Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:04/20
Data do Acordão:05/19/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDICÃO
CONTRATAÇÃO PÚBLICA
AQUISIÇÃO DE SERVIÇOS
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário:Incumbe aos tribunais administrativos o julgamento de uma acção em que está em causa um contrato para aquisição de serviços celebrado por uma das entidades referidas no art. 2º do CCP - a Universidade de Coimbra -, que está sujeita ao regime da contratação pública.
Nº Convencional:JSTA000P27739
Nº do Documento:SAC2021051904
Data de Entrada:02/12/2020
Recorrente:REQUERENTE: AEMITEQ – ASSOCIAÇÃO PARA A INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E QUALIDADE, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA – JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE COIMBRA, UO 1
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A…………– Associação para a Inovação Tecnológica e Qualidade, identificada nos autos, requereu no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Central Cível de Coimbra, uma injunção contra a Universidade de Coimbra invocando que no exercício legal da sua actividade lhe prestou bens e serviços, a seu pedido, e esta recebeu, cujo preço não foi pago, pedindo a sua notificação para pagamento do montante de 46.750,68€ acrescido de juros de mora no valor de 1.990,42€ e despesas de cobrança no montante de 5.995,15€.
A Universidade de Coimbra deduziu oposição em que, além do mais, arguiu a incompetência material do Tribunal.
Respondeu a A. defendendo a competência material do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra.
Em 14.05.2019 no Juízo Central Cível de Coimbra, Juiz 2, foi proferida decisão a declarar a sua incompetência material para apreciar e julgar o litígio (fls. 27 a 29).
Sustentando-se no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 31.01.2017, Proc. 023/16, considerou que: «(…) o regime da contratação pública estabelecido na parte II do Código é aplicável à formação dos contratos públicos, entendendo-se por tal todos aqueles que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código, sendo que precisamente uma das entidades adjudicantes ali referidas – cf. nº 2 – são: “a) Os organismos de direito público, considerando-se como tais quaisquer pessoas colectivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada: i) Tenham sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, entendendo-se como tais aquelas cuja actividade económica se não submeta à lógica concorrencial de mercado, designadamente por não terem fins lucrativos ou por não assumirem os prejuízos resultantes da sua actividade». E acrescentou serem “contratos públicos todos os que foram celebrados pela Universidade de Coimbra que não se mostrem expressamente excluídos nos arts. 4º e 5º do Código, entre os quais não se conta o contrato de aquisição de serviços prestados em termos concorrenciais pelos agentes particulares”.
Concluiu que a presente acção está incluída no âmbito de previsão da al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, sendo, portanto, da competência dos tribunais administrativos.
O processo foi remetido ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (TAF de Coimbra) e aí, depois de junta nova petição inicial aperfeiçoada e ouvidas as partes sobre a eventual incompetência material do Tribunal, foi proferido o Despacho Saneador em 04.12.2019 (fls. 69 a 75) que declarou a incompetência para apreciar o litígio.
Para tanto, o TAF de Coimbra considerou que: “no caso concreto, resulta a inexistência de procedimento prévio de formação do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Autora e Entidade Demandada, pelo que o mero facto de a Entidade Demandada ser uma pessoa colectiva de direito público não implica automaticamente a competência dos tribunais administrativos para conhecimento do litígio dele emergente”, e acrescentou, “na verdade, o contrato em análise nos presentes autos não obedeceu a normas de direito público, não tendo sido precedido de procedimento de contratação pública nos termos e para os efeitos da alínea e) do nº 1 do art. 4º do ETAF”.
Assim, concluiu que: “a relação jurídica estabelecida entre as partes não se encontra submetida a um regime substantivo de direito administrativo, mas antes corresponde a um contrato de índole privada em que a autora se obrigou a prestar serviços traduzidos na realização de análises de água e a Entidade Demandada se obrigou a proceder ao respectivo pagamento”.
A Senhora Juíza do TAF de Coimbra suscitou a resolução do conflito negativo de jurisdição (fls. 90).
Remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos, as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019, e nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da competência material do TAF de Coimbra para apreciar e julgar o presente litígio.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre Tribunal da Comarca de Coimbra – Juízo Central Cível de Coimbra, Juiz 2 e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (arts 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, n.º1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 - LOSJ), e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (arts. 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19/2), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Para o presente caso importa ter em atenção o artigo 4º, nº 1, e) do ETAF que dispõe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.
Como salienta Carlos Carvalho, in Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, 2ª ed., 2016, pag. 167 e 168 “Em matéria de contencioso dos contratos a delimitação da competência dos tribunais administrativos passou a constar duma única alínea, a atual al. e), suprimindo-se, assim, aquilo que era o regime que se desenvolvia ao longo das als. b), e) e f) do art. 04.º do ETAF/04.
No quadro desta alínea e para efeito da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos faz-se apelo não apenas do critério contrato administrativo mas também, ainda, dum outro critério que é o da submissão do contrato às regras da contratação pública.
Através do novo teor dado à referida alínea produziu-se um claro alargamento da jurisdição administrativa mediante a sujeição da generalidade dos contratos da Administração Pública à jurisdição administrativa, porquanto ao remeter para a “legislação sobre contratação pública” fez-se apelo àquilo que se mostra disciplinado pelo Código dos Contratos Públicos. Ora este ao regular os procedimentos pré-contratuais abarca também os contratos de direito privado celebrados pela Administração e, bem assim, alguns dos contratos outorgados entre privados que sejam entidades adjudicantes.
Daí que basta que o contrato esteja submetido a regras procedimentais de formação de direito administrativo para que os litígios passem a estar sob a alçada dos tribunais administrativos e isso independentemente do facto do contrato à luz do CCP se qualificar ou não como contrato administrativo.”
O Código dos Contratos Públicos (CCP) aprovado pela Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro estatui no art. 1º:
1 - O presente Código estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo.
2 - O regime da contratação pública estabelecido na parte ii é aplicável à formação dos contratos públicos que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código e não sejam excluídos do seu âmbito de aplicação.
(…)”.
E no seu art. 2º o CCP diz quais são as entidades adjudicantes:
1 - São entidades adjudicantes:
a) O Estado;
b) As Regiões Autónomas;
c) As autarquias locais;
d) Os institutos públicos;
e) As entidades administrativas independentes;
f) O Banco de Portugal;
g) As fundações públicas;
h) As associações públicas;
i) As associações de que façam parte uma ou várias das pessoas coletivas referidas nas alíneas anteriores, desde que sejam maioritariamente financiadas por estas, estejam sujeitas ao seu controlo de gestão ou tenham um órgão de administração, de direção ou de fiscalização cuja maioria dos titulares seja, direta ou indiretamente, designada pelas mesmas.
2 - São também entidades adjudicantes:
a) Os organismos de direito público, considerando-se como tais quaisquer pessoas coletivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada:
i) Tenham sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial, entendendo-se como tais aquelas cuja atividade económica se não submeta à lógica concorrencial de mercado, designadamente por não terem fins lucrativos ou por não assumirem os prejuízos resultantes da sua atividade; e
ii) Sejam maioritariamente financiadas por entidades referidas no número anterior ou por outros organismos de direito público, ou a sua gestão esteja sujeita a controlo por parte dessas entidades, ou tenham órgãos de administração, direção ou fiscalização cujos membros tenham, em mais de metade do seu número, sido designados por essas entidades;
(…)”.
A Universidade de Coimbra é uma pessoa colectiva de direito público como se afirma no art. 1º dos Estatutos da Universidade de Coimbra homologados pelo Despacho Normativo nº 43/2008, de 1 de Setembro e republicados no DR, 2ª Série, de 19 de Março de 2019 e é confirmado na Lei nº 62/2007, de 10 de Setembro, que estabelece o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior.
No seu art. 9º estabelece-se que: “1 - As instituições de ensino superior públicas são pessoas colectivas de direito público, podendo, porém, revestir também a forma de fundações públicas com regime de direito privado, nos termos previstos no capítulo vi do título iii.” e “2 - Em tudo o que não contrariar a presente lei e demais leis especiais, e ressalvado o disposto no capítulo vi do título iii, as instituições de ensino superior públicas estão sujeitas ao regime aplicável às demais pessoas colectivas de direito público de natureza administrativa, designadamente à lei quadro dos institutos públicos, que vale como direito subsidiário naquilo que não for incompatível com as disposições da presente lei.
Tendo ainda presente que, nos termos do Anexo III (LISTA DOS ORGANISMOS E DAS CATEGORIAS DE ORGANISMOS DE DIREITO PÚBLICO A QUE SE REFERE O SEGUNDO PARÁGRAFO DO N.º 9 DO ARTIGO 1.º) da Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, em Portugal os organismos de direito público são “institutos públicos sem carácter comercial ou industrial, serviços públicos personalizados, fundações públicas e estabelecimentos públicos de ensino, investigação científica e saúde”, é forçoso concluir que a Universidade de Coimbra é uma entidade adjudicante para efeitos do CCP.
Por outro lado, o contrato em causa nos autos não se mostra excluído nos termos dos arts. 4º e 5º pelo que para a sua formação é aplicável o regime de contratação pública estabelecido na parte II do CCP, que prevê no art. 16º: “1 - Para a formação de contratos cujo objeto abranja prestações que estão ou sejam suscetíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, as entidades adjudicantes devem adotar um dos seguintes tipos de procedimentos:
a) Ajuste direto;
b) Consulta prévia;
c) Concurso público;
d) Concurso limitado por prévia qualificação;
e) Procedimento de negociação;
f) Diálogo concorrencial;
g) Parceria para a inovação.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, consideram-se submetidas à concorrência de mercado, designadamente, as prestações típicas abrangidas pelo objeto dos seguintes contratos, independentemente da sua designação ou natureza:
(…)
e) Aquisição de serviços;
(…)”.
Resulta assim que o contrato para aquisição de serviços celebrado por uma das entidades referidas no art. 2º do CCP - a Universidade de Coimbra -, está sujeito ao regime da contratação pública.
Deste modo, e tal como se decidiu no acórdão deste Tribunal de 11.01.2017, Proc. 020/16, “(…) para julgar o presente processo é competente a jurisdição administrativa, sendo irrelevante para a determinação da competência a natureza privada ou administrativa do contrato. Na verdade, como decorre do art. 4º, 1, al. e) do ETAF, o elemento determinante da competência não é a natureza jurídica da relação jurídica de onde emerge o litígio, mas sim a sujeição do mesmo ou a possibilidade da sua sujeição a um regime pré-contratual de direito público, o que quer dizer que a jurisdição administrativa é competente quer a relação jurídica subjacente seja, ou não, uma relação jurídico-administrativa” (cfr. ainda acórdão de 31.01.2017, Proc. 23/16).

Pelo exposto, acordam em julgar materialmente competente para apreciar a presente acção a jurisdição administrativa [Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra].
Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, a relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STJ, Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza tem voto de conformidade.

Lisboa, 19 de Maio de 2021

Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa