Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:011/17
Data do Acordão:11/30/2017
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:PRÉ-CONFLITO
TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS COMUNS
Sumário:I - Sendo os TCAs tribunais de segunda instância da jurisdição administrativa e fiscal, correspondendo nesta jurisdição aos Tribunais da Relação, na jurisdição comum, não se vê razão para não lhes aplicar o art. 101º, nº 2 do CPC, ex vi do art. 1º do CPTA, já que as razões que justificam a sua aplicação nos tribunais comuns, razões de economia e celeridade processuais, têm a mesma razão de ser na jurisdição administrativa e fiscal.
II – Se a acção se constitui como de reivindicação, já que a propriedade do terreno, que o Recorrido questiona alegando que o terreno pertence ao domínio público, surge como o que está em questão a título principal, pedindo-se a restituição integra da coisa indevidamente ocupada (cfr. art. 1311º do Cód. Civil), a competência material para conhecer da mesma cabe à jurisdição comum (art. 64º do CPC).
Nº Convencional:JSTA00070432
Nº do Documento:SAC20171130011
Data de Entrada:03/23/2017
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO E OS TRIBUNAIS COMUNS
AUTOR: A......S.A.
RÉU: MUNICÍPIO DE MATOSINHOS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC PRE CONFLITO
Objecto:AC TCAN
Decisão:NEGA PROIVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - REC JURISDICIONAL/CONFLITO JURISDIÇÃO.
Legislação Nacional:CONST05 ART2 ART61 ART209 ART212 N3 ART266 ART62.
ETAF02 ART1 N1 ART4 N1 I ART8.
CPTA02 ART1 ART4 ART37 N2.
CPA91 ART3.
CPC13 ART64 ART101 N2 ART107 N2 ART109.
CCIV66 ART12 N1 ART1311.
DL 214G/15 DE 2015/10/02.
DL 13/02 DE 2002/02/19.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC051/14 DE 2015/10/15.; AC TCF PROC023/09 DE 2010/09/28.; AC TCF PROC025/08 DE 2009/05/07.; AC TCF PROC022/07 DE 2008/02/21.; AC TCF PROC015/06 DE 2007/04/26.; AC TCF PROC017/09 DE 2010/01/27.
Referência a Doutrina:ANTUNES VARELA E OUTROS - MANUAL DE PROCESSO CIVIL 2ED PAG245.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 11/17

