Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:04/15
Data do Acordão:09/17/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:SÃO PEDRO
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário:A acção de indemnização fundada no enriquecimento sem causa emergente de uma relação jurídico-administrativa deve ser julgada na jurisdição administrativa.
Nº Convencional:JSTA000P19400
Nº do Documento:SAC2015091704
Data de Entrada:01/20/2015
Recorrente:A... SA NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO - ENTRE O 7 JUÍZO CÍVEL DA COMARCA DE LISBOA E O TAC DE LISBOA - 3 UNIDADE ORGÂNICA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos
1. Relatório

1.1. A…………… SA, veio requerer que este Tribunal de Conflitos profira decisão determinando qual o Tribunal competente para julgar a acção por si intentada contra o ESTADO PORTUGUÊS.

Alega a autora ter intentado um acção contra o ESTADO PORTUGUÊS nos Tribunais Cíveis de Lisboa pedindo a sua condenação a pagar-lhe determinada importância ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.

A acção foi distribuída ao 7º Juízo Cível da Comarca de Lisboa que se declarou absolutamente incompetente, por entender que o litígio devia ser julgado na jurisdição administrativa.

O requerente requereu a remessa do processo para o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que também se declarou incompetente para conhecer a acção.

Perante o conflito negativo de jurisdição requer que este Tribunal decida a questão da competência.

Ouvidas as partes e colhidos os vistos foi o processo submetido ao Tribunal de Conflito para julgamento da questão da competência.

2. Fundamentação

2.1. Matéria de facto

Os factos e ocorrências processuais relevantes para o julgamento da questão da competência, são os seguintes:

a) O A……………. SA, instaurou uma acção declarativa de condenação sob a forma sumária contra o Estado Português, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 26.450,00, ou seja, o valor estimado de uma viatura declarada perda a favor do estado, na data em que transitou em julgado a decisão do STJ que pôs termo a acção onde essa perda foi declarada.

b) A causa de pedir, segundo alega a autora é a seguinte:

“(…)

31. Assim, a fls. 204 da Sentença (11435 do processo) é declarada perdida a favor do Estado a viatura de matrícula ……….., que, por ter transitado em julgado (bem como os respectivos acórdãos” sanou as nulidades de que padecia por omissão de notificação da Autora impedindo-a, sequer, de lançar mão do Recurso Extraordinário (porquanto nenhum “facto” novo” poderia ser trazido ao processo, que os conhecia desde a intervenção da Autora em 2010.

32. Demonstrado o dano da Autora, resta-lhe expor o seu pedido e a sua causa de pedir.

33. O pedido é a condenação do Estado na reparação do dano causado, que é ter declarado perdido a favor do Estado uma viatura que era propriedade da Autora.

34. Essa “perda” aconteceu (oficialmente) no dia 12 de Dezembro de 2012 (data do trânsito do Ac. do STJ (de acordo com o Doc. 9).

35. Nessa altura a viatura valeria – de acordo com as cotações usadas no meio comercial – cerca de € 26.450,00 (doc. 12).

36. Pelo que o pedido é a condenação do Estado no pagamento à Autora desta quantia.

37. A causa de pedir, por falta de outros meios de reacção, é o enriquecimento sem causa (art. 473º ss do Código Civil).

38. Por um lado, perante o trânsito em julgado do Ac. do STJ, a Autora não tem meio de reacção naqueles autos.

39. A reacção extraordinária através de recurso extraordinário junto do STJ está vedado ao insucesso porquanto não há factos novos a carrear para os autos (doc. 13 sentença e AC).

39. Resta o instituto (residual) do enriquecimento sem causa.

41. O Estado enriqueceu com a declaração de perda a seu favor da viatura.

42. A Autora ficou mais pobre ao ver o seu património diminuído pela perda a favor do Estado da viatura que havia adquirido e dado em locação, mas que sempre foi sua propriedade.

43. Este enriquecimento não tem causa justificativa.

44. A situação criada consubstancia ainda uma múltipla inconstitucionalidade, a apreciar por Vossa Excelência.

45. Por um lado viola o princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado, por não permitir, em termos de igualdade, a defesa e participação em processo judicial de pessoa que por ele é afectado (art. 13º da CRP).

46. Por outro, viola o direito ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva previsto no art. 20º da CRP, por ter negado a um potencial “lesado” por uma decisão o exercício do seu direito de defesa.

47. Viola ainda o art. 62º da CRP, por não ter sido respeitado o direito de propriedade privada da Autora, sendo esta vítima de um verdadeiro “esbulho”.

(…)”

d) O pedido formulado foi o seguinte:

“(…)

A) Ser o Estado condenado a pagar à Autora a quantia de € 26.450,00, valor estimado da viatura declarada perdida a favor do Estado na data do trânsito em julgado do AC STJ que pôs termos à acção.

B) Deverá ainda o Estado ser condenado no pagamento de custas, procuradoria e o que mais legal for.

(…)”.

e) O MP, em representação do Estado Português contestou invocando, além do mais, a incompetência material dos tribunais judiciais.

f) O Tribunal judicial (7º Juízo Cível de Lisboa) considerou-se incompetente em razão da matéria, por decisão transitada em julgado.

g) O TAC de Lisboa considerou-se também incompetente em razão da matéria, por decisão transitada em julgado.

2.2. Matéria de Direito

2.2.1. Questões a decidir

Importa saber qual a jurisdição competente para julgar o litígio entre a autora e o Estado Português.

Como é entendimento generalizado deste Tribunal de Conflitos a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”- MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 91 e acórdãos do Tribunal de Conflitos de 4-7-2006, proc. 11/2006, de 26.9.96 (Ap. D.R., p. 59), 27.2.02, procº. n° 371/02, 9.3.04, proc.° n° 4/03, 23.9.04, proc.° n° 5/04, Acs. do STA de 12-01-88, proc.° n.° 24.880, in Ap. D.R., p. 106 e do STJ de 6-06-78, in BMJ, 278, 122. No mesmo sentido ver ainda o Ac. do STJ de 14-5-2009, proc. 09S0232, sublinhando todavia que o tribunal, apesar de atender apenas “aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada (causa de pedir e pedidos) não está vinculado às qualificações jurídicas do autor”.

Importa, pois caracterizar e qualificar a pretensão da autora, que, na presente acção, pede a condenação do Estado Português a pagar-lhe o valor estimado de um veículo que foi declarado perdido a favor do Estado, invocando como causa de pedir (segundo as suas palavras) o instituo do enriquecimento sem causa, “por falta de outros meios de reacção”.

2.2.2. Posição do Tribunal Judicial

O Tribunal Cível enquadrou a pretensão da autora no seguinte quadro:

“(…)

Ora, assentado a presente acção, não numa actuação do Estado-Tribunal emergente da decisão tomada por um tribunal criminal – que o Autor parece não pretender pôr em causa - mas antes no facto subsequente à mesma do Estado Administração ter visto o seu património enriquecido à custa do Autor, sem causa justificativa e sem qualquer contrapartida, afigura-se-nos dever a competência ser deferida, nos termos da regra geral acima enunciada, aos tribunais administrativos.

Na verdade, por força da interpretação da pretensão do Autor e pela forma como este configura a acção, conclui-se tratar-se de uma questão emergente da responsabilidade civil extracontratual do Estado, ainda que por referência ao instituto do enriquecimento sem causa, aproximando-se assim mais da responsabilidade extracontratual de actos imputáveis a uma pessoa colectiva pública, os quais devem ser apreciados pelos tribunais administrativos.

(…)”

2.2.3. Posição do Tribunal Administrativo

Por seu turno o Tribunal Administrativo declinou a competência enquadrando a pretensão da autora em termos diversos:

“(…)

Resultado do pedido e causa de pedir, tal como vêm configurados na Petição Inicial, que a Autora pretende ser ressarcida pelos danos causados pela sentença proferida no referido Processo 86/08.0GBOVR, consubstanciado no valor (estimado) do veículo à data do trânsito em julgado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que a confirmou, o presente litígio está excluído do âmbito da jurisdição administrativa, nos termos da al. a) do n.º 3, do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que exclui do âmbito da jurisdição administrativa as acções de responsabilidade por acto da função jurisdicional fundada em erro judiciário cometidos por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, pertencendo a competência material aos tribunais judiciais (art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).

(…)”

2.2.4.Delimitação (interpretação) da pretensão da autora.

Das posições em confronto verifica-se que o Tribunal Cível declinou a competência por entender que o enriquecimento sem causa, neste caso, tinha como fundamento não a sentença que declarou o veículo perdido a favor do Estado mas um “facto subsequente”, afastando desse modo a ideia (defendida no Tribunal Administrativo) de que o facto gerador da pretensão da autora era a sentença (mais tarde confirmada pelo STJ) que declarou o veículo perdido a favor do Estado.

A nosso ver a pretensão da autora não tem a sua causa na responsabilidade civil. Não é, portanto, exacta a tese do Tribunal Cível quando diz que estamos perante uma responsabilidade civil por referência ao enriquecimento sem causa. Mas também não é exacto que a causa de pedir se fundamente num erro judiciário. O erro judiciário é um dos modos em que se manifesta o facto ilícito gerador da responsabilidade civil emergente do exercício da actividade jurisdicional.

Daí que, a nosso ver, o enquadramento jurídico da pretensão da autora (responsabilidade civil, por um lado e erro judiciário, por outro) não seja exacta.

Vejamos então qual o enquadramento jurídico da pretensão da autora.

A autora fundamenta a sua pretensão no enriquecimento sem causa pois, embora considere que as decisões judiciais não deveriam ter declarado a perda do veículo a favor do Estado, entende que nada pode fazer contra tais decisões. Não pretende, por outro lado, demonstrar a ilicitude da decisão que declarou a perda a favor do Estado, nem enquadra a acção nesse âmbito, desde logo porque tal responsabilidade tem requisitos especiais que a autora reconhece não existirem. É o caso do requisito previsto no art. 13º, 2, da Lei 67/2007, de 31/12, segundo o qual “o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”. A autora pretende ser ressarcida do valor do veículo apesar da decisão que declarou a sua perda se manter válida na ordem jurídica.

Portanto, a questão que se coloca – neste momento – é saber qual a jurisdição competente para apreciar uma pretensão de restituição de um determinado valor por força do enriquecimento sem causa, enquanto fonte de obrigações, autónomo relativamente a qualquer outro.

2.2.5. Questão da competência face à pretensão da autora.

A demarcação da jurisdição dos Tribunais Administrativos e Judiciais é feita, em geral, a partir da natureza da relação jurídica objecto do litígio. Os Tribunais Administrativos são competentes para apreciar litígios emergentes de relações jurídicas administrativos, como nos diz o art. 212º, 3 da CRP: “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.

Contudo, esta regra geral sofre algumas excepções expressamente previstas no art. 4º, n.ºs 2 e 3 do ETAF.

Impõe-se, assim, saber se a relação jurídica material – objecto da presente acção – é uma relação jurídica administrativa e, caso seja esse o caso, se, não obstante, a lei (máxime o ETAF) exclui a competência dos tribunais administrativos.

2.2.6. Natureza administrativa da relação jurídica material.

Julgamos que a relação jurídica objecto desta acção (enriquecimento sem causa) tem a natureza administrativa.

O enriquecimento sem causa está, actualmente, previsto no CPTA como um dos litígios que seguem a forma da acção administrativa comum – art. 37º, 2, al. i) do CPTA. Esta previsão mostra que o legislador entende que pode haver situações de enriquecimento sem causa, cuja relação jurídica deva ser qualificada como uma relação jurídica administrativa.

O enriquecimento sem causa será uma relação jurídica administrativa se a actividade prosseguida pela Administração, através da qual viu o seu património enriquecido à custa do património do empobrecido, for uma actividade no exercício do Direito Público.

No caso da actividade que gerou o enriquecimento não ser uma actividade no exercício do Direito Público, então, essa relação jurídica não é uma relação jurídica administrativa.

A esta luz a actividade prosseguida pelo Estado, no âmbito de um processo judicial é indiscutivelmente de Direito Público e, portanto, a relação jurídica através da qual a autora pretende ver reconhecido um direito de crédito (ser-lhe restituída a quantia com que o Estado enriqueceu sem causa) é uma relação jurídico-administrativa.

2.2.7. Não integração do litígio na exclusão prevista no art. 4º, n.º 2 e 3, do ETAF.

Estando em causa uma relação jurídico-administrativa o litígio que dela emerge só não caberá aos Tribunais Administrativos se a jurisdição administrativa for afastada por alguma das alíneas do art. 4º, 2 e 3 do ETAF, ou por qualquer outra Lei especial.

Lei especial a excluir a competência dos Tribunais Administrativos, para este tipo de casos, não existe.

Por outro lado, e como facilmente se conclui o presente litígio não tem por objecto a impugnação de actos ou decisões, portanto, não cabe em qualquer das alíneas do art. 4º, n.º 2 do ETAF. Este preceito exclui da jurisdição administrativa litígios impugnatórios de actos, como decorre do corpo do n.º 2: “… apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de: a) actos praticados (…); b) Decisões (…); actos relativos (…);”.

O presente litígio também não se inclui em qualquer das alíneas, b), c) e d) do n.º 3 do mesmo art. 4º, do ETAF por razões óbvias, pois não está em causa qualquer das entidades referidas nas alíneas b) e c), nem uma relação emergente de um contrato individual de trabalho.

Poderia apenas discutir-se a inclusão do litígio no âmbito da alínea a) do art. 4º, n.º 3 do ETAF, ou seja, no âmbito das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais de outra jurisdição (tese do Tribunal Administrativo).

Mas, como já vimos, não é desse tipo ou dessa natureza a presente acção. A autora não invocou o erro judiciário como fundamento de uma acção de responsabilidade, na medida em que, desde logo, não funda a acção na “prévia revogação da decisão danosa” (art. 13º, n.º 2, da lei 67/2007, de 31/12). A autora não invoca esse fundamento, precisamente, porque a seu ver já nada pode fazer para revogar a decisão danosa. É, de resto, por não poder lançar mão dos mecanismos que poderiam levar à revogação da decisão danosa que a autora se socorre do “enriquecimento sem causa”. Ou seja, a acção tal como a autora fórmula a sua pretensão não tem a sua causa no erro judiciário.

2.2.8. Conclusão

Do exposto decorre que, estando em causa uma relação jurídica administrativa (exercício da actividade judicial) e não havendo exclusão da jurisdição administrativa, é esta a competente para apreciar o litígio que dela emerge.

3. Decisão

Face ao exposto, acordam no Tribunal de Conflitos em declarar competente para julgar a presente acção a jurisdição administrativa.

Sem custas.

Lisboa, 17 de Setembro de 2015. – António Bento São Pedro (relator) - Fernanda Isabel de Sousa Pereira – Teresa Maria Sena Ferreira de SousaAntónio da Silva Gonçalves – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – João Carlos Pires Trindade.