Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:05/04
Data do Acordão:09/23/2004
Tribunal:CONFLITOS
Relator:SANTOS BOTELHO
Descritores:COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA.
RELAÇÃO JURÍDICO-ADMINISTRATIVA.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS.
CONFLITO DE COMPETÊNCIA.
Sumário:I - A determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento da pretensão deduzida pelo Autor deve partir do teor desta pretensão e dos fundamentos em que se baseia sendo, para este efeito, irrelevante o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma (por se tratar de questão atinente ao mérito da pretensão).
II - A competência terá, por isso, de se aferir pelos termos da relação jurídico-processual tal como foi apresentada em juízo.
III - Não cabe na jurisdição dos Tribunais Administrativos dirimir litígios não emergentes de relações jurídico-administrativas.
Nº Convencional:JSTA00060729
Nº do Documento:SAC2004092305
Data de Entrada:03/05/2004
Recorrente:A... E CM DO PORTO NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE AS VARAS CÍVEIS DO PORTO - 1ª VARA - 1ª SECÇÃO E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO.
Objecto:AC RP DE 2003/12/16.
Decisão:DECLARAÇÃO COMPETENTE.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONTRATO.
Recusa Aplicação:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:ETAF84 ART1 ART3 ART4 N1 F.
CPC96 ART66.
CONST97 ART212 N2 N3.
Jurisprudência Nacional:AC CONFLITOS DE 1991/01/31 IN AD N361.; AC CONFLITOS PROC253 DE 1993/07/06.; AC STJ DE 1987/02/03 IN BMJ N364 PAG591.; AC STJ DE 1990/02/20 IN BMJ N394 PAG453.; AC STJ DE 1994/01/12 IN CJSTJ T1 PAG328.; AC STJ DE 1995/05/09 T2 PAG968.; AC STA PROC25084 DE 1989/03/09.; AC STA PROC31478 DE 1993/05/13.; AC STA PROC39544 DE 1996/11/27.; AC STA PROC39589 DE 1997/02/19.; AC STA PROC40648 DE 1999/05/26.; AC STA PROC44068 DE 1999/10/13.; AC STA PROC46024 DE 2000/07/06.; AC STA PROC46161 DE 2000/07/06.; AC CONFLITOS PROC356 DE 2000/10/03.; AC CONFLITOS PROC318 DE 2000/07/11.
Referência a Doutrina:ALBERTO DOS REIS COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL V1 PAG110.
MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL V1 PAG88.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal de Conflitos:
1 – RELATÓRIO
1.1 A..., sociedade comercial, com sede na ..., .../..., Porto, recorre para este Tribunal de Conflitos, nos termos do nº 2, do artigo 107º do CPC, do Acórdão da Relação do Porto, de 16-12-03, que julgou incompetente o Tribunal Cível da Comarca do Porto para conhecer da acção intentada pela Autora contra a “Câmara Municipal do Porto (Município do Porto), por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa.
Nas suas alegações formula as seguintes conclusões:
“I Vem o presente recurso interposto do Acórdão de fls…dos autos que confirmou, aliás Douta sentença de fls… que decidiu pela procedência da arguida excepção de incompetência em razão da matéria do Dig. Tribunal da Comarca do Porto para conhecer do objecto dos presentes autos.
II Entende a recorrente que para que os actos da administração se considere na esfera de gestão pública, a administração deve estar investida do ius imperii.
III A relação jurídica que as partes pretendem ver solucionada pelo Tribunal é apreciada, para determinação da competência dos tribunais, em função da pretensão deduzida e pelo pedido formulado pelo A.
IV Ignora e ignorava a recorrente com rigor que a Re, recorrida, havia adquirido os imóveis em questão no âmbito de um processo expropriativo.
V Não é o referido processo administrativo de recuperação e reconversão urbanística do centro histórico do Porto que está em causa na presente acidado.
VI Na presente acção está em causa a mais prosaica situação das relações contratuais civilistas entre locador e locatário.
VII Adquirida a propriedade do imóvel identificado na presente acção pelo Município do Porto, este sucedeu nos direitos e obrigações do locador.
VIII Previamente e após a aquisição referido imóvel a ré comportou-se sempre com um ente privado, despido do poder público, ou seja numa posição de igualdade com a recorrente e por isso nas mesmas condições e no mesmo regime em que procederia um particular, com submissão total às normas de direito privado.
IX De resto, o eventual interesse público que terá estado subjacente à aquisição do imóvel por parte da ré recorrida não se pode estender, pelos menos os seus efeitos, à recorrente.
Sem prescindir
X Adquirido o imóvel pela Câmara Municipal do Porto, esta herdou a relação locatícia comercial-civil com a Autora, e manteve como senhorio tal relação até ao presente nos termos expostos.
XI Violou o douto acórdão recorrido nomeadamente os artºs 1, 3 e 4º nº 1 da ETAF, artº 66º do CPC.
Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso…revogando-se o douto Acórdão recorrido…nomeadamente substituindo o mesmo por outro que julgue improcedente a excepção de incompetência alegada e considere competente em razão da matéria, para apreciação da causa, o Dig. Tribunal Judicial do Porto, no caso, as Varas Cíveis do Porto…” – cfr. fls. 294-296.
1.2 Por sua vez, o agora Recorrido, tendo contra-alegado, apresenta as seguintes conclusões:
“1 – A competência em razão da matéria do tribunal afere-se pela natureza jurídica dos factos alegados para a estrutura da causa de pedir e não pela qualificação jurídica que o A. lhes atribui, e também pela pretensão material formulada (cfr. o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 17/6/99, in www.dgsi.pt).
2 – A mesma competência fixa-se em face da natureza da relação material em debate, segundo a versão apresentada em juízo, sendo o foro administrativo o competente quando, além da qualidade da pessoa responsável, exista um facto que seja característico da actividade administrativa, ou seja, da gestão pública – cfr., decidiu o Acórdão do Tribunal da Relaççao do Porto de 5 de Janeiro de 1993 no Recurso m+ 592/92, da 2ª Secção, in BMJ, 423, pag.).
3 – Atendendo ao pedido e aos factos alegados pela A. integrativos da causa de pedir e aos documentos juntos aos autos da P.I. resulta claro que a A. teve conhecimento desde sempre que a aquisição do prédio onde se insere o seu estabelecimento comercial foi adquirido no âmbito de um processo de expropriação amigável.
4 – E que tal processo de expropriação amigável foi desencadeado ao abrigo do Decreto-Regulamentar nº 14/94 de 17 de Junho e artigos 41º e ss. do Decreto-Lei nº 794/76, de 5 de Novembro, com vista à requalificação do centro histórico do Porto.
5 – No âmbito desse procedimento administrativo a A. foi consultada por ser arrendatária de parte do prédio em questão, e, consequentemente, interessada, sendo que no seguimento das negociações entabuladas entre as partes foi celebrado o acordo a que a A. se refere nos nºs. 74 a 80 da P.I., que constitui causa de pedir, que se entendeu adequado à prossecução do interesse público posto a cargo da R., e a salvaguarda da posição da A., com base numa proposta da R. que surgiu com alternativa viável à declaração de caducidade do arrendamento.
6 – Toda a actuação da Ré, antes e depois da aquisição do imóvel, traduz actividade de gestão pública, já que a mesma agiu no uso das suas competências administrativas e nas vestes do ius imperii que lhe permite prosseguir aquele interesse público de recuperação de património urbanístico de interesse histórico, o qual se insere inclusivamente em área classificada como património da humanidade – tudo cfr. alínea m) do nº 2 e alínea d) do nº 1 ambos do art. 64º das Lei nº 169/99, de 18 de Setembro artigos 1º e 2º do Código das Expropriações e artigos 41º a 46º do DL nº 794/76, de 5 de Novembro.
7 – Todos os actos necessários à recuperação do imóvel, desde a realização da expropriação amigável, passando pelo acordo efectuado com a Autora, inserem-se numa típica relação administrava, sujeitos assim à competência dos tribunais administrativos – art. 1º e 3º E.T.A.F.
8 – Não corresponde assim à realidade que na presente acção esteja em causa a mais prosaica das relações contratuais civilistas entre locador e locatário.
9 – Afirmá-lo é entrar em contradição com o que a própria A. alega como causa de pedir e com o pedido de indemnização efectuada já que vem invocado como causa de pedir, por uma lado, o incumprimento de um acordo celebrado no âmbito de um procedimento expropriativo com vista à recuperação de um imóvel integrado em área crítica de recuperação e reconversão urbanísticas e por isso sujeito a legislação específica, e, por outro lado, a omissão da obrigação da autarquia de executar trabalhos de demolição, beneficiação ou reparação de imóvel integrado na referida área crítica.
10 – Quer se enquadre a questão pelo prisma da responsabilidade contratual da autarquia por actos de gestão pública ou pelo prisma da responsabilidade pela verificação daquela omissão, sempre estaremos no domínio de uma relação jurídica administrativa que incumbe aos tribunais administrativos decidir.
11 – O próprio contrato de arrendamento invocado pela A., por força da qualidade pública da Ré, a considerar-se vigente, está abrangido pela excepção do art. 5º, nº 2, alíneas a) e f) do R. A. U. e sujeito ao regime especial previsto no Decreto-Lei nº 704/76, de 5 de Novembro e também no Decreto-Lei nº 23465, de 18-2-1934, estendido às autarquias locais pelo Decreto-Lei nº 45133, de 13-7-1963 pelo que sempre estamos no âmbito de uma relação jurídica administrativa.
12 – É manifesto que o interesse público que presidiu à aquisição do imóvel por parte da R. foi o mesmo que a levou a contratar com a A., interesse que a A. não pode desconhecer, e que leva a que a R., na sua actuação com vista à reparação do prédio da A., tenha de ter presente todo o enquadramento legal administrativo aplicável à autarquia, designadamente o regime do DL 794/76, de 5 de Novembro, e não exclusivamente normas de direito privado.
13 – Considerar apenas a pretensa relação locatícia seria desconhecer completamente o interesse público e as normas que deverão reger a actuação da administração na intervenção no prédio onde a A. possui o seu estabelecimento, e esquecer-se o interesse público que presidiu à aquisição do imóvel dos autos.
14 – A existir um contrato de arrendamento vigente entre a A. e R., o mesmo está sujeito a um regime especial, devendo ser enquadrado pelo regime especial específico o DL nº 794/96, de 5 de Novembro, que, nos seus artºs 46º e 52º, prevê o despejo administrativo, o despejo imediato e o realojamento, normas essas que obviamente não são de considerar quando estamos em presença de uma pura relação civilística.
16 – Assim, a própria relação jurídica de arrendamento invocado pela A., a entender-se existente e vigente, é uma relação regulada por normas de direito público, sendo os litígios dele emergentes da competência dos tribunais administrativos.
17 – Por outro lado, não pode haver dúvidas de que a actuação da Ré decorreu no exercício duma função de interesse público, na sequência aliás do mesmo interesse que levou à expropriação e que até pode levar à caducidade do arrendamento, conforme o art. 1051º do C.C.
18 – A averiguação da eventual responsabilidade exigível à Ré por força do contrato celebrado que a Autora reclama é da competência do Tribunal Administrativo de Círculo, por aplicação do art. 51º, nº 1, alínea h) do E.T.A.F.
19 – Não violou o Acórdão recorrido as disposições apontadas pela agravante, pelo que o mesmo deve manter-se.
Nestes termos, deve negar-se provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão proferida no Acórdão impugnado…” – cfr. fls. 309-313.
1.3 No seu Parecer de fls. 327 o Magistrado do M. Público pronuncia-se pelo reconhecimento da competência do foro administrativo para conhecer da acção intentada pela Autora.
1.4 Colhidos os vistos cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
2 - A MATÉRIA DE FACTO
No seu Acórdão de fls. 257/263, o Tribunal da Relação do Porto deu como provados os seguintes factos:
“a) A autora, invocando a sua qualidade de inquilino, move a presente acção contra a Ré, proprietário do imóvel onde tem instalado o seu estabelecimento comercial, exigindo a realização de obras necessárias e pedindo indemnização pelos danos sofridos, líquidos e íliquidos.
b) É alegado no art. 24º da p.i.: “Sucede porém que em 1998, a aqui Ré, C. M. Porto, no âmbito de um processo de aquisição de imóveis na zona histórica do Porto, com vista à sua recuperação e redinamização da referida zona adquiriu por compra à referida sociedade “....” o sempre referido prédio sito na Rua ..., .../... e Rua ..., nº ..., em cujo ... e ... andar se encontra instalada a A. e o seu referido estabelecimento”.
c) Acrescenta no art. 73º: “quer porque a Ré adquiriu o dito imóvel onde se encontra instalada a A. tendo em vista a sua recuperação arquitectónica, que aliás negociou com a própria A. e que não cumpriu”.
d) A Ré adquiriu a propriedade do imóvel onde o estabelecimento da Atroa se encontra no âmbito de um processo de expropriativo que decorre ao abrigo do Decreto-Regulamentar 54/84, de 12 de Agosto, com as ampliações dos Decretos Regulamentarei nºs 14/94, de 17 de Junho, e 11/2000, de 24 de Agosto, que declaram como área critica de recuperação urbanística o centro histórico da cidade onde se localiza o referido imóvel.” – cfr. fls. 259.
3 – O DIREITO
3.1 Estamos perante um recurso interposto para este Tribunal de Conflitos ao abrigo do nº 2, do artigo 107º do CPC.
Impõe-se, por isso, a prolação de decisão que defina a competência do foro administrativo ou do foro civil, deste modo prevenindo um conflito futuro.
Cfr., nesta linha, entre outros o Ac. do Tribunal de Conflitos, de 5-7-94, in CJ, 1994, 2º, 24 e A. dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, a págs. 323 e seguintes.
3.2 Ora, já se viu que no seu Acórdão, de 16-12-03, a fls. 257/263, o Tribunal da Relação do Porto confirmou a decisão, de 9-7-03, da 1ª Vara do Tribunal Civil da Comarca do Porto, que tinha julgado procedente a excepção de incompetência em razão da matéria arguida pelo R. Município do Porto, considerando competente a jurisdição administrativa para conhecer da acção interposta pela A..
3.3 Insurgindo-se contra tal aresto a agora Recorrente sustenta, no essencial, que se está em face de relações contratuais civilistas entre locador e locatário (cfr. a IV conclusão da sua alegação), de onde resultaria a exclusão da competência dos Tribunais Administrativos, daí que tenha por violado o disposto nos artigos 1º, 3º e 4º, nº 1, alínea f) do ETAF e 66º do CPC.
3.4 Outra é, porém, a posição defendida pelo aqui Recorrido, que continua a pugnar pela competência dos Tribunais Admnsitativos.
E, isto, fundamentalmente, por a questão se reconduzir ao pedido de pronúncia sobre uma relação jurídica administrativa.
3.5 Vejamos, então, qual o foro competente para dirimir o litígio.
No que concerne à apreciação do pressuposto processual atinente com a competência, quer este Tribunal de Conflitos quer o STJ e o STA têm afirmado repetidas vezes que a mesma se terá de processar partindo da análise da estrutura da relação jurídica material em debate, segundo a versão apresenta em juízo pelo A., com especial enfoque para os termos da pretensão por si formulada (compreendidos aí os respectivos fundamentos).
Ou seja, é a estrutura da causa apresentada pela parte que recorre ao tribunal que fixa o tema decisivo para efeitos de competência material.
Vide, designadamente, os Acs. do T. Conflitos, de 31-1-91 – AD 361 e de 6-7-93 (Conflito nº 253); do STJ, de 3/2/87, in BM 364º-591, de 202-90 – BMJ 394º-453, de 12-1-94 – CJ/STJ, 1994, 1º, 328 e de 9-5-95 – CJ/STJ, 1995, 2º, 968 e do STA, de 9-3-89 – Rec. 25084, de 13-5-93 – Rec. 31478, de 27-1-94 – Rec. 32278, de 28-5-96 – Rec. 39911, de 26-9-6 – Rec. 267, de 27-11-96 – Rec. 39544, de 19-2-97 – Rec. 39589, de 24-11-98 – Rec. 43737 de 3-3-99 – Rec. 40222, de 23-3-99 – Rec. 43973, de 26-5-99 – Rec. 40648, de 13-10-99 – Rec. 44068, de 26-9-00 – Rec. 46024, de 6-7-00 – Rec. 46161, de 3-10-00 – Rec. 356 e de 11-7-00 – Rec. 318.
Na mesma linha, cfr., A. dos Reis, in “Comentário…”, 1º - 110 e Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1º - 88.
Temos, assim, que a competência se afere, essencialmente, pelo quid disputatum, irrelevando, em sede da apreciação do pressuposto agora em análise, qualquer tipo de indagação atinente com o mérito do pedido formulado.
Sucede que, no caso em apreço, olhando à forma como foi estruturada a acção intentada pela agora Recorrente, é de concluir que não estamos em presença de uma relação jurídica administrativa.
Na verdade, dos termos da relação jurídico-processual, tal como apresentada em juízo, flui que em causa está o conhecimento de questões de direito privado.
Ora, como é sabido, por força dos artigos 212º, nº 3 da CRP e 3º do ETAF à jurisdição administrativa incumbe dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
A referência que é feita à relação jurídica administrativa denota que o critério de delimitação perfilhado pelo Legislador se configura em termos materiais, partindo da natureza administrativa ou não administrativa da relação jurídica subjacente.
Em suma, o que releva não é um critério orgânico, que atenda primacialmente à natureza (pública ou privada) dos titulares da relação material controvertida.
É o que se pode retirar, também, da alínea f), do nº 1, do artigo 4º do ETAF.
Acontece que da petição inicial apresentada pela Recorrente se pode retirar que a acção intentada contra o aqui Recorrido radica numa relação “locatícia”, emergente de um contrato de arrendamento onde a Recorrente figura como arrendatária.
Concretamente, a R. pretende obter a condenação do Recorrido, enquanto “senhorio” e proprietário do imóvel em questão, no sentido de proceder à sua reparação, por forma a assegurar o cabal exercício da sua actividade comercial, ao mesmo tempo que peticiona a condenação do Recorrido no pagamento de uma indemnização destinada ao ressarcimento dos prejuízos que refere ter sofrido, designadamente, com a não realização das ditas obras no espaço arrendado, onde, de resto, tinha instalado o seu estabelecimento de ourivesaria/relojoaria.
A circunstância de o imóvel já aludido ter passado a ser propriedade do Recorrido, que é uma pessoa colectiva de direito público, não leva, de per si, a que uma relação até aí de natureza privada, se transforme, sem mais, numa relação de natureza pública, apenas pela mudança do titular do direito de propriedade do imóvel.
Só assim não seria se, por exemplo, tivesse sido celebrado um novo contrato de arrendamento, a que fosse de atribuir a natureza de contrato administrativo, sendo que, a este propósito, o Recorrido nada invocou de juridicamente relevante, em termos de propiciar tal hipotética mudança de natureza, sendo que, inclusivamente, refere na sua contestação ter acabado por manter o contrato de arrendamento, não enveredando pela declaração de caducidade do mesmo (cfr. os artigos 20º a 22º do dito articulado).
Neste particular contexto importa ainda realçar que a Recorrente não pretende reagir judicialmente tendo em vista defender as suas posições subjectivas em face de uma qualquer conduta do Recorrido passível de ser vista como integrando o uso de ius imperii.
Por isso é que não cumpre aqui chamar à colação, como factor a ponderar em sede da apreciação do pressuposto da competência, os eventuais constrangimentos legais que impendam sobre as operações urbanísticas a empreender no imóvel em causa, por este se situar na Zona Histórica do Porto.
Com efeito, tal questão em nada contende com a natureza pública ou privada da questão sub judicie, na medida em que ela também se pode colocar para as obras a realizar pelos proprietários privados.
Por outro lado, a Recorrente não questiona na acção que intentou qualquer acto do Recorrido inserido num eventual processo de recuperação e reconversão de património urbanístico de interesse histórico, antes pretendendo compelir judicialmente o Recorrido a realizar as obras ou reparações de conservação por si tidas como necessárias à utilização do imóvel para o fim a que se destina.
Não é pedido ao Tribunal um qualquer tipo de pronúncia susceptível de ser vista como visando sindicar a actuação do Recorrido traduzida na aquisição do questionado imóvel.
Finalmente, por tudo o que já se disse, é patente que a acção intentada pela Recorrente se não insere no âmbito da responsabilidade civil extracontratual de um Ente Público por actos de gestão pública, já que a fonte de onde emerge o invocado direito à indemnização não radica em facto que evidencie o exercício poder público - de supremacia ou de autoridade.
Temos, assim, que tudo se reconduz, no caso dos autos, ao conhecimento de uma acção emergente de uma relação jurídica privada, o que implica, como já antes se assinalou, a exclusão da jurisdição administrativa, por força do disposto nos artigos 212º, nº 2 da CRP, 3º e 4º, nº 1, alínea f), do ETAF, sendo competentes para conhecer de tal acção os Tribunais Judiciais, ex vi do artigo 66º do CPC.
4 – DECISÃO
Nestes termos, acordam em julgar competente para conhecer da acção intentada pela aqui Recorrente os Tribunais Judiciais, mais concretamente, as Varas Civeis da Comarca do Porto.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Setembro de 2004 – Santos Botelho (Relator) – Azevedo Moreira – Carmona da Mota – António Pereira Madeira – Adérito Santos – Fernando Araújo de Barros