Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:013/20.6T8ALD-A.L1.S1
Data do Acordão:04/17/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:NUNO GONÇALVES
Sumário:Compete aos tribunais da jurisdição comum conhecer ação em que o autor pede a condenação de particulares a entregar-lhe quantias que alega terem sido indevidamente recebidas pelos réus, provenientes do subsídio atribuído aos agricultores no âmbito do pedido único, que o autor invoca ser direito seu, fundado em contrato de arrendamento rural.
Nº Convencional:JSTA000P32203
Nº do Documento:SAC20240417013
Recorrente:AA
Recorrido 1:SEARAS E CASCATAS LDA
Recorrido 2:BB
CC
DD
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Recurso

**


O Tribunal de Conflitos acorda: -----


*


1. Relatório:


O autor AA, em 17/02/2020, intentou no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Juízo de Competência Genérica de Almeida, ação declarativa de condenação com processo comum, contra: -------


- BB,


- CC,


- Searas e Cascatas, Lda,


- DD,


- EE,


- FF,


- GG e


- HH.


peticionando a condenação: ----

a) dos 1.º, 2.º e 4.º réus a pagar-lhe, solidariamente, a quantia de €13.265,18, referente ao subsídio que indevidamente lhes foi concedido e pago respeitante ao ano de 2018;

b) dos 1.º, 2.º, 5.º, 6.º, 7.º e 8.º réus a pagar-lhe, solidariamente, a quantia de €13.265,18, referente ao subsídio que indevidamente lhes foi concedido e pago respeitante ao ano de 2019;

c) dos 1.º, 2.º e 3.º réus a retirarem do Sistema de Identificação Parcelar/SIP as áreas dos prédios dados de arrendamento ao autor e a absterem-se de apresentar qualquer candidatura relativamente às mesmas e/ou a praticar qualquer ato que coarte o direito do autor a apresentar candidatura no âmbito do sobredito Pedido Único, tendo em vista o recebimento do respetivo subsídio;

- ou, caso tal já não seja possível relativamente ao ano de 2020 e seguintes,

d) dos 1.º, 2.º e 3.º réus a pagar-lhe, solidariamente, as quantias que, a título de subsídios relativos às áreas referidas na anterior alínea c), lhes venham a ser concedidas e pagas nos anos de 2020 e seguintes;

e) dos réus a pagar as custas da ação.


Citado, o réu CC contestou, excecionando a incompetência material do tribunal (defendendo a atribuição da mesma à jurisdição administrativa), a “impropriedade do meio”, o “caso decidido ou resolvido” e o abuso de direito. Requereu, ainda, a intervenção provocada do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P./IFAP. E impugnou os factos alegados pelo autor.


O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 15, (para onde o processo foi remetido) no despacho saneador exarado na ata da audiência prévia realizada em de 29/04/2023, entendendo que “tal como se nos afigura claro da petição inicial, o autor não põe em causa o procedimento do IFAP face às circunstâncias que terão sido apresentadas a este organismo por parte dos réus. Por outras palavras, não põe em causa o acto administrativo. O que o autor defende é que aquelas circunstâncias apresentadas pelos réus ao IFAP não correspondem à verdade dos factos.


E assim sendo, não há qualquer procedimento de direito administrativo que cumpra conhecer ou decidir. O que há é a alegação de conduta ilícita que causou ao autor prejuízos no montante dos subsídios atribuídos”, Concluindo que visando-se com a ação a efetivação de alegada responsabilidade civil decorrente de factos ilícitos, a causa a resolver é de natureza cível, julgou improcedente a exceção de incompetência material deduzida pelo réu e, em conformidade, declarou-se competente para conhecer da causa.


Inconformado, o réu CC interpôs recurso de apelação para a 2.ª instância.


O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 23/11/2023, tirado por maioria, com um voto de vencido, julgando o recurso procedente, declarou o tribunal cível a quo incompetente em razão da matéria para o julgamento da presente ação, absolvendo os réus da instância.


Fundamentou-se o decidido, além do mais e em suma, que em causa está um litígio emergente de relações jurídicas administrativas, que pressupõe a apreciação da validade ou invalidade dos atos administrativos de atribuição de subsídios.


Inconformado, o autor AA interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, defendendo a atribuição da competência material aos tribunais comuns para a apreciação desta causa.


Notificado, o réu CC requereu a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos, o que veio a ser determinado no despacho de 13/02/2024, do Exmo. Desembargador relator. E, contra-alegando pugnou pela improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.


2. parecer do Ministério Público:


Recebidos os autos neste Tribunal dos Conflitos foi aberta vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro tendo o Digno Procurador-geral Adjunto emitido parecer em que, louvando-se no voto de vencida que a Exma. Desembargadora 1.ª adjunta juntou ao acórdão recorrido, emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência para conhecer da presente ação aos tribunais da jurisdição comum (a indicação dos “Tribunais da Jurisdição Administrativa”, no final do parecer, resultará de manifesto lapso de escrita).


3. objeto do recurso:


A questão a resolver aqui consiste em definir se a competência em razão da matéria para a apreciação da pretensão de justiça do autor, tal como é figurada no articulado inicial, no qual, alegando ser titular do direito, por contrato de arrendamento rural, ao subsídio agrícola indevidamente recebimento pelos réus, peticiona que se condenem a entregar-lhe as correspondentes quantias, - que descrimina -, cabe aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.


4. fundamentação:


a. o direito:


i. regime da competência em razão da matéria:


Para o que aqui releva, a repartição do exercício do poder jurisdicional pelas categorias de jurisdições constitucional e legalmente previstas encontra-se estruturado em razão da natureza material das questões que devem ser submetidas à respetiva apreciação.


Estabelece o art. 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.


Em execução daquele comando constitucional, o art. 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário/LOSJ) estatui que “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.


Em consonância, reafirma o art. 64.º do Código de Processo Civil (CPC) que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.


Assim, sempre que uma causa não esteja atribuída por lei a outro tribunal, será a mesma da competência residual do tribunal judicial comum.


Dispondo o art. 65.º do CPC que “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.


Por sua vez, estabelece o art. 212.º, n.º 3, da CRP que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.


Cumprindo aquele comando constitucional, estabelece o art. 144.º, n.º 1, da LOSJ que, “Aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.”.


Dispondo o art. 1.º, n.º 1, do ETAF (na redação da Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro), que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.


Nos termos do art. 4.º do ETAF, na sua atual redação (Lei n.º 114/2019):


1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;

e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;

f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;

g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;

i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;

j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;

k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;

l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;

o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.


3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:


a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa;

b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;

c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.

4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;

b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;

c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;

d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;

e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”.

Os tribunais administrativos, “não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]1


ii. apreciação:


Sustentou-se no Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18: “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…)


A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].2.


No caso, o autor, na respetiva petição inicial, alegou como fundamento da sua pretensão o seguinte (em síntese): -----

- que por contrato de arrendamento rural que celebrou com o réu BB, este deu-lhe e o autor tomou de arrendamento os prédios rústicos que identifica, dos quais aquele réu era e é, dono.

- contrato com início em 02/05/2004 que foi celebrado pelo prazo de 7 anos, renovável sucessivamente por períodos de 5 anos.

- que em consequência do gozo daqueles prédios, efetuado a coberto do sobredito contrato de arrendamento, o autor, porque reunia os requisitos legalmente exigidos, foi apresentando, ao longo dos anos, candidatura aos programas, nacionais e comunitários, de apoio destinados aos agricultores, recebendo os respetivos subsídios, nomeadamente os atribuídos no âmbito do Pedido Único.

- que em 2017, por lapso seu, o autor não procedeu à atualização/confirmação dos dados no Sistema de Identificação Parcelar (SIP), o que ocasionou que nesse ano não tenha conseguido apresentar qualquer candidatura e/ou receber qualquer subsídio relativamente aos prédios em causa.

- continuando a explorar os referidos prédios, de forma exclusiva, como vinha fazendo desde 02/05/2004 ao abrigo daquele contrato de arrendamento, em 2018 o autor procurou efetuar a atualização dos dados no referido SIP, de forma a permitir a apresentação de candidatura no âmbito do sobredito Pedido Único e obter o recebimento do subsídio a que tinha direito.

- foi então confrontado com o facto de as áreas dos prédios rústicos em causa, que eram elegíveis para efeitos da referida candidatura e recebimento do competente subsídio, constarem no SIP em nome da ré DD.

- ré essa que, atuando em conluio com o 1.º e o 2.º réu, havia logrado inscrever aquelas áreas no SIP, não obstante bem saberem todos que a mesma não possuía qualquer título válido que a legitimasse para o efeito e que não podia apresentar qualquer candidatura e/ou receber qualquer subsídio, por não reunir os requisitos necessários, pois que nunca ali explorou ou exerceu qualquer atividade.

- ainda assim, foi atribuído àquela ré, pelo Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural um subsídio no valor global de €13.265,18, que a mesma recebeu indevidamente, em seu proveito e dos 1.º e 2.º réus e em prejuízo do autor, único a quem assistia o direito de apresentar candidatura e receber o subsídio.

- no ano de 2019, o autor procurou novamente efetuar a atualização dos dados no referido SIP, por forma a permitir a apresentação de candidatura no âmbito do sobredito Pedido Único e obter o recebimento do subsídio a que tinha direito.

- no entanto, foi confrontado com o facto de as áreas dos prédios rústicos em causa, constarem no SIP, em nome dos 5.º, 6.º, 7.º e 8.º réus.

- tais réus, atuando em conluio com o 1.º e o 2.º réu, haviam logrado inscrever aquelas áreas no SIP, não obstante bem saberem todos que os mesmos não possuíam qualquer título válido que as legitimasse para o efeito, e que não podiam apresentar qualquer candidatura e/ou receber qualquer subsídio, por não reunirem os requisitos necessários, pois que nunca ali exploraram ou exerceram qualquer atividade.

