Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:014/14
Data do Acordão:05/15/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ABRANTES GERALDES
Descritores:HABITAÇÃO SOCIAL. DESPEJO. JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA.
Sumário:É da competência material do Tribunal Administrativo dirimir o litígio emergente de um “acordo de cedência de uma parte de casa com direito de serventia de cozinha e casa de banho” celebrado entre uma Empresa Pública Municipal, Gestora do Parque Habitacional de um Município, e um particular, designadamente quando vise a resolução do acordo, a condenação do réu na desocupação da habitação e o pagamento das prestações vencidas e vincendas correspondentes à contrapartida pela cedência.
Nº Convencional:JSTA00068706
Nº do Documento:SAC20140515014
Data de Entrada:03/06/2014
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 1 JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES E DE COMARCA DE CASCAIS E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:NEGATIVO JURISDIÇÃO TCIV CASCAIS - TAF SINTRA
Decisão:DECL COMPETENTE TAF SINTRA
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO
Legislação Nacional:PORT 580/83 DE 17/05.
L 21/09 DE 2009/05/20.
L 159/99 DE 1999/09/14.
L 797/76 DE 1976/11/06.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC028/12 DE 2013/04/18.; AC TCF PROC049/13 DE 2013/12/11.; AC TCF PROC030/12 DE 2013/12/11.
Referência a Doutrina:CIJE FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO PORTO - ARRENDAMENTOS SOCIAIS ALMEDINA 2005.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:

I – A EMGHA - GESTÃO da HABITAÇÃO SOCIAL de CASCAIS, E.M., S.A.,
intentou contra
A…………….
acção administrativa comum visando a declaração de resolução de um acordo de cedência de uma parte de um fogo habitacional com direito de serventia de cozinha e casa de banho e a condenação do R. na entrega da parte ocupada e no pagamento das prestações vencidas e vincendas que foram acordadas.

Alegou para o efeito que é gestora do Parque Habitacional do Município de Cascais e que cedeu ao R. uma parte de um fogo habitacional, mediante o pagamento de uma contraprestação mensal, sendo que há mais de um ano o R. deixou de residir na parte do fogo que lhe foi cedida.

Depois de ter instaurado acção de despejo no Tribunal Judicial de Cascais, a qual foi objecto de decisão de indeferimento liminar por incompetência material, a A. foi novamente confrontada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra com semelhante decisão de incompetência material.

Despoletado o conflito de jurisdição, importa dele conhecer, sendo que o Ministério Público deu o seu Parecer no sentido da afirmação da competência do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

II – Decidindo:

1. Importa dirimir um conflito negativo de jurisdição resultante da prolação de duas decisões de sentido inverso emitidas, respectivamente, por um Tribunal da ordem Administrativa e Fiscal e por um Tribunal Judicial.

A resposta parece-nos inequívoca, desembocando na atribuição da competência ao Tribunal Administrativo, à semelhança do que tem ocorrido noutros conflitos de contornos semelhantes, como o que foi decidido no Ac. deste mesmo Tribunal de Conflitos, de 18-4-13, no processo n° 28/12 (relatado pelo ora relator), no Ac. de
25-9-2012 ou ainda nos mais recentes arestos de 29-1-14, 16-1-14, 11-12-13 e 11-12-13 (www.dgsi.pt), todos despoletados no âmbito de acções emergentes de contratos de arrendamento com renda apoiada.


2. O litígio emerge de um acordo de cedência de uma parte de um fogo habitacional outorgado entre uma Empresa Pública Municipal, a que foi atribuída a gestão do Parque Habitacional de um Município.

Para além de a manutenção da ocupação depender da demonstração bienal dos rendimentos auferidos, previu-se que poderia ser desalojado se viesse a adquirir casa própria, se se recusasse a mostrar a parte da habitação ao representante da cedente, se não mantivesse a casa em bom estado ou se na casa viessem a habitar pessoas não autorizadas pelo acordo de cedência. A cedência de imóveis com fins sociais tem larga tradição entre nós, constituindo uma forma de o Estado e outras entidades públicas, como as autarquias locais, canalizarem fundos para a satisfação de problemas habitacionais de famílias com menores recursos, ainda que a afectação de imóveis a um tal objectivo não tenha obedecido a um regime unitário (a definição de “habitação social” consta da Portaria n° 580/83, de 17-5, sendo como tal consideradas “as habitações de custos controlados promovidas pelas câmaras municipais, cooperativas de habitação económica, pelas IPSS e pela iniciativa privada com apoio financeiro do Estado e destinadas à venda ou ao arrendamento nas condições de acesso estabelecidas no presente diploma”).

Sem necessidade de uma análise detalhada da evolução histórica do regime, para a resolução do caso basta atentar no que decorre da Lei n° 21/09, de 20-5, que agora rege a matéria dos arrendamentos sociais.

