Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:03205/22.0T8MAI.P1.S1
Data do Acordão:01/31/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - Os cemitérios públicos integram o domínio público das autarquias que os possuem e administram.
II - A implantação de construções (sepulturas e jazigos) nesses terrenos, cujo uso privativo tenha sido concedido a particulares, mediante o correspondente alvará, cria uma sobreposição de direitos reais de diferente natureza: privada, quanto à construção, pública, quanto ao direito decorrente da concessão de uso privativo, cujos termos são definidos pelo alvará.
III - Sendo controversa a titularidade do conjunto, pode naturalmente ser necessário ajuizar da validade do alvará, ou das condições e termos em que foi concedido o uso privativo da parcela de terreno que estiver em causa, uso esse que é pressuposto necessário da constituição do direito de propriedade sobre as construções nela edificadas.
IV - A controvérsia pode incidir sobre a modalidade de aquisição do conjunto, que será então a questão central da acção.
V - Em qualquer dos casos, a competência do tribunal a quem caiba julgar a acção pode vir a ser estendida à apreciação de questões incidentais que, isoladamente consideradas, não lhe competiria conhecer.
VI - A autora desta acção pede que lhe seja reconhecida “a titularidade da concessão perpétua do direito real administrativo de uso privativo do jazigo” e que a ré seja condenada a reconhecê-lo e a abster-se de perturbar o seu exercício, bem como a devolver as chaves necessárias ao acesso às urnas; e invoca como causa de pedir, simultaneamente, o alvará de concessão e as regras da sucessão legal.
VII - O principal efeito prático-jurídico pretendido pela autora desta acção – que se desenrola entre particulares – é a possibilidade de acesso ao jazigo, sem que a ré o perturbe ou impeça.
VIII - Assim interpretados os termos da acção, não pode concluir-se que se possa fundar a competência dos tribunais administrativos em qualquer das alíneas do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; aliás, sempre seria condição de atribuição de competência à jurisdição administrativa que o litígio se desenrolasse no âmbito de uma relação administrativa, o que não é o caso.
IX - A apreciação da presente acção cabe aos tribunais judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P30585
Nº do Documento:SAC2023013103205
Recorrente:HERANÇA JACENTE DE AA
Recorrido 1:DD
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 26 de Outubro de 2017, Herança Jacente de AA, representada pela cabeça-de-casal BB, por sua vez representada voluntariamente por CC, instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto uma acção administrativa contra DD, formulando os seguintes pedidos:
Que seja “declarada e reconhecida à Autora a titularidade da concessão perpétua do direito real administrativo de uso privativo do jazigo localizado na Secção ..., sepultura n.º ..., com 3,00 metros de comprimento por 2,60 metros de largura, a confrontar a norte com o jazigo n.º ... do sector "...", a sul com o jazigo n.º ... do Sector, a nascente com propriedade privada e a poente com rua ... da Freguesia ..., ..., devidamente descrito no artigo 1.º da presente peça processual.
Mais se requer a V. Exa que a Ré seja condenada a reconhecer o direito da Autora à concessão perpétua do direito real administrativo de uso privativo do jazigo identificado no parágrafo anterior e, consequentemente, ser a mesma condenada a abster-se da prática de qualquer acto que atente com aquele direito de concessão e a devolver à Autora quaisquer chaves que detenha que permitam o acesso às urnas.
Invocou, como causa de pedir, a aquisição por sucessão, até à concessão a EE, “pela Junta de Freguesia ...”, em ... de Fevereiro de 1873, do “terreno (…), in perpetuum e de forma transmissível aos herdeiros do concessionário” e, quanto ao pedido de condenação na abstenção da prática de actos que perturbem a concessão, diversos actos que atribui à demandada e que, segundo alegou, impedem o acesso às urnas e o exercício dos direitos de concessionária.
Junta o alvará n.º ...16, com data de 17 de Junho de 2016, que titula a concessão, pela Junta de Freguesia ..., do “direito ao uso, na aplicação a que é destinado e com sujeição às leis e regulamentos de polícia, de um espaço (jazigo) no cemitério n.º ..., na Secção ..., sepultura n.º ... (…). Que o dito seja considerado para todo o sempre como propriedade da concessionária, e assim transmissível aos seus legítimos herdeiros” (doc. ...) e o “título de concessão de terreno a favor de FF”, de ... de Fevereiro de 1873, “in perpetuum (…), para jazigo de família”, “transmissível aos herdeiros” (doc. ...).