- Ainda assim, foi atribuído àqueles réus, pelo Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural um subsídio no valor global de €13.265,18, que receberam indevidamente, em seu proveito e dos 1.º e 2.º réus, à custa e em prejuízo do autor, a quem cabia o direito de apresentar candidatura e receber o subsídio em causa.

- que a sobredita forma de atuação, nos anos de 2018 e 2019, teve como ponto comum a intervenção dos 1.º e 2.º réus, tendo sido eles a urdir o plano conducente ao recebimento indevido dos subsídios atribuídos naqueles anos de 2018 e 2019, relativamente às parcelas em causa, no que foram auxiliados pelos 4.º a 8.º réus.

- que para o ano de 2020, os 1.º e 2.º réus (únicos gerentes da 3.ª ré), lograram inscrever no SIP em nome da 3.ª ré as áreas dos prédios rústicos em causa, que são elegíveis para efeitos da sobredita candidatura e recebimento do competente subsídio, não obstante saberem ambos que esta não possui qualquer título válido que a legitime e que a mesma não reúne requisitos necessários, pois que, à semelhança do que vem sucedendo desde 02/05/2004, quem ocupou, e ocupará, de forma exclusiva, tais áreas/prédios foi e será o autor.

Conclui que “a menos que este Tribunal intervenha, ver-se-á uma vez mais impedido de apresentar candidatura e receber o subsídio a que tem direito”, “impondo-se, por isso, através da presente ação, pôr cobro à atuação dos réus”.


Daqui resulta, em concreto e em síntese apertada e tal como consta do voto de vencido ao mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/11/2023, reproduzido no Parecer do Ministério Público, que a causa de pedir na presente ação consiste em “a 4.ª ré (relativamente ao ano de 2018), os 5.º, 6.º, 7.º e 8.º réus (relativamente ao ano de 2019), a 3.ª ré (relativamente ao ano de 2020), todos conluiados com o 1.º e 2.º réus e em proveito de todos, inscreveram no plataforma SIP (Sistema de Identificação Parcelar) as áreas dos prédios rústicos que se encontram arrendadas pelo 1.º réu ao autor e que apenas este (o autor) explora, como se fossem exploradas, em 2018, pela 4.ª ré, em 2019, pelos 5.º, 6.º, 7.º e 8.º réus, e, em 2020, pela 3.ª ré, sendo que nenhum dos réus explora ou explorou os terrenos, nem para isso tem título legitimador; com a sua atuação ilícita, os réus lograram obter os subsídios a que só o autor tinha direito por ser o arrendatário e ser quem efetivamente cuida e explora os mesmos terrenos”.


A propósito da noção de “relação jurídica administrativa”, escreveu José Carlos Vieira de Andrade3 que, “na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)


A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.


Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.


Segundo Diogo Freitas do Amaral4, a relação jurídica de direito administrativo “é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”.


No caso dos autos, ainda que alegue que as circunstâncias apresentadas pelos réus com vista à atribuição dos subsídios não correspondem à realidade dos factos, certo é que, verdadeiramente, o autor não impugna os atos administrativos relativos aos subsídios em causa, nem, sequer, invoca qualquer atuação indevida por parte da entidade administrativa.


Com efeito, o autor insurge-se apenas contra a conduta dos réus (particularmente dos 1.º e 2.º), que descreve como ilícita e resultante de um plano previamente urdido com vista à obtenção indevida de subsídios, em seu prejuízo.


Em suma, pretende que o tribunal condene os réus a entregar-lhe as quantias monetárias que alega terem recebido indevidamente, por pertencerem ao autor por direito próprio, fundado no contrato de arrendamento rural que invoca. Em suma, pretende obter a condenação dos réus a pagar-lhe quantias que liquida, alegando terem sido que as receberam indevidamente.


Trata-se de típica ação declarativa de condenação destinada à efetivação responsabilidade civil pela alegada prática de facto ilícito, cuja procedência (ou não) demandará saber se existe e se mantém vigente o invocado contrato de arrendamento rural celebrado entre dois particulares.


Por conseguinte, não estando neste processo em causa uma relação jurídica administrativa, conclui-se que o foro competente para conhecer da ação em causa é o dos tribunais judiciais comuns.

5. dispositivo:


Pelo exposto, o Tribunal de Conflitos acorda em julgar procedente o recurso do autor e, em conformidade, decide atribuir à jurisdição dos tribunais judiciais comuns – concretamente ao Juízo central cível de Lisboa -Juiz 15, do Tribunal judicial da comarca de Lisboa - a competência material para conhecer da ação intentada nestes autos.


Não são devidas custas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro.


Lisboa, 17 de abril de 2024. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.

1. Ac. do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18: http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00

2. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00

3. “A Justiça Administrativa” 17.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 49.

4. “Direito Administrativo”, volume III, Lisboa, 1989, pág. 439.