Motivada pela necessidade de se proceder à actualização do regime jurídico, embora com manutenção dos aspectos essenciais, revogou expressamente o Decreto n° 31.106, sendo este substituído por um “regime transitório” a vigorar “até à data da entrada em vigor do regime de arrendamento social” (art. 2°).

Mas tal como já decorria do citado Decreto n° 31.106, continuam a prescrever-se causas específicas que legitimam a entidade proprietária dos imóveis a proceder à cessação unilateral da utilização dos fogos atribuídos (v.g. com fundamento na ocorrência de alterações das condições de natureza económica que determinaram a atribuição do fogo ou com fundamento na detenção, a qualquer título, de outra habitação adequada ao agregado familiar - art. 3°, nºs 1, als. b) e g). Causas que, à semelhança do regime anterior, também tornam inadequado o recurso ao regime geral da resolução do contrato de arrendamento, revelando a pertinência da integração dos eventuais litígios que surgirem nos quadros do direito administrativo.

A comprovar a especificidade da matéria justificativa da atribuição da competência aos Tribunais Administrativos está também o art. 3°, n° 7, que confere ao locador poderes de autoridade, justificando que, “caso não ocorra a desocupação e entrega da habitação nos termos determinados, pode a entidade proprietária mandar executar o despejo, podendo para o efeito requisitar as autoridades policiais competentes para que procedam à identificação dos ocupantes da habitação ou para assegurar a execução do despejo”, com possibilidade de interposição de recurso do acto administrativos “para os tribunais administrativos” (n° 8).

3. No caso concreto, estamos perante um contrato de cedência de uma parte de um fogo habitacional celebrado entre uma Empresa Pública Municipal, no âmbito das atribuições que a lei confere aos Municípios, nos termos do art. 24°, al. d), da Lei n° 159/99, de
14-9, “
fomentar e gerir o parque habitacional de arrendamento social”.

Aos acordos desse cariz presidem interesses de ordem pública, de natureza social, que no caso são bem visíveis quanto se atenta, por um lado, no Contrato-programa em que se inscreveu a cedência a favor do R. e, por outro, no teor do contrato que com este foi celebrado.

O Dec. Lei n° 797/76, de 6-11, criou os “serviços municipais de habitação social”, com a função de “gestão do parque habitacional do respectivo município, a atribuição, segundo os regimes legalmente fixados, dos fogos construídos ou adquiridos para fins habitacionais pelo Estado, seus organismos autónomos, institutos públicos personalizados, pessoas colectivas de direito público, instituições de previdência e Misericórdias situados na respectiva área” (art. 1°). Diploma que se compatibiliza com o disposto no art. 24°, al. d), da Lei n° 159/99, de 14-9, sobre as incumbências dos municípios, aí se prevendo que lhes cabe “fomentar e gerir o parque habitacional de arrendamento social”.

Como se refere na obra “Arrendamentos Sociais”, do C.I.J.E, da Fac. de Direito da Universidade do Porto, ed. Almedina, 2005 (ainda antes da publicação da Lei n° 21/09), “a relação de arrendamento social é encabeçada pelo Estado mas também, e sobretudo, pelos organismos autónomos, pelos institutos públicos, autarquias locais e IPSS, sempre que tenham construído ou adquirido prédios com apoio financeiro do Estado. São estes os arrendamentos sujeitos a renda apoiada, de acordo com o art. 82°, n° 1, do RAU” (págs. 32 e 33).

Relativamente aos litígios emergentes de arrendamentos sociais não é de questionar a competência material dos Tribunais Administrativos, tal como ocorre com a presente situação cuja especificidade emerge do simples facto de a cedência se reportar apenas a parte de uma casa de habitação, com serventia de cozinha e de quarto de banho, ficando bem evidenciada a natureza administrativa do acto e o interesse público que visou prosseguir-se tendente a atenuar as carências habitacionais de um particular.

4. A atribuição da competência para dirimir litígios como aquele que emerge dos presentes autos corresponde à solução que vem sendo assumida pela jurisprudência, como o revelam os arestos deste Tribunal de Conflitos anteriormente enunciados.

A especificidade de tais contratos e os interesses que visam tutelar explicam que as questões suscitadas sejam resolvidas de acordo com os trâmites do procedimento administrativo e que as situações litigiosas sejam dirimidas pelos Tribunais Administrativos, como se decidiu, num caso inteiramente coincidente, no Ac. do Trib. de Conflitos, de 11-12-13 (www.dgsi.pt).

Deste modo, conclui-se que os Tribunais Administrativos e Fiscais são os competentes para julgar a questão exposta.

IV – Face ao exposto, acorda-se em resolver o conflito, considerando competente, em razão da matéria, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

Sem custas neste Tribunal de Conflitos.

Lisboa, 15 de Maio de 2014. – António dos Santos Abrantes Geraldes (relator) – António Bento São Pedro – José Tavares de Paiva – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – António da Silva Gonçalves – Jorge Artur Madeira dos Santos.