Conclui o articulado (artigo 80.º) afirmando que “Pelos factos alegados, facilmente se demonstra inequivocamente o direito da herança A. à utilização do jazigo, o qual já foi concedido à família da herança A. em 1873 e renovada em 2016”.
A ação veio a ser distribuída com o n.º 2443/17.....
Citada, a ré contestou, excepcionando a incapacidade legal da cabeça-de-casal BB, impugnando os factos alegados pela autora e afirmando, por entre o mais, que o jazigo foi comprado pelo seu bisavô (que, tal como outros familiares que identifica, foi sepultado no referido jazigo em 1921) e que, juntamente com sua irmã, “são titulares legais do direito de concessão do terreno ocupado pelo jazigo”. Impugna os documentos n.ºs ... e ... juntos com a petição, sustentando, quanto ao n.º 2, que o terreno a que se refere “não corresponde ao jazigo em causa nos autos (…), uma vez que não identifica e nem descreve o terreno ali objecto de concessão”” e, quanto ao n.º 1, “porque é elaborado e emitido com base na falsidade”.
A autora replicou, pronunciando-se pela improcedência da exceção invocada, e peticionou a condenação da ré por litigância de má-fé.
Por despacho de 18 de Fevereiro de 2021, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto convidou as partes a pronunciarem-se sobre a verificação da excepção dilatória de incompetência, em razão da matéria, da jurisdição administrativa para a apreciação da causa.
A autora pronunciou-se no sentido da competência material dos Tribunais Administrativos para conhecer da causa, requerendo, caso assim não se entenda, a remessa dos autos para a secção de competência genérica do Juízo Local Cível da Maia.
Por despacho saneador-sentença de 23 de Março de 2022, considerando tratar-se de uma acção da competência dos Tribunais Judiciais, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto absolveu a ré da instância, por incompetência absoluta.
Para tanto, e em suma, o Tribunal observou que que está em causa uma ação possessória, cujo principal intuito é o reconhecimento do direito à propriedade do jazigo, bem como a condenação da ré a abster-se de actos de esbulho de ou outros que dificultem o exercício do seu direito.
Salientou que não está em causa qualquer questão referente ao objeto da concessão administrativa (o terreno de implantação do jazigo), mas sim o próprio jazigo implantado no terreno do cemitério e a sua propriedade (enquanto bem imóvel).
Concluiu que entre as partes não existe qualquer relação jurídico-administrativa, tal como prevista no art. 4.º, n.º 1, al. a), do ETAF, mas, tão só, uma relação jurídica privada.
Notificada, a autora requereu a remessa dos autos para o Juízo Local Cível da Maia, o que veio a ser deferido por despacho de 7 de Junho de 2022 do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
Remetidos os autos, que ali passaram a correr com o n.º 3205/22.0T8MAI, o Juízo Local Cível da Maia – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por despacho de 23 de Junho de 2022, convidou as partes a pronunciarem-se sobre a competência material do Tribunal.
A autora requereu a remessa dos autos para o Tribunal competente para dirimir o conflito.
Por sentença de 11 de Outubro de 2022, o Juízo Local Cível da Maia – Juiz ... absolveu novamente a ré da instância, por entender que cabe aos Tribunais Administrativos o julgamento da causa.
Para tanto, concluiu que “Em face do pedido deduzido e da respectiva causa de pedir afigura-se-nos, ao contrário do decidido, não estarmos perante uma acção possessória que tem por intuito o reconhecimento do direito de propriedade sobre o referido jazigo, mas sim uma acção que visa defender a perturbação do direito de gozo sobre o referido jazigo legitimado pela concessão do direito real administrativo que deriva do alvará emitido por entidade pública. Estamos, assim, perante um conflito entre dois particulares relativo a uma relação jurídica administrativa qual seja o gozo de um direito real administrativo sobre um terreno pertencente à Junta de Freguesia e por esta cedido a um concessionário.”.
Mais determinou a remessa dos autos, após trânsito, ao Tribunal dos Conflitos, para resolução do conflito negativo de jurisdição.
O Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que se seguissem os termos previstos na Lei n.º 91/2009, de 4 de Setembro (Lei do Tribunal dos Conflitos).

2. O Ministério Público proferiu parecer no sentido da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, concretamente, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto – Unidade Orgânica ....
Em seu entender, “o que está em causa na presente acção é, em primeira linha, o reconhecimento da titularidade do direito de gozo da autora sobre o jazigo, direito esse que se funda num alvará emitido pela junta de freguesia, direito do qual a ré se arroga, existindo, tal como vem decidido naquele acórdão [do Tribunal Central Administrativo ..., de 11 de Maio e 2017, proferido no procedimento cautelar apenso], dúvidas sobre a validade que terá assim que ser apreciada ainda que a título incidental. A situação em análise é, pois, subsumível na al. a) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais então vigente (…)”.

3. Os factos relevantes para a decisão constam do relatório.
Está pois em causa, apenas, determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos «são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 2 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 1.º e artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 52-53, o legislador deveria esclarecer o que se entende como “relação jurídica administrativa”, nomeadamente para ser possível saber, com segurança, como delimitar o âmbito da jurisdição administrativa: “De facto, face à complexidade actual das relações entre o direito público e o direito privado no âmbito da actividade administrativa, a questão (…) transformou-se numa decisão, numa opção política entre soluções igualmente defensáveis” (nota 68).
«Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».
Importa ainda recordar que “a enumeração contida do n.º 1 do artigo 4.º” do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais “visa, em primeira linha (…), a concretização do conceito de ‘litígios emergentes de relações jurídicas administrativas’ (…). Por isso, o conteúdo de cada uma das alíneas deve ser interpretado, em princípio, em função da cláusula geral da Constituição, como a partir de 2015 ficou expressamente afirmado: a tutela de direitos fundamentais e das outras posições jurídicas substantivas referida na alínea a), só cabe aos tribunais administrativos no âmbito das relações de direito administrativo (…) ” (págs. 106 e 107).

4. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção; ou, ainda, no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, processo n.º 020/18, “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…). A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.
Cumpre ainda recordar que, quer nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a propósito dos Tribunais Judiciais, quer segundo consta do n.º 1 do artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a competência fixa-se no momento da propositura da acção, ou, dito por outras palavras: a competência afere-se pela lei vigente na data em que a acção é proposta; e que se entende que o pedido – o “efeito jurídico”, como o define o n.º 3 do artigo 581º do Código de Processo Civil – é o “efeito prático-jurídico” pretendido (cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 219/14.7TVPRT-C.P1.S1).
Ora, à data da apresentação da ação em juízo a redação vigente do artigo 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, resultante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, era a seguinte: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. Não continha, portanto, como hoje sucede, a menção “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”; a al. o) do n.º 1, do artigo 4.º, para o qual remetia aquele artigo 1.º, contemplava expressamente as relações jurídicas administrativas e fiscais.
Assim, em qualquer dos casos, a competência em razão da matéria dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se prevista no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

5. No caso dos autos, a autora alega, em síntese, o seguinte:
- Em ... de Fevereiro de 1873, a Junta de Freguesia ... concedeu a FF, de forma transmissível aos herdeiros do concessionário, o terreno do jazigo localizado na Secção ..., sepultura n.º ..., sito no cemitério n.º ... da freguesia ..., ....
- Por óbito de FF sucedeu-lhe o filho GG, casado com HH.
– Daquele casamento nasceu II, que veio a casar com AA.
– Por óbito de II, GG e HH, os bens destes dois últimos foram partilhados entre AA e seus filhos.
– AA permitiu a um amigo, de nome JJ, que enterrasse naquele jazigo alguns familiares seus, do lado esquerdo do muro, onde não estavam sepultados membros da família da herança autora.
– Por volta do ano de 1967 ou 1968, JJ pediu a AA a chave do cadeado que permitia o acesso às urnas, para ali enterrar outro familiar, tendo-lhe este entregue as mesmas.
– Tais chaves nunca foram devolvidas à família da autora, não tendo sido previsto qualquer prazo para a devolução das mesmas ou para o término da utilização do jazigo.
– Não foi requerida qualquer autorização à Junta de Freguesia para a cedência daquela metade do jazigo.
– A família da herança autora, tem vindo a utilizar o jazigo com regularidade, à vista de todos, sem oposição de qualquer pessoa, no âmbito da concessão administrativa da qual são beneficiários.
– Porém, apesar de nem o de cujus, nem os seus herdeiros, até tempos recentes, se terem oposto à utilização pela ré (neta de JJ) da sua parte do jazigo, esta, há cerca de 3 ou 4 anos, passou a arrogar-se proprietária do jazigo, afirmando que o mesmo lhe pertence e recusando-se a entregar as chaves.
– Em consequência destes comportamentos da ré, o marido da cabeça-de-casal, aqui seu representante, dirigiu-se à Junta de Freguesia ..., comunicando a situação.
– No seguimento desta comunicação, a Junta de Freguesia emitiu o “alvará ...16”, reforçando o direito de gozo dos herdeiros de AA e II relativamente ao jazigo.
– No dia 1 de Novembro de 2016, quando a família da herança autora se dirigiu ao cemitério constatou de que a ré havia substituído o cadeado que se encontrava na chapa de ferro colocada na entrada para as urnas, impedindo o acesso às urnas depositadas sob as lajes.
– A ré tem vindo a agir como se o jazigo lhe pertencesse, bem sabendo que apenas foi facultada ao seu antecessor a utilização de metade do mesmo, sem qualquer contrapartida, e que a concessão administrativa foi feita integralmente à família da herança autora.
– A família da herança autora não abdicou, em qualquer altura ou por qualquer forma, dos seus direitos sobre o jazigo, nem foi o mesmo reclamado pelo Município ou pela Junta de Freguesia.
– No seguimento desta situação, foi comunicado à ré, em carta datada de 14 de março de 2017, o término da cedência que lhe havia sido feita de metade do jazigo.
– O direito à concessão daquele jazigo tem sido transmitido sucessivamente por via sucessória legitimária desde aquela primeira concessão, em 1873.
– Deu-se assim transmissão mortis causa da concessão administrativa aos herdeiros legitimários de FF, e por aí sucessivamente até ao de cujus titular da herança autora.
– A concessão da utilização do jazigo pela Junta de Freguesia cria na esfera do concessionário um direito real de natureza administrativa, que nasce exclusivamente na esfera do concessionário.

6. É sabido que os cemitérios públicos integram o domínio público das autarquias que os possuem e administram (cfr., apenas a título de exemplo, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 25 de Junho de 2020, www.dgsi.pt, proc. n.º 034/19, e a jurisprudência nele citada).
É igualmente sabido que a implantação de construções (sepulturas e jazigos) nesses terrenos, cujo uso privativo tenha sido concedido a particulares, mediante o correspondente alvará, cria uma sobreposição de direitos reais de diferente natureza, semelhante ao direito de superfície: privada, quanto à construção (direito de propriedade, como no caso a autora alega), pública, quanto ao direito decorrente da concessão de uso privativo, cujos termos são definidos pelo alvará.
Sendo controversa a titularidade do conjunto, pode naturalmente ser necessário ajuizar da validade do alvará, ou das condições e termos em que foi concedido o uso privativo da parcela de terreno que estiver em causa, uso esse que é pressuposto necessário da constituição do direito de propriedade sobre as construções nela edificadas; mas a controvérsia pode incidir sobre a modalidade de aquisição do conjunto – por exemplo, por sucessão mortis causa, como alega a autora, ou por compra, como sustenta a ré, que será então a questão central da acção: tudo depende do pedido e da causa de pedir formulados pelo autor. Em qualquer dos casos, a competência do tribunal a quem caiba julgar a acção pode vir a ser estendida à apreciação de questões incidentais que, isoladamente consideradas, não lhe competiria conhecer (cfr. artigos 92.º do Código de Processo Civil e 15.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) – aspecto considerado relevante, para efeitos da aferição da competência, quando houver controvérsia sobre a titularidade do jazigo, pelo acórdão do Tribunal dos Conflitos de 17 de Setembro de 2015, www.dgsi.pt, proc. n.º 013/15, bem como no parecer do Ministério Público apresentado na presente acção.
Saber se cabe à jurisdição administrativa e fiscal ou aos tribunais judiciais conhecer de uma acção na qual se discuta a titularidade do referido conjunto depende, como se disse já, dos termos em que o autor definiu os elementos essenciais da acção – e não daqueles em que deveria ter sido formulada (por exemplo, para assegurar a legitimidade das partes ou para ser julgada procedente) –, sendo certo que, como atrás se recordou já, os litígios só se encontram abrangidos no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal se forem “emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 3 do artigo 212.º da Constituição), como tal tendo de ser interpretada “a enumeração contida no n.º 1 do artigo 4.º” do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Vieira de Andrade, op. e loc. citados).

7. A autora desta acção pede que lhe seja reconhecida “a titularidade da concessão perpétua do direito real administrativo de uso privativo do jazigo” e que a ré seja condenada a reconhecê-lo e a abster-se de perturbar o seu exercício, bem como a devolver as chaves necessárias ao acesso às urnas; e invoca como causa de pedir a aquisição por sucessão mortis causa e os actos de perturbação já referidos. Invoca, simultaneamente, o alvará de concessão e as regras da sucessão legal.
Entende-se que o principal efeito prático-jurídico pretendido pela autora desta acção – que se desenrola entre particulares – é a possibilidade de acesso ao jazigo, sem que a ré o perturbe ou impeça.
Assim interpretados os termos da acção, não pode concluir-se que se possa fundar a competência dos tribunais administrativos em qualquer das alíneas do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nomeadamente na al. a) do respectivo n.º 1. Citando de novo Vieira de Andrade, op.e loc. citados, “a tutela de direitos fundamentais e das outras posições jurídicas substantivas referida na alínea a), só cabe aos tribunais administrativos no âmbito das relações de direito administrativo (…) ” .
Dito por outra foram: sempre seria condição de atribuição de competência à jurisdição administrativa que o litígio entre autora e ré se desenrolasse no âmbito de uma relação administrativa, o que não é o caso.

8. Entende-se, assim, que a apreciação da presente acção cabe aos tribunais judiciais.
Em particular, e tal como se determina no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, compete ao Juízo Local Cível da Maia, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, nos termos do disposto nos artigos 40.º, n.º 130.º, n.º 1 e 117.º.n.º 1, a) da Lei n.º 62/2013 e no n.º 1 do artigo 70.º do Código de Processo Civil.

Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 31 de Janeiro de 2023. – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - Henrique Luís de Brito Araújo.