraentes públicos as entidades adjudicantes, acabadas de referir, sempre que os contratos por si celebrados sejam, por vontade das partes, qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público, nos termos do disposto pelos artigos 2º, nºs 1, b) e 2, a) e b) e 3º, nº1, a) e b), do CCP. Para além de entidade adjudicante, a ré é, portanto, igualmente, considerada contraente público, isto é, os contratos, por si celebrados, têm natureza administrativa pública, não só porque decorre da vontade das partes qualificá-los como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público, mas, outrossim, porque, tal como determina o artigo 3º, nº 2, do CCP, “são também contraentes públicos quaisquer entidades que, independentemente da sua natureza pública ou privada celebrem contratos no exercício de funções materialmente administrativas”. O regime substantivo dos contratos administrativos, a que se reporta a Parte III, do CCP, abrange os «contratos administrativos em especial», nomeadamente, a aquisição de serviços, como acontece com a aquisição de serviços de consultoria, no âmbito do regime “CELE – Comércio Europeu de Licenças de Emissão – A…………..”, que aqui interessa considerar. 5. A constituição da ré operou-se, através do Decreto Regulamentar Regional nº 34/81/A, de 18 de julho, que, no seu artigo 1º, nº 2, estabeleceu que “a B………., EP é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, que se rege pela lei aplicável às empresas públicas, pelo estatuto anexo a este diploma e que dele fica a fazer parte integrante e, subsidiariamente, pelas normas de direito privado”. Por seu turno, o artigo 35º, do DLR nº 15/1996/A, de 1 de agosto, procedeu “à atribuição direta da concessão do serviço público do transporte e distribuição da energia elétrica à então Empresa de Electricidade dos Açores”, pelo prazo de 50 anos, contados a partir da data da celebração do mencionado contrato, segundo decorre da Base II do mesmo diploma. Nos termos da cláusula 4ª nº 1, do contrato de concessão, esta “é exercida em regime de serviço público, sendo as suas atividades consideradas para todos os efeitos de utilidade pública...”. A ré é, assim, uma empresa concessionária de serviço público, com utilidade pública, sem embargo de ser hoje uma sociedade anónima, integrada no sector empresarial regional, por força do DLR nº 7/2008/A, de 30 de abril, e, de acordo com o artigo 22º, do DLR nº 7/2011/A, de 22 de março, “as empresas públicas regionais são equiparadas a entidades administrativas”. Deste modo, ainda que as partes não tivessem, expressamente, atribuído ao contrato natureza administrativa, como aconteceu, a mesma adviria, igualmente, do facto de o contrato ter sido celebrado, no exercício de funções, materialmente, administrativas, por uma sociedade anónima, de capitais, maioritariamente, públicos, concessionária de um serviço público, com vista à realização de um interesse público. 6. A Constituição da República não prevê, portanto, exceções à competência dos tribunais administrativos, no sentido de atribuir a outros tribunais o julgamento de questões de natureza administrativa (TC, Pº nº 508/94, de 14 de Julho, DR. 2.ª Série, de 13 de Dezembro de 1994, 12517 e ss.), pelo que a “jurisdição comum dos tribunais administrativos é a administrativa e (...) as causas jurídico-administrativas só saem da esfera dos tribunais administrativos se uma lei dispuser (validamente) em sentido contrário”(Mário Esteves de Oliveira e outros, Código de Processo dos Tribunais Administrativos, I, Almedina, Coimbra, 2004, 21.). Com efeito, “o conceito de relação jurídica administrativa passou, assim, a ser erigido em operador nuclear de repartição de jurisprudência entre os tribunais administrativos e tribunais judiciais”, sendo a esse conceito que importa atender para determinar a competência material do Tribunal (Acórdão do Tribunal de Conflitos de 04-03-2004, Pº n.º 010/03, www.dgsi.pt). Efetivamente, devem ser consideradas “relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”(José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 9ª edição, Almedina, 55 e 56.). 7. Aqui chegados, impõe-se analisar se a causa de pedir invocada na ação se acha ou não abrangida no conceito de relação jurídica administrativa, reservado pela Lei Fundamental à jurisdição administrativa, para o que importa perspetivar os termos em que a ação foi posta, seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes), seja quanto aos seus elementos objetivos (maxime, a natureza da medida solicitada ou do direito para a qual se pretende a tutela judiciária), mas sem que a construção subalternize o quadro normativo em que a solução da questão se encontra. A autora pede, na presente ação, o reconhecimento da ilicitude da resolução do contrato, operada pela ré, em consequência da qual esta seja condenada no pagamento da quantia de €27237,47, correspondente ao lucro cessante do contrato de aquisição de consultadoria. Com efeito, a autora é uma sociedade anónima que se dedica às actividades de investigação e consultoria, enquanto que a ré, que tem por objecto social “a produção, a aquisição, o transporte, a distribuição e a venda de energia elétrica”, é uma sociedade anónima de capital social detido, maioritariamente, pela Região Autónoma dos Açores, integrando o Setor Público Empresarial Regional, de acordo com o previsto no artigo 3º, a), do DLR nº 7/2011/A, de 22 de Março. Por outro lado, são contraentes públicos as entidades adjudicantes, nomeadamente, quaisquer pessoas coletivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada, tenham sido criadas, especificamente, para satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial, entendendo-se como tal aquelas cuja atividade económica se não submeta à lógica do mercado e da livre concorrência, e sempre que os contratos, por si celebrados, sejam, por vontade das partes, qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público, nos