Acordam no Tribunal de Conflitos


1. Relatório

A…….., SA, notificada do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), de 16.12.2016, que negou provimento ao recurso interposto do TAF do Porto, de 23.06.2016, dele interpõe o presente recurso para este Tribunal de Conflitos.
Em alegações formula as seguintes conclusões:
I. No presente processo está em causa a competência da jurisdição administrativa para apreciar e decidir a presente ação;
II. Como demonstrado nas presentes alegações, mesmo considerando-se apenas a anterior redação do ETAF, em vigor à data da propositura da presente ação, a jurisdição administrativa é competente para apreciar e decidir a presente ação;
III. De qualquer forma, conforme resulta do atual art. 4.°/1/i) do ETAF e é referido nas páginas finais do douto Acórdão recorrido, atualmente é inquestionável a competência da jurisdição administrativa para a presente ação:
IV. Conforme resulta do art. 12.°/2 do C. Civil e do art. 15.° do DL 214-G/2015, de 02.10, que aprovou a nova redação do ETAF, a mesma é aplicável aos processos pendentes:
V. Assim sendo, ainda não se encontrando definitivamente decidida a questão da competência material para o presente processo não pode deixar de ser aplicável a nova redação do ETAF, como impõe o princípio da aplicação imediata da lei processual, bem como o princípio da economia processual;
VI. O art. 5.°/1 do ETAF não afasta esta conclusão, pois, o que resulta deste preceito é, que, dispondo a jurisdição administrativa (ou um determinado Tribunal da mesma) de competência no momento da propositura da causa, essa competência mantém-se sendo irrelevantes as posteriores modificações de facto e de direito (princípio da perpetuatio iurisdictionis);
VII. No entanto, este preceito não afasta a possibilidade de a jurisdição administrativa ser considerada competente, no caso de essa questão ainda não se encontrar definitivamente decidida no processo, e de ser atribuída ao Tribunal, por posterior alteração legislativa, a competência de que (alegadamente) inicialmente carecia para conhecer da causa;
VIII. Com efeito, esta é a única interpretação compatível com o princípio da aplicação imediata da lei processual, conforme acima referido, bem como com o disposto no art. 9.°/3 do C. Civil que impõe que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas:
IX. Outro entendimento não faria qualquer sentido (seja no âmbito processual, seja no quadro das razões teleológicas subjacentes às normas atributivas de competência material), e determinaria que se corresse o sério risco de futuro conflito negativo de competência;
X. Face ao exposto, contrariamente ao decidido no douto Acórdão recorrido, sempre deveria ser considerado aplicável o atual art. 4.°/1/i) do ETAF, considerando-se a jurisdição administrativa competente para a presente acão (cfr. arts. 9.°/3 e 12.°/1 do C. Civil e art. 15.° do DL 214-G/2015, de 02.10);
XI. Mesmo considerando apenas a anterior redação do ETAF, sempre se teria que concluir pela competência da jurisdição administrativa;
XII. Como é pacífico, a competência material do Tribunal para apreciar e decidir uma ação afere-se pela forma como o autor a configura, em concreto pelos respetivos pedido/pretensão e causa de pedir/fundamentos (Ac. STJ de 14.05.2009, Proc. 09S0232 e Ac. do Tribunal de Conflitos de 15.10.2015, Proc. 051/14, disponíveis em www.dgsi.pt);
XIII. Conforme expressamente decidido pelo douto Tribunal de Conflitos, em situação idêntica (Acórdão de 04.04.2006, Proc. 027/05), na douta Sentença de 13.11.2013, transitada em julgado, proferida no processo cautelar apenso (Proc. 2042/13.7BEPRT), bem como pelo Tribunal da Relação de Coimbra (Acórdão de 20.01.2015, Proc. 61/14.5TBPNC.C1), os Tribunais Administrativos são materialmente competentes para decidir a presente ação;
XIV. No caso sub judice estamos perante uma conduta ilegal do Recorrido, Município de Matosinhos, alegadamente no âmbito da sua atividade de gestão pública (construção de parque de estacionamento e arruamento), que viola direitos fundamentais da A., ora Recorrente, e normas de direito administrativo, conforme alegado na P.l.;
XV. Conforme esclarecido no intróito da P.l. e peticionado na mesma, a presente ação visa a condenação do Município à (i) abstenção de comportamento e à (ii) adocão das condutas necessárias ao restabelecimento dos direitos violados, o que integra claramente o âmbito de ação administrativa comum, expressamente prevista no art. 37.°/1/2/c) e d) do CPTA, na redação em vigor à data da propositura da ação (cfr. art. 37.°/1/h) e i) do CPTA na atual redação);
XVI. Como causa de pedir, a A., ora Recorrente, alegou na P.I a P.l. e peticionado na mesma, a presente ação visa a condenação do Município à (i) abstenção de comportamento e à (ii) adocão das condutas necessárias ao restabelecimento dos direitos violados, o que integra claramente o âmbito de ação administrativa comum, expressamente prevista no art. 37.°/1/2/c) e d) do CPTA, na redação em vigor à data da propositura da ação (cfr. art. 37.°/1/h) e i) do CPTA na atual redação);
XVI. Como causa de pedir, a A., ora Recorrente, alegou na P.L, além do mais, que: (i) o Município iniciou a execução de obras num terreno propriedade da Recorrente, alegadamente de construção de um novo arruamento e de parque de estacionamento; que (ii) essa conduta do R. é ilegal por representar um verdadeiro confisco, tendo o Recorrido violado o art. 62.° da CRP, que consagra o direito de propriedade privada e proíbe o confisco, apenas permitindo a expropriação, mediante o pagamento da justa indemnização e seguindo-se o procedimento previsto no Código das Expropriações, o que não foi o caso; que (iii) tal situação configura ainda uma violação do direito de livre iniciativa económica da A., consagrado no art. 61.°/1 da CRP, por condicionar, de forma ilegítima, as possibilidades de utilização do terreno; e que (iv) o procedimento do R. viola os mais elementares princípios que devem nortear a atividade administrativa, nomeadamente os princípios da legalidade, da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da justiça e da boa-fé (v. arts. 266.° CRP e 3.° e segs. do CPA), constituindo, ainda, uma violação frontal do Estado de Direito Democrático (art. 2.° da, além do mais, que: (i) o Município iniciou a execução de obras num terreno propriedade da Recorrente, alegadamente de construção de um novo arruamento e de parque de estacionamento; que (ii) essa conduta do R. é ilegal por representar um verdadeiro confisco, tendo o Recorrido violado o art. 62.° da CRP, que consagra o direito de propriedade privada e proíbe o confisco, apenas permitindo a expropriação, mediante o pagamento da justa indemnização e seguindo-se o procedimento previsto no Código das Expropriações, o que não foi o caso; que (iii) tal situação configura ainda uma violação do direito de livre iniciativa económica da A., consagrado no art. 61.°/1 da CRP, por condicionar, de forma ilegítima, as possibilidades de utilização do terreno; e que (iv) o procedimento do R. viola os mais elementares princípios que devem nortear a atividade administrativa, nomeadamente os princípios da legalidade, da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da justiça e da boa-fé (v. arts. 266.° CRP e 3.° e segs. do CPA), constituindo, ainda, uma violação frontal do Estado de Direito Democrático (art. 2.° da CRP);
XVII. A ação tem assim por objeto, nomeadamente, a tutela de direitos fundamentais (nomeadamente do direito de propriedade da Recorrente), o que integra a previsão da alínea a) do n.° 1 do art. 4.° do ETAF. na redação em vigor à data da propositura da ação;
XVIII. Isto para além de na ação ser também alegada a violação de normas de direito administrativo, como acima referido, no âmbito de alegada atividade de gestão pública do ora Recorrido, o que determina também que estejamos em presença de relação jurídica administrativa (v. art. 1.° do ETAF; cfr. art. 212.°/3 da CRP);
XIX. Acresce ainda que a competência dos Tribunais Administrativos também não ficaria, de qualquer modo, prejudicada se em causa estivessem atos de gestão privada, conforme tem entendido a Jurisprudência.
XX. Sem prejuízo de outro entendimento, contrariamente ao considerado no douto Acórdão recorrido, não estamos perante uma "acção reaf, seja ela uma "reivindicatio", uma "acção possessória" ou qualquer outra, porquanto o Recorrido não é "possuidor" nem "detentor" do terreno, não sendo, por isso, aplicável a jurisprudência do Tribunal de Conflitos citada no douto Acórdão.
XXI. Com efeito, por força do deferimento do decretamento provisório da providência cautelar e do posterior decretamento da mesma no processo cautelar que antecedeu a presente ação, aquela situação não se verifica, ou seja, o Recorrido iniciou a execução das obras, mas, como o prosseguimento das mesmas foi logo impedido no seu início (através do referido processo cautelar), o Município Recorrido não assume a qualidade de possuidor ou detentor do terreno;
XXII. O facto de - face ao alegado pelo Município -, se ter que apreciar aquela questão prejudicial não retira competência aos Tribunais Administrativos, conforme resulta, entre outros, do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20.01.2015, Proc. 61/14.5TBPNC.C1.
XXIII. A competência dos Tribunais Administrativos decorre (necessariamente) do art. 399.° do CPC, que exclui a competência dos Tribunais Comuns para ações como a presente pelo que, podendo a A., ora Recorrente, defender os seus direitos "através dos meios previstos na lei de processo administrativo contencioso", como fez, nunca o meio idóneo poderia ser qualquer outro;
XXIV. Finalmente, não se invoque ainda que o art. 37.°/1/i) do CPTA (na sua redação atual, que não é aplicável in casu), é que veio estabelecer que segue a forma da "ação administrativa" a que tenha por objeto a "condenação da Administração à adoção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo em situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime" (sombreado e sublinhado nosso), pois esta redação deste preceito limita-se a clarificar expressamente, com a expressão "incluindo", o que já resultava da al. d) do n.° 2 do art. 37.° do CPTA, na redação em vigor à data da propositura da presente ação);
XXV. Assim sendo, com o devido respeito, o douto Acórdão recorrido enferma de erros de julgamento, tendo violado os arts. 37.°/1/2/c) e d) do CPTA (na redação em vigor à data da propositura da ação); os arts. 1.° e 4.°/1/a) do ETAF (na redação em vigor à data da propositura da ação); o art. 4.°/1/i) do ETAF, na redação atual; o art. 212.°/3 da CRP; os arts. 9.°/3 e 12.°/2 do C. Civil; e o art. 15.° do DL 214-G/2015, de 02.10, os quais, contrariamente ao decidido, determinam que a competência para decidir a presente ação cabe aos Tribunais Administrativos.
Nestes termos, requer-se a V. Exas. que seja julgado procedente o presente recurso, revogando-se o douto Acórdão recorrido, decidindo-se pela competência dos Tribunais Administrativos para decidir a presente ação e ordenando-se a devolução dos autos ao douto Tribunal a quo para aí prosseguir a ação.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Exmo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer a fls. 253/254 no sentido de que a jurisdição administrativa e fiscal é a competente para decidir a presente acção.

Cumpre decidir.

2. Os Factos
O acórdão recorrido considerou assente o seguinte:
1.º) – A autora/recorrente, nos termos que constam na sua p.i., que aqui se têm presentes, peticionou “a condenação do R. a abster-se de executar qualquer obra no Terreno propriedade da Autora (…), sito entre o cemitério de Leça da Palmeira e a Rua ………., Município de Matosinhos e freguesia de Leça da Palmeira, bem como que o R. seja condenado a adoptar as condutas necessárias a repor o Terreno no estado em que estava antes do início da execução da obra em causa.
2.º) – O tribunal “a quo” julgou-se materialmente incompetente, absolvendo o réu da instância (cfr. decisão recorrida).

3. O Direito
No presente recurso está em causa a competência dos Tribunais Administrativos para decidir a acção dos autos, tendo a A., aqui Recorrente, intentado acção administrativa comum, em 03.12.2013, nos termos do art. 37º, nº 1 do CPTA, tendo em vista a condenação do Município de Matosinhos “à,
- Abstenção de comportamento (art. 37.º, nº 2, alínea c) do CPTA, e à,
- Adoção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados (art. 37.º, n.º 2, alínea d) do CPTA)”.
Alegou haver por parte do R. uma conduta ilegal e de evidente ofensa de direitos fundamentais de que a A. é titular. Por a Câmara Municipal de Matosinhos, no decurso de umas obras junto ao cemitério paroquial de Leça da Palmeira, para a construção de um novo arruamento e parque de estacionamento, para servir de acesso ao dito cemitério, estarem estas a ser executadas, em parte, em terreno de que a A. é proprietária.
Sem que a Autora tivesse sido notificada de qualquer deliberação municipal relativa à ocupação de tal terreno de sua propriedade ou de qualquer acto relativo à expropriação do mesmo e/ou tentativa de aquisição amigável. Configurando-se uma verdadeira ocupação, em via de facto, de propriedade privada da Autora.

No despacho saneador o TAF do Porto considerou ser o Tribunal Administrativo incompetente em razão da matéria para apreciar e decidir a acção, atento o disposto nos arts. 209º, nº 1, al. b) e 212º, nº 1 da CRP, e arts. 1º, e 8º do ETAF e arts. 1º e 4º do CPTA, absolvendo o réu da instância.
Interposto recurso desta decisão veio o TCAN a confirmá-la, negando provimento ao recurso.
Considerou-se, para tanto, que só na versão do ETAF, com a redacção que lhe foi dada pelo DL nº 214-G/2015, de 2/10, passou o art. 4º, nº 1, alínea i) a consagrar expressamente a “Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”, pelo que estas situações só passaram a ser da competência da jurisdição administrativa na actual redacção do ETAF, sendo anteriormente da competência dos tribunais judiciais, o que seria o caso.

Vejamos então.
Começaremos por proceder ao enquadramento normativo com vista a determinar se no caso em apreço é admissível o presente recurso para este Tribunal dos Conflitos.
O recurso foi interposto nos termos do art. 101º, nº 2 do CPC, ex vi do art. 1º do CPTA.
Dispõe este preceito que: “Se a Relação tiver julgado incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal dos Conflitos”.
Na situação prevista neste preceito legal não estamos perante um verdadeiro conflito de jurisdição mas perante o que se tem designado de pré-conflito.
O preceito visa a fixação em definitivo da competência do tribunal para a acção, através de recurso do acórdão da Relação directamente para o Tribunal dos Conflitos, sem necessidade de suscitar o conflito de jurisdição nos termos do disposto no art. 109º do CPC.
A questão que aqui se pode suscitar é a de saber se o preceito invocado pelo Recorrente é aplicável na jurisdição administrativa e fiscal.
Efectivamente, o art. 101º, nº 2 do CPC refere-se ao Tribunal da Relação como seria normal, ao tratar-se de uma disposição respeitante ao processo civil.
No entanto, afigura-se-nos que tal não impede que o preceito não possa ser aplicável no contencioso administrativo, atento o disposto no art. 1º do CPTA (preceito invocado pelo recorrente), já que na jurisdição administrativa e fiscal também existem tribunais de segunda instância, os Tribunais Centrais Administrativos.
Ora, sendo os TCAs tribunais de segunda instância da jurisdição administrativa e fiscal, correspondendo nesta jurisdição aos Tribunais da Relação, na jurisdição comum, não se vê razão para não lhes aplicar o citado art. 101º, nº 2 do CPC, ex vi do art. 1º do CPTA, já que as razões que justificam a sua aplicação nos tribunais comuns, razões de economia e celeridade processuais, têm a mesma razão de ser na jurisdição administrativa e fiscal.
Neste sentido se pronunciou já este Tribunal dos Conflitos no acórdão de 28.09.2010, proc. 23/09, nele se referindo outros arestos deste Tribunal que, sem se pronunciarem expressamente sobre esta questão, aceitaram conhecer de recursos de decisões dos Tribunais Centrais Administrativos, ao abrigo do então art. 107º, nº 2 do CPC, a que corresponde hoje o citado art. 101º, nº 1 (por exemplo nos processos 15/06, 22/07 e 25/08).
Salienta-se naquele acórdão de 28.09.2010 o seguinte:
«Aliás, o artº 107º nº 2 do CPC, ao impor que do acórdão da Relação cabe recurso directo para o Tