Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:08/05
Data do Acordão:04/06/2006
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ARTUR MOTA MIRANDA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO.
IRS.
ILISÃO DE PRESUNÇÃO.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS TRIBUTÁRIOS.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS.
Sumário:I - A competência é deferida aos Tribunais Tributários nos casos de acções ou recursos contenciosos que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas fiscais, de relações em que esteja em causa uma relação jurídico-tributária, uma relação estabelecida entre a Administração Tributária, agindo como tal, no exercício de competências no domínio tributário e as pessoas singulares ou colectivas e em que a questão a dirimir exija a aplicação e interpretação de normas de direito fiscal.
II - A questão de saber se determinadas quantias depositadas por uma sociedade numa conta de um sócio foram ou não adiantamento de lucros, não emerge de uma relação jurídica tributária.
III - Cabe aos tribunais comuns apreciar essa acção, mesmo que tenha em vista ilidir a presunção prevista no art.º 7º, n.º 4, do CIRS.
Nº Convencional:JSTA00062978
Nº do Documento:SAC2006040608
Data de Entrada:05/18/2005
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE OLIVEIRA DO HOSPITAL E O TAF
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC PRE CONFLITO.
Objecto:AC RC.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT.
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:CIRS88 ART7 N4 N5.
CCIV66 ART350 N2.
Jurisprudência Nacional:AC TC 452/03 DE 2003/10/14.
Referência a Doutrina:MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL PAG259.
ALBERTO DOS REIS CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO VIII PAG121 VII PAG349 - PAG365.
ANTUNES VARELA IN RLJ ANO 122 PAG218.
Aditamento:
Texto Integral: TRIBUNAL DOS CONFLITOS
Acordam no Tribunal de Conflitos
A... interpôs recurso de agravo para este Tribunal de Conflitos, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que, negando provimento ao agravo, confirmou a decisão proferida no Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Hospital que julgara o Tribunal incompetente em razão da matéria, por competentes os Tribunais Tributários e absolvera da instância o Réu Estado Português.
Nas suas alegações de recurso formulou as seguintes conclusões:
1) Tendo o Tribunal Constitucional decidido, com trânsito em julgado, no Acórdão n.° 452/2003, em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto pela ora recorrente, de uma decisão do S.T.A. (coisa que não importa minimamente) que a norma do art. 7°, n.° 4 e 5 do CIRS não é inconstitucional na medida em que permite que o interessado obtenha uma decisão judicial (onde pode produzir todos os meios de prova em direito admissíveis) emitida pelos tribunais judiciais, através da qual pode no processo de impugnação judicial tributária impugnar a presunção estabelecida no n.° 4 do art 7º do CIRS, não podia o acórdão da Relação vir decidir no sentido em que o fez, julgando incompetente o Tribunal comum para emitir essa decisão, não admitindo, por essa via, o exercício do direito de acção funcionalizado àquele fim perante os tribunais comuns.
2) O acórdão da relação desconhece erraticamente que existem acções judiciais instrumentais para a decisão de outras acções relativas a questões emergentes de relações jurídicas administrativas ou tributárias, cuja apreciação cabe a outras jurisdições, como está previsto no art. 4°, n.° 2 do ETAF (aliás o mesmo se poderá passar no processo penal — art. 7°, n.° 2 do C.P.P.) fazendo, por essa razão, tábua rasa do acórdão do Tribunal Constitucional.
3) E que a competência para apreciação dessas acções instrumentais pode caber aos tribunais comuns se essa relação instrumental for de direito comum, civil ou comercial, como é o caso e foi julgado pelo acórdão do Tribunal Constitucional.
4) De resto, o julgado do Tribunal Constitucional não faz mais do que postar-se numa linha legislativa histórica, de cuja existência e sentido a recorrente deu conta nas conclusões para a Relação, acima transcritas, mas cuja bondade esta não se deu ao trabalho de rebater como, mais grave as interpretou de forma distorcida, acabando por determinar um objecto de recurso diferente do que nela se erigiu a questão a decidir por ela.
5) A interpretação do art. 7°, n.° 4 e 4 do CIRS e dos artigos 66°, 101º a 103°, 105°, 288°, n.° 1, al. a), 493º, n.° 2 e 494°, al. a) do C.P.C., no sentido de a recorrente não ter acesso a um meio processual nos tribunais comuns, quando está definitivamente julgado não dispor desse meio na jurisdição que a sentença recorrida considera competente, no qual possa fazer valer os seus direitos de demonstrar mediante o uso de toda a prova admissível em direito, entre ela se contando a prova testemunhal e documental, que não recebeu os rendimentos presumidos fiscalmente é rotundamente inconstitucional por violação da garantia de acesso aos Tribunais consagrada no art. 20° da C.R.P..
6) O acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que, em execução do Acórdão do Tribunal Constitucional, ordene o prosseguimento dos autos para o conhecimento do mérito da acção, pressupondo-se a competência dos tribunais judicias para emitir a decisão.
Em contra alegações, o R. Estado, representado pelo Ex.mo Magistrado do M° P°, considerando estar pedida a ilisão da presunção estabelecida no art. 7º, n.° 4 do CIRS, defende a improcedência do recurso, com confirmação do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir as questões suscitadas pela recorrente nas conclusões das suas alegações, sabido que são elas que delimitam o objecto dos recursos, salvo quanto às questões de conhecimento oficioso (cf. art. 684°, n.° 3 e 690°, n.° 1 do C.P.C. e Rodrigues Bastos em Notas ao Cód. de Proc. Civil, vol. 3, pág. 228).
Assim, a questão a resolver reconduz-se a uma questão de competência em razão da matéria e consiste em saber se a competência cabe, como decidido no acórdão recorrido aos Tribunais Tributários ou se, como defende a recorrente, incumbe ao Tribunal Comum, o Tribunal Judicial de Oliveira do Hospital.
Sabe-se que as causas que não sejam atribuídas a outra jurisdição são da competência dos Tribunais Judiciais, de acordo com o art. 66° do C.P.C. e art. 18° da Lei 3/99 de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).
Por isso, sendo os Tribunais Administrativos e Fiscais, os órgãos que exercem a jurisdição administrativa e fiscal (cf. art. 212°, n.° 3 da Constituição — “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”— e art. 1°, 2° e 3° do dec.-lei 129/84 de 27/4 — Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o vigente à data da instauração da acção) a sua competência determina-se pela análise directa das espécies de acções que podem ser submetidas a sua apreciação e decisão segundo o estabelecido na sua lei orgânica.
Daí que conhecida a competência material que lhes foi especialmente atribuída por lei e integrando-se a matéria da acção proposta nessa competência fica logo determinada a competência do Tribunal Administrativo e Fiscal e necessariamente excluída a competência do Tribunal Comum (cf. Antunes Varela, Bezerra e Nora em Manual de Proc. Civil, pág. 208 e Alberto dos Reis no Cód. de Proc. Civil Anotado, vol. 1, pág. 201).
Assim como a função jurisdicional dos Tribunais Administrativos e Fiscais vem estabelecida nos art. 1°, 3°, 4° e 62° daquele dec.-lei, há que determinar a natureza da relação jurídica pleiteada, como vem apresentada pela A. e concluir se ela se integra em qualquer das situações previstas naqueles preceitos legais (cf. Acórd. do S.T.J. de 12/1/94, de 9/5/95 e de 3/2/87, nas CJ — STJ — 1994-1 -38, 1995-2-68 e BMJ, 364-591 e ainda Manuel Andrade em Noções Elementares de Proc. Civil, Ed. de 1963, pág. 89).
Para tanto, impõe-se considerar a seguinte factualidade:
1) No Tribunal Tributário de 1ª Instância de Coimbra, a autora impugnou a liquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) no valor de 49.221.847$00, relativo ao ano de 1990.
2) Por decisão de 24/5/2001, o Tribunal julgou procedente a impugnação e anulou a liquidação em causa.
3) O Representante da Fazenda Pública interpôs recurso para a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo, que em 26/2/2002, concedeu provimento ao recurso e manteve a liquidação impugnada.
4) Para tanto, o Tribunal Central Administrativo fundamentou-se no art. 7°, n.° 4 do CIRS que, na redacção anterior à Lei n.° 30-G/2000 de 29/12, dispunha que os “lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial, quando não resultem de mútuos, de prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais se presumem sujeitos a título de lucros ou adiantamentos”.
5) A impugnante recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, o qual, por acórdão de 18/12/2002, negou provimento ao recurso.
6) Recorreu para o Tribunal Constitucional, alegando que as normas dos n.° 4 e 5 do art. 7° do CIRS, na interpretação de vedar a produção de prova testemunhal e documental no processo de impugnação judicial, viola o art. 20, em conjugação com o art. 18°, n.° 2 e 3 da Constituição.
7) O Tribunal Constitucional, por acórdão de 14/10/2003, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida.
8) Em 18/11/2003, a Autora instaurou a presente acção no Tribunal da Comarca de Oliveira do Hospital.
9) Na sua p. i alegou que:
a) Foi notificada, pela Direcção Geral das Contribuições e Impostos para pagar a quantia de 49.221.847$00 proveniente da liquidação de IRS do ano de 1990, efectuada nos termos do art. 81° do CIRS;
b) Esta decisão teve por base a informação da fiscalização de que o Sr. ... recebeu no ano de 1990 da firma ... a importância de 77.150.000$00, como adiantamento para a aquisição de dois terrenos que posteriormente venderia à ..., tendo celebrado dois contratos de promessa de compra e venda com a ..., sendo essa importância considerada como adiantamentos por conta de lucros, nos termos dos art. 6°, al. h) e 7°, n.° 4 do CIRS ;
c) Esta qualificação de adiantamento de lucros daquela quantia de 77.150.000$00 (51.000.000$00 + 26.150.000$00) não tem fundamento pois o falecido ... não recebeu quaisquer lucros;
d) As quantias foram entregues, por razões de ordem negocial, para a celebração de dois negócios a favor da ...;
e) Tais negócios não se concretizaram e aquelas quantias foram reintegradas na sociedade;
f) Conclui-se, assim, que nada permitia aplicar a presunção do art. 7°, n.° 4 do CIRS, já que é evidente que ... não recebeu quaisquer quantias a título de lucros ou adiantamentos de lucros, pelo que espera que se reconheça como ilidida tal presunção.
g) E terminou, pedindo que a acção seja julgada procedente por provada, declarando-se que ..., marido que foi da autora, não recebeu as quantias de 51.000.000$00 e de 26.150.000$00 a título de lucros ou de adiantamento de lucros.
Sendo estes os factos, há que concluir que a competência, em razão da matéria, cabe não aos Tribunais Tributários mas sim ao Tribunal Comum, no caso concreto, ao Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Hospital.
Na verdade, a competência é deferida aos Tribunais Tributários nos casos de acções ou recursos contenciosos que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas fiscais, de relações em que esteja em causa uma relação jurídico-tributária, uma relação estabelecida entre a Administração Tributária, agindo como tal, no exercício de competências no domínio tributário e as pessoas singulares ou colectivas e em que a questão a dirimir exija a aplicação e interpretação de normas de direito fiscal.
No caso concreto, não está em causa qualquer relação jurídico-tributária, não está em causa qualquer questão inserida no âmbito fiscal, qualquer relação entre a A. e a Administração Fiscal.
In casu, quer a causa de pedir (esta é, de acordo com a teoria da substanciação consagrada no nosso direito, o facto jurídico de que emerge o direito do autor; é o facto jurídico invocado para obter a pretensão deduzida — cf. Alberto dos Reis em Cód. de Proc. Civil Anotado, vol. III, pág. 121 e Manuel Andrade em Noções Elementares de Proc. Civil, pág. 259) quer o pedido (o efeito jurídico pretendido pelo autor, a providência jurisdicional requerida — cf. Manuel Andrade em ob. cit., pág. 297) integram-se numa relação jurídica de natureza privada — saber se aquelas quantias, depositadas pela sociedade ..., em conta do falecido ... não foram recebidas como lucros ou adiantamento de lucros.
Com efeito, a questão que é colocada na p. i. reconduz-se ao que ocorreu entre a sociedade ... e ... e consiste em saber a que título foram depositados na conta do falecido aquelas quantias, afirmando a A. que não foram lucros nem adiantamentos de lucros, mas quantias que se destinavam à celebração de um negócio a favor da sociedade e que foram, por não ter sido concretizado, restituídas à sociedade.
E o pedido encontra-se na sequência do que foi alegado como causa de pedir — que se declare que ... não recebeu as quantias a título de lucros ou adiantamentos de lucros.
Com tal pedido, o que a A. pretende é uma decisão que reconheça a inexistência do facto presumido, ou seja, sendo o facto presumido o de que o marido da requerente recebeu aquelas quantias a título de lucros ou de adiantamentos de lucros, a decisão pretendida é a de que o marido da requerente não recebeu tais quantias a título de lucros ou de adiantamentos de lucros.
Aqui, nestes autos, não se impugna a liquidação do imposto, não se pede que se declare ilidida a presunção estabelecida no art. 7°, n.° 4 do CIRS — apenas se pede a declaração de inexistência do facto presumido.
Com a presente acção, a A. quer obter uma decisão judicial que declare que seu falecido marido não recebeu aquelas quantias a título de lucros, para que, com ela, possa impugnar, em sede tributária, a presunção estabelecida no art. 7°, n.° 4 do CIRS.
E tal decisão encontra plena justificação, porquanto tal presunção estabelecida naquele art. 7º, n.° 4 (ali considera-se que os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamentos dos lucros) só pode ser ilidida, como se determina no art. 7°, n.° 5 do CIRS (norma que não enferma de inconstitucionalidade — Acórd. do Tribunal Constitucional n.° 45203 de 14/10/2003) com base em decisão judicial, acto administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos.
Trata-se, portanto, de uma presunção que, embora admitindo prova em contrário (e esta só se faz provando o contrário do presumido — cf. art. 350°, n.° 2 do C.C. e Antunes Varela na RLJ, 122°-218) não pode ser realizada por qualquer meio de prova no processo de impugnação no Tribunal Tributário.
E que o pedido se reconduz à declaração de que o referido ... não recebeu aquelas quantias a título de lucros ou adiantamento de lucros (e não também à declaração de ilisão da presunção estabelecida no art. 7°, n.° 4 do CIRS) não sofre qualquer dúvida se tomarmos em consideração que na petição inicial se tem de considerar uma parte em que o autor exprime a situação concreta e outra em que o autor formula ou declara a providência requerida; aquela é a narração e esta é a conclusão; naquela contém-se a causa de pedir e nesta o pedido (cf. Alberto dos Reis em Cód. de Proc. Civil Anotado, vol. II, pág. 349 a 365).
Assim, como a acção não emerge de qualquer relação jurídico-tributária, nela se pretendendo apenas que se reconheça o facto de as quantias não serem lucros, não se pedindo a apreciação e aplicação de qualquer norma de direito fiscal, nem de qualquer acto integrante de qualquer relação jurídico-tributária, nem se decide qualquer questão de natureza tributária, tem, portanto, de correr termos no Tribunal Comum.
Pelo exposto, acordam neste Tribunal de Conflitos em revogando a decisão recorrida, conceder provimento ao agravo, julgando competente o Tribunal Judicial da comarca de Oliveira do Hospital.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Abril de 2006. – Artur José Alves Mota Miranda (relator) – António Samagaio – José Vitor Soreto de Barros – Madeira dos Santos – Costa Reis.