termos do disposto pelos artigos 2º, nºs 1, b) e 2, a) e b) e 3º, nº 1, a) e b), do CCP. Tendo ainda a autora e a ré, em tudo o que fosse, contratualmente, omisso, convencionado a aplicação da parte III, do CCP, submetendo o presente contrato a um regime substantivo de direito público, sendo, consequentemente, de sua vontade atribuir-lhe natureza administrativa. Deste modo, encontrando-se o contrato submetido a um regime substantivo de direito público, cabe aos tribunais administrativos decidir os litígios daí emergentes, atento o disposto pelos artigos 4º, nº 1, f), do ETAF, 2º, nºs 1, b) e 2, a) e b) e 3º, nº 1, a) e b), do CCP. E, sendo certo que a ré é uma sociedade anónima de direito privado, embora de capital social detido pela Região Autónoma dos Açores, maioritariamente, público, integrando o Setor Público Empresarial Regional, o contrato encontra-se submetido a um regime substantivo de direito público, assumindo-se aquela na posição de contraente público, com a consequente competência material dos tribunais administrativos, como decorre do estipulado pelo artigo 4º, nº 1, f), do ETAF, que se traduz numa norma imperativa que as partes não podiam derrogar por acordo. Assim sendo, encontrando-se o contrato cuja ilicitude da resolução pela ré a autora pretende ver reconhecida, sujeito a normas de direito público que regulam aspetos do respetivo regime substantivo, em que uma das partes, ou seja, a ré é uma entidade pública ou, no mínimo, uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público, legalmente, definido, assumindo-se aquela na posição contratual de contraente público, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação dos litígios correspondentes, sem que as partes, por acordo, possam afastar essa competência. A cláusula de convenção de foro que, apenas, pode incidir sobre a competência em razão do território, e, mesmo assim, ainda com a ressalva dos casos de conhecimento oficioso, já não pode ser reconhecida, por irrelevante, desde que extravase os limites da autonomia contratual, consagrada pelo artigo 405º, nº 1, sendo, então, nula, quando se encontre em oposição com o ordenamento jurídico, atento o preceituado pelos artigos 294º e 286º, todos do Código Civil. CONCLUSÕES: I - A competência é um pressuposto processual que se determina pelo modo como o autor configura o pedido e a respetiva causa de pedir, de que depende poder o Juiz proferir decisão sobre o mérito da causa, o que pressupõe uma relação direta, um nexo jurídico, entre a competência e a causa e o pedido, e que não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da ação, mas antes dos termos em que a mesma é proposta, seja quanto aos seus elementos objetivos, como acontece com a natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, seja quanto aos seus elementos subjetivos. II - O conceito de relação jurídica administrativa, a que importa atender para determinar a competência material do Tribunal, passou a ser erigido em operador nuclear de repartição de jurisprudência entre os tribunais administrativos e tribunais judiciais, devendo considerar-se relações jurídicas públicas aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público, legalmente, definido. III - São entidades adjudicantes, para efeitos do Código dos Contratos Públicos, quaisquer pessoas coletivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada, tenham sido criadas, especificamente, para satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial, entendendo-se como tal aquelas cuja atividade económica se não submeta à lógica do mercado e da livre concorrência, abrangendo, designadamente, contratações que contendam com a aquisição de serviços. IV- São contraentes públicos as entidades adjudicantes, nomeadamente, quando os contratos por si celebrados têm natureza administrativa pública, seja porque tal qualificação decorre da vontade das partes, seja porque foram submetidos a um regime substantivo de direito público, seja, finalmente, porque se trate de entidades que, independentemente da sua natureza, pública ou privada, celebrem contratos no exercício de funções, materialmente, administrativas. V - Ainda que as partes não tivessem, expressamente, atribuído ao contrato natureza administrativa, como aconteceu, a mesma adviria, igualmente, do facto de o contrato ter sido celebrado, no exercício de funções, materialmente, administrativas, por uma sociedade anónima de capitais, maioritariamente, públicos, integrada no sector empresarial regional, concessionária de um serviço público, com utilidade pública, com vista à realização de um interesse público, sendo as empresas públicas regionais equiparadas a entidades administrativas. VI - Encontrando-se o contrato cuja ilicitude da resolução pela ré a autora pretende ver reconhecida, submetido pelas partes a um regime substantivo de direito público, em que a ré é uma entidade pública ou, no mínimo, uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público, legalmente, definido, assumindo-se na posição contratual de contraente público, pertence aos tribunais da jurisdição administrativa a competência material para a apreciação de litígios dele emergentes, sem que as partes, por acordo, possam derrogar essa competência, resultante de norma imperativa definida pelo ordenamento jurídico. DECISÃO (Relator: Helder Roque ….): Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem este Tribunal de Conflitos, resolvendo o presente conflito negativo de jurisdição, em declarar competente para conhecer do mérito da presente ação a jurisdição administrativa, concretamente, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada. * Sem custas – artigo 96º, do Decreto nº 19243, de 16 de Janeiro de 1931. * Notifique. Lisboa, 2 de Fevereiro de 2016. – Helder João Martins Nogueira Roque(relator) – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Fernando Manuel Pinto de Almeida – Alberto Augusto Andrade de Oliveira. |