Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:046/14
Data do Acordão:11/20/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:LEONES DANTAS
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Sumário:I – A acção de reivindicação, prevista no artigo 1311.º do CC destina-se a afirmar o direito de propriedade e a pôr fim à situação decorrente de actos que o violem, visando, primeiramente, a declaração de existência do direito e, posteriormente, a sua realização, integrando por tal motivo dois pedidos: o de reconhecimento do direito e o de restituição da coisa, objecto desse direito;
II – As acções de reivindicação são, pois, acções reais, não se confundindo com as acções obrigacionais em que se exerça a responsabilidade civil extracontratual, nomeadamente, a derivada dos actos lesivos do direito de propriedade que integrem a causa de pedir daquelas acções;
III – Incumbe aos Tribunais Judiciais o julgamento de acções de reivindicação fundadas no artigo do 1311.º do Código Civil, em que, para além do reconhecimento do direito de propriedade sobre um imóvel e da restituição do mesmo, se peça também, alternativamente, para o caso de esta restituição não ser possível, o pagamento de uma indemnização pela perda definitiva daquele imóvel.
Nº Convencional:JSTA000P18244
Nº do Documento:SAC20141120046
Data de Entrada:09/12/2014
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DA GRANDE LISBOA - NOROESTE SINTRA - JUIZ 2 DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL - 1 SECÇÃO E A UNIDADE ORGÂNICA 4 DO TAC DE LISBOA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:
I

1 – A………………., invocando o disposto no n.° 1 do artigo 109°, n.°s 1 e 3 do artigo 110°, ambos do C.P.C. e o n.° 1 do artigo 59.° do D.L. n.° 19.243 de 16/01/1931, veio requerer a RESOLUÇÃO DO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, entre a 1ª Secção - Juiz 2, do Juízo de Grande Instância Cível de Sintra da Comarca da Grande Lisboa - Noroeste (extinta) e a Unidade Orgânica 4 do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Invocou como fundamento da sua pretensão o seguinte:
«1 - A ora Requerente intentou, primitivamente, junto dos Tribunais Judiciais uma acção declarativa de condenação com processo ordinário, que correu termos sob o n.° 22697/11.6T2SNT pela 1.ª Secção - Juiz 2 da Grande Instância Cível de Sintra integrante da Comarca da Grande Lisboa - Noroeste (extinta), contra o Município de Mafra, alegando em síntese que:
i) É proprietária de um prédio urbano sito no lugar de Cabeços, freguesia e concelho de Mafra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.° 1058 e inscrito na matriz cadastral sob o art.° 844 da referida freguesia.
ii) O Município de Mafra, ali Réu, aprovou e emitiu o Alvará de Licença de Construção n.° 9 810/2001 de 30 de Maio relativo à construção de um edifício multifamiliar destinado a habitação e comércio, incluindo estacionamentos e arrecadações, a pedido da firma B…………………, Ld.ª
iii) Da referida certidão camarária constava que a construção dos edifícios projectados e constantes do Processo de Obra OP – 41/2001 ocorreria após a demolição das construções existentes no local e implantadas nos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob os n.°s 27388 a fls. 131 e 27389 a fls. 132 ambos do Livro B - 73 e 03796, inscritos na matriz predial urbana sob os artigos 842 e 843 e na matriz cadastral rústica sob o artigo 50 - Secção M (pendente de alteração) da freguesia de Mafra.
iv) Da referida certidão constava, ainda, a integração no domínio público de 858 m2 de terreno sendo 530 m2 a retirar do prédio inscrito sob o artigo 50 - Secção M; 18 m2 a retirar do prédio inscrito sob o artigo 843 e 310 m2 a retirar do prédio inscrito sob o artigo 842.
v) Confrontando as referidas plantas concluiu a Requerente, ali Autora, que o seu prédio estava integralmente ocupado com passeios, zonas verdes com floreiras, estacionamento automóvel, pavimento em betuminoso e passeios em pavimento tendo o Município de Mafra, ali Réu, ocupado e integrado no domínio público a totalidade do prédio da Requerente.
vi) A Requerente, ali Autora, nunca foi interpelada relativamente a tal ocupação e encontra-se privada da sua propriedade não tendo sido emitida, no âmbito do invocado licenciamento, Declaração de Utilidade Pública com vista a expropriação.
2 - Em consequência a Requerente pugnou pela procedência da acção e a condenação do Município de Mafra:
A) No reconhecimento do direito de propriedade da Requerente sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.º 01058 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 844 da freguesia de Mafra
B) Na restituição à Requerente da totalidade da área que ocupa e que pertence ao referido prédio no estado em que este se encontrava
Ou, não sendo tal restituição possível atento o princípio da “intangibilidade da obra pública” e o disposto no n.° 2 do art° 202° e n.° 2 do art° 1311°, ambos do C.C.
C) No pagamento de uma indemnização pela privação definitiva do prédio correspondente ao valor real e corrente deste de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal a determinar em execução de sentença.
D) No pagamento de uma indemnização pelos prejuízos decorrentes da ocupação abusiva do prédio desde a emissão do alvará de loteamento e enquanto tal ocupação não cessar - cfr. certidão judicial da petição inicial e documentos que se junta como doc. n.º 1
3 - No âmbito da referida acção foi proferida sentença, transitada em julgado, que julgou procedente a excepção de incompetência material por entender ser o objecto da presente acção para o conhecimento da totalidade do pedido, exclusivamente, do foro administrativo tendo, em consequência, considerado o foro cível incompetente em razão da matéria absolvendo o Município de Mafra da instância - cfr. certidão da sentença proferida pelo Juízo de Grande Instância Cível de Sintra nos autos de acção com processo ordinário n° 22697/11.6T2SNT que se junta como doc. n.° 2.
4 - Em consequência de tal decisão a Requerente intentou nova e idêntica acção junto dos Tribunais Administrativos (inicialmente junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra com remessa posterior, por incompetência territorial, para o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa) onde correu termos sob o n.° 90/13.6BESNT junto da U.O. 4 - cfr. certidão judicial junta como doc. n° 1.
5 - Por douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, transitada em julgado, foi decidida a incompetência absoluta do Tribunal Administrativo quanto aos pedidos formulados pela Requerente em A), B) e C) da petição inicial absolvendo, em consequência, o Município de Mafra - cfr. certidão judicial que se junta como doc. n° 3.»
Terminou pedindo «a resolução do Conflito Negativo de Jurisdição entre a 1ª Secção do Juízo de Grande Instância Cível integrante da Comarca da Grande Lisboa - Noroeste (extinta) e a 4ª U.O. do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa declarando e atribuindo quem tem competência para o conhecimento dos pedidos formulados pela Requerente em A), B) e C) da petição inicial no âmbito da acção judicial instaurada contra o Município de Mafra.»

2 – O Tribunal Judicial da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, onde a acção foi primeiramente instaurada, declarou-se incompetente para conhecer da mesma, fundamentando-se, em síntese, no seguinte:

«III. DA EXCEPÇÃO DE INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA.
(…)
O conflito que cabe dirimir insere-se, em nosso entender, no âmbito da competência dos Tribunais Administrativos, nos termos dos preceitos legais citados.
O acto praticado pelo Réu em que a mesma funda a sua pretensão - a aprovação e emissão do Alvará de Licença de Construção n.° 810/2001, de 30 de Maio desse ano, relativo a construção de um edifício multifamiliar destinado a habitação e comércio, incluindo estacionamentos e arrecadações, a pedido da sociedade B………………, Lda. (cfr. artigo 2° da petição inicial) - tem, claramente, natureza administrativa.
O objecto da presente acção consiste, pois, em averiguar em que medida tal acto administrativo, e a subsequente e alegada ocupação do prédio da Autora com espaços integrados no domínio público, consubstanciou a violação do direito de propriedade da ora Autora, e se assiste à Autora o direito a ser restituída à posse do terreno, ou a indemnização compensatória.
Competente para apreciar o pedido formulado é, consequentemente, em nosso entender, e sempre ressalvado o muito e devido respeito por entendimento diverso, de acordo com o supra exposto, o foro administrativo, quer no que respeita ao pedido e causa de pedir apresentados pela Autora, como à eventual acção de regresso do Município para com o interveniente.
***
IV. DECISÃO.
Em face do exposto, e ao abrigo dos citados preceitos legais, decido julgar procedente a excepção de incompetência material e, em consequência, o juízo de Grande Instância Cível do Tribunal da Grande Lisboa Noroeste incompetente em razão da matéria para conhecer dos presentes autos, e, em consequência, absolvo o Réu Município de Mafra, da instância, cessando, consequentemente, nesta sede, a intervenção da Interveniente acessória.
Custas pela Autora - artigo 446°, n°s 1 e 2 do Código de Processo Civil.»

3 – Por sua vez, na Jurisdição Administrativa, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa declarou-se igualmente incompetente para conhecer da acção, com a seguinte fundamentação:

«Como se decidiu no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 26 de Setembro de 2013, relativo ao Processo 032/13 “Os tribunais comuns são os competentes para apreciarem uma acção de reivindicação em que se pede a restituição de uma parcela de terreno ocupada abusivamente por um particular e a restituição de outra cedida inicialmente com vista à efectivação de um loteamento no qual posteriormente a interessada cedente deixou de ter qualquer interesse.” E explica-se naquele Acórdão: Residualmente, os tribunais judiciais têm competência para conhecer das causas que não sejam legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional (n.° 1 do artigo 211.º da Constituição (CRP) e artigos 66.º do CPC e 18.71 da LOFFJ, aprovada pela Lei n°3/99, de 13 de Janeiro),
Importa, assim, verificar se o caso cabe no âmbito da competência dos tribunais administrativos, de acordo com o critério do n° 3 do artigo 212º da CRP, reproduzido no ETAF, ao estipular no seu artigo 10 nº 1 que “Os tribunais da ordem administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. E, na medida em que a relação material controvertida também emerge de acordo celebrado entre as partes, quanto a uma das fracções, e de meros actos materiais por parte do R. MAP, quanto à outra, tem interesse considerar a densificação daquele critério geral exemplificada no artigo 471/f), g) e i) do ETAF, segundo o qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos “especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo” e à “Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público” e “dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito publico”. (...)
De acordo com o disposto no n° 1 do artigo 211.º da CRP, (idêntica redacção tem n.° 1 do art. 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.° 3/99, de 13.1 o art. 66º do CPC.) “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” e nos termos do artigo 212.º, n.º 3, (No mesmo sentido o art. 1º. n.° 1, do ETAF.) “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”. O conceito de relação jurídica administrativa é, assim, erigido, tanto pela Constituição como pela lei ordinária, como operador nuclear da repartição de jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais. O âmbito da jurisdição administrativa encontra-se no art. 4.º do ETAF (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.2, alterada pela Lei n.° 10/D/2003, de 31.12) onde se diz que compete aos tribunais administrativos “a apreciação de litígios que tenham por objecto” as situações a seguir enunciadas, sendo que o decisão recorrida identificou as alíneas f) (Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público) e g) (Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa) como suporte da atribuição da competência à jurisdição administrativa.
Importa separar a apreciação referente a ambas as fracções.”
No Acórdão do Tribunal de Conflitos de 16 de Fevereiro de 2012, relativo ao processo 020/11 decidiu-se que “Os tribunais comuns são os competentes para conhecer de uma acção de reivindicação instaurada ao abrigo do artigo 1311º do Código Civil, onde se peticiona a condenação do réu a reconhecer o direito de propriedade do autor sobre determinado terreno que havia sido objecto de acto expropriativo judicialmente declarado nulo e a consequente restituição desse terreno ao autor.
O tribunal competente para conhecer do pedido acessório (fixação de uma sanção compulsória desde a data da declaração de nulidade do acto expropriativo até à entrega do bem reivindicado ou pagamento de uma indemnização substitutiva), cumulado com os pedidos de reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre determinando terreno, é o mesmo que é competente para conhecer o pedido principal.”
No Acórdão Tribunal de Conflitos de 9 de Junho de 2010, relativo ao processo 012/10 decidiu-se que “As acções de reivindicação são acções reais, que não se confundem com as acções obrigacionais em que se exerça a responsabilidade civil extracontratual.
Assim, a “reivindicatio” não cabe na previsão do artigo 4.º, n° 1, alínea g) do ETAF.
E, porque também não cabem em qualquer outra das previsões do mesmo artigo, as acções de reivindicação devem ser conhecidas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual nos termos do artigo 66° do C.P.C.”.
E explica-se naquele Acórdão: "Com efeito, as acções de reivindicação são reais, o que imediatamente as distingue das acções de responsabilidade civil, que têm natureza obrigacional. A devolução da coisa, pedida pelo «dominus» que a reivindica, não constitui uma qualquer indemnização «in natura», mas a lógica consequência da sequela, que é um atributo característico dos direitos reais. E nem sequer é exacta outra tese do acórdão - a de que a «reivindicatio» visa «a reposição no estado anterior ao acto ofensivo do direito» de propriedade; pois a reivindicação tem por fim típico a devolução da coisa no seu estado actual, pedido a que poderá acrescer um outro, que será de ressarcimento, se esse estado for pior do que era antes por responsabilidade do detentor. É desnecessário aduzir mais argumentos, ante a evidência de que a acção dos autos, enquanto acção de reivindicação, é alheia a uma qualquer responsabilidade extracontratual do réu. Donde se segue que a premissa menor de silogismo judiciário enunciado no acórdão «sub censura» é falsa, inquinando a respectiva conclusão.
Ora, não há no ETAF uma norma que atribua competência à jurisdição administrativa para o conhecimento de acções de reivindicação («vide», a propósito, o seu artigo 4°). Solução que bem se compreende, pois o que nelas, essencialmente se discute é a questão, puramente de direito privado, de saber se o direito real invocado pelo «dominus» existe e é oponível ao réu, por forma a tirar-lhe a detenção da coisa; e só acidentalmente se colocará um problema ligado ao direito público – se o detentor se socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a sua detenção.
Consequentemente, é de concluir que a competência «ratione materiae» para conhecer da presente acção de condenação cabe, a título residual, aos tribunais comuns.”
A jurisprudência citada é pertinente em face do que se estatui no actual C.P.C. cujo artigo 64° estatui que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”
Assim, relativamente ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.° 01058 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 844 da freguesia de Mafra e ao pedido de restituição à autora da totalidade da área que o município de Mafra ocupa daquele prédio o Tribunal, porque constituem pedidos de reivindicação da propriedade e da posse de prédio urbano, o Tribunal Administrativo é incompetente em razão da matéria.
Quanto ao pedido indemnizatório que a autora formula em C) segundo o qual não sendo a peticionada restituição da propriedade e da posse possível atento o princípio da “intangibilidade da obra pública” e o disposto no n.º 2 do artigo 202.º e n.º 2 do artigo 1311.º ambos do Código Civil, deverá o município de Mafra ser condenado no pagamento de uma indemnização à autora pela privação definitiva do prédio correspondente ao valor real e corrente deste de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal a determinar em execução de sentença. Este pedido é ainda um pedido acessório daqueles outros dois primeiros pedidos, que se reconduz no fundo à inexistência de expropriação.
Relativamente pois aos pedidos formulados pela autora em A), B) e C) o Tribunal Administrativo é incompetente em razão da matéria.
(…)
Pelo exposto, e com fundamento na incompetência absoluta do Tribunal absolvo da instância o município de Mafra quanto aos pedidos formulados em A), B) e C) da petição inicial.
Registe e notifique.»

Neste Tribunal, o Exm.º Magistrado do Ministério Público proferiu parecer pronunciando-se no sentido da resolução do conflito com a atribuição da competência para conhecer da acção aos Tribunais Judiciais.

Em preparação da deliberação foi distribuída electronicamente aos Exm.ºs Juízes Adjuntos cópia do projecto do presente acórdão.
II

Resulta do artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República (CRP), que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Por outro lado, resulta do artigo. 212.º, n.º 3, daquele diploma que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os «litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
A competência dos Tribunais administrativos e Fiscais veio a ser concretizada no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 17 de Fevereiro (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, com as alterações decorrentes da Lei n.º 20/2012, de 14/05; da Lei n.º 55-A/2010, de 31/12; do DL n.º 166/2009, de 31/07; da Lei n.º 59/2008, de 11/09; da Lei n.º 52/2008, de 28/08: da Lei n.º 26/2008, de 27/06; da Lei n.º 2/2008, de 14/01; da Lei n.º 1/2008, de 14/01; da Lei n.º Lei n.º 107-D/2003, de 31/12; da Lei n.º 4-A/2003, de 19/02 e objecto da Rectificação n.º 18/2002, de 12/04 e da Rectificação nº 14/2002, de 20/03.), no quadro das normas constitucionais acima citadas, reafirmando-se no n.º 1 do artigo 1.º daquele diploma que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, tal como referem J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, deve ter-se presente que «esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal» (Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p. p. 566 e 567.).
Por sua vez, resulta do artigo 64.º do Código de Processo Civil que «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Conforme ensina MANUEL DE ANDRADE, a propósito dos elementos relevantes para a determinação da competência para conhecer de determinado litígio, «são vários esses elementos também chamados índices de competência (CALAMANDREI). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes)» (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p.p. 90 e 91.).
Prosseguia aquele autor, referindo que «a competência do tribunal – ensina REDENTI, “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes» (Ibidem.).
Deste modo, é a partir da análise da forma como o litígio se mostra estruturado na petição inicial que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento do mesmo.
Foi também neste sentido que se fixou a jurisprudência deste Tribunal, conforme pode ver-se, entre outros, no acórdão de 12 de Janeiro de 2010, proferido no processo n.º 1337/07.3TBABT.E1.S, da 1.ª secção, onde se refere «como se deixou já dito e se decidiu no Ac. deste S.T.J. de 13/3/2008, (...) “Para decidir a matéria da excepção, da incompetência material há que considerar a factualidade emergente dos articulados, isto é, a causa pretendi e, também o pedido nos precisos termos afirmados pelo demandante” e mais adiante” no fundo, o que sucede com a competência do tribunal, sucede também com outros pressupostos processuais (legitimidade, forma de processo), ou seja, é a instância – no seu primeiro segmento consubstanciado no articulado inicial do demandante – que determina a resolução desses pressupostos”» (Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.).
Será, portanto, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial, nomeadamente da causa de pedir e do pedido, que teremos de encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente acção.
III

1 - Tal como resulta da petição inicial apresentada, a Autora pediu a condenação do Réu no seguinte:
«A) No reconhecimento do direito de propriedade da A. sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.º 01058 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 844 da freguesia de Mafra
B) Na restituição à A, da totalidade da área que ocupa e que pertence ao referido prédio no estado em que este se encontrava. Ou, não sendo tal restituição possível atento o princípio da “intangibilidade da obra pública” e o disposto no nº 2 do artº 202º e nº 2 do artº 1311º, ambos do C.C.
C) No pagamento de uma indemnização à A. pela privação definitiva do prédio correspondente ao valor real e corrente deste de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal a determinar em execução de sentença.
E sempre
D) No pagamento de uma indemnização à A. pela privação pelos prejuízos decorrentes da ocupação abusiva do prédio desde a data de emissão do alvará de licença de construção - Maio de 2002 - e enquanto essa ocupação não cessar seja com a restituição do prédio ou com a sua aquisição igualmente a determinar em execução de sentença
E) Na condenação em custas.»

Resulta igualmente daquela petição que a Autora fundamentou de Direito os pedidos formulados no disposto no artigo 1311.º do Código Civil.

2 - Este Tribunal dos Conflitos tem sido inúmeras vezes chamado a resolver conflitos análogos àquele que se verifica no presente processo, podendo considerar-se que existe já jurisprudência estabilizada sobre as questões suscitadas.
Referiu-se, com efeito, no acórdão proferido no Conflito n.º 013/14, datado de 19-06-2014 (Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.), o seguinte:
«O presente conflito é análogo aos que foram resolvidos por este Tribunal em 09.6.2010, no processo nº 12/10, em 26.9.2013, no processo n.º 32/13, e em 18.12.2013, no processo n.º 18/13.
Também aí estavam em causa acções de reivindicação de propriedade, em moldes idênticos aos que se colocam nos presentes autos.
Concorda-se com a solução a que se chegou nesses processos. Por isso, por facilidade, remete-se para a fundamentação neles apresentada, destacando-se o seguinte trecho do acórdão datado de 18 de Dezembro 2013:
«Salvo o devido respeito pela opinião em contrário, não se nos oferecem dúvidas que o desenho da causa de pedir e dos pedidos apresentados pelos autores quadram, perfeitamente, no âmbito da acção de reivindicação, contemplada no art. 1311.º do Código Civil (CC).
Na verdade, os autores cingem-se a pedir que sejam declarados como donos e legítimos proprietários do imóvel identificado supra e, em consequência, a condenação do réu a restituir a parcela de terreno e o imóvel (o edifício onde funcionou a Escola ...) em causa, devoluto de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições, bem como as chaves do edifício em que está implantado no referido terreno. Ou seja, a questão a dirimir traduz-se em mera reivindicação de propriedade privada, não obstante uma das partes ter feição pública – o Município de Oeiras – [...].
Com efeito, a acção de reivindicação, prevista no art. 1311.º do CC, é uma típica manifestação do direito de sequela, visando afirmar o direito de propriedade e pôr fim à situação ou actos que o violem, tendo como primeiro objectivo a declaração de existência do direito e, como escopo ulterior, a sua realização, nela concorrendo dois pedidos: o de reconhecimento do direito e o de restituição da coisa, objecto desse direito. (Salientam Antunes Varela e Pires de Lima: “A acção de reivindicação prevista neste artigo [art. 1311.º] é uma acção petitória que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela” - cf. Código Civil Anotado, 2.ª edição, 1987, Volume III, pág. 112.)
Compete aos autores, nesta acção, provar que são proprietários, constituindo o facto jurídico de que emerge a propriedade a causa de pedir da acção de reivindicação, tendo eles de alegar, como o fizeram, que a coisa se encontra em poder do réu. Destarte, para a procedência da acção tornar-se-á necessária a comprovação, por um lado, de um requisito subjectivo, que consiste em serem os autores os proprietários da coisa reivindicada, e, por outro, de um requisito objectivo, consistente na identidade entre a coisa reivindicada e a (ilegitimamente) possuída pelo réu, cujo ónus da prova incumbe aos autores/reivindicantes, por serem factos constitutivos do seu direito – art. 342.º, n.º 1, do CC. Comprovada a propriedade do imóvel e que este se encontra detido por terceiro, a sua entrega ao reivindicante só pode ser contrariada com base em situação jurídica (obrigacional ou real) que legitime a recusa de restituição – cf. 1311.º, n.º 2, do CC –, i.e., mediante a alegação e prova, pelo demandado – por via de excepção –, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito e integradores de qualquer relação obrigacional ou real que o obstaculizem – cf. art. 342.º, n.º 2 do CC.»
(…)
E no acórdão proferido no processo nº 12/10 já se havia julgado, em termos igualmente transponíveis para o presente caso:
«Com efeito, as acções de reivindicação são reais, o que imediatamente as distingue das acções de responsabilidade civil, que têm natureza obrigacional. A devolução da coisa, pedida pelo «dominus» que a reivindica, não constitui uma qualquer indemnização «in natura», mas a lógica consequência da sequela, que é um atributo característico dos direitos reais. E nem sequer é exacta outra tese do acórdão – a de que a «reivindicatio» visa ‘a reposição no estado anterior ao acto ofensivo do direito’ de propriedade; pois a reivindicação tem por fim típico a devolução da coisa no seu estado actual, pedido a que poderá acrescer um outro, que será de ressarcimento, se esse estado for pior do que era antes por responsabilidade do detentor.
É desnecessário aduzir mais argumentos, ante a evidência de que a acção dos autos, enquanto acção de reivindicação, é alheia a uma qualquer responsabilidade extracontratual do réu. Donde se segue que a premissa menor do silogismo judiciário enunciado no acórdão ‘sub censura’ é falsa, inquinando a respectiva conclusão.
Ora, não há no ETAF uma norma que atribua competência à jurisdição administrativa para o conhecimento de acções de reivindicação (‘vide’, a propósito, o seu art. 4°). Solução que bem se compreende, pois o que nelas essencialmente se discute é a questão, puramente de direito privado, de saber se o direito real invocado pelo ‘dominus’ existe e é oponível ao réu, por forma a tirar-lhe a detenção da coisa; e só acidentalmente se colocará um problema ligado ao direito público – se o detentor se socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a sua detenção.
Consequentemente, é de concluir que a competência «ratione materiae» para conhecer da presente acção de condenação cabe, a título residual, aos tribunais comuns».
Conclui-se, assim, no quadro jurisprudencial exposto, totalmente aplicável ao caso dos autos, que incumbe aos tribunais judiciais o conhecimento da acção.»

Também no presente caso estamos perante uma típica acção de reivindicação, fundamentada no artigo 1311.º do Código Civil, em que é pedido o reconhecimento do direito de propriedade sobre um prédio, a restituição do mesmo, ou, alternativamente, a indemnização correspondente à privação desse prédio.
Em coerência com a jurisprudência acima referida, a jurisdição competente para conhecer do litígio que constitui o objecto do presente processo é a dos tribunais judiciais.
Na verdade, tal como emerge do pedido formulado pela Autora, com base na causa de pedir descrita na petição inicial apresentada, o litígio a resolver não decorre de uma relação jurídico administrativa enformada pelo direito administrativo, sendo um litígio a resolver com base no direito privado, não se inserindo, por esse motivo, na competência dos Tribunais Administrativos, tal como a mesma é definida nos artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002 de 17 de Fevereiro.

Na sequência da entrada em vigor da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), o Município de Mafra faz parte da nova comarca de Lisboa Oeste.
IV

Termos em que se acorda em julgar competente para conhecer da presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.

Sem custas.
Lisboa, 20 de Novembro e 2014. – António Leones Dantas (relator) – António Bento São Pedro – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – Ana Paula Lopes Martins Boularot – Jorge Artur Madeira dos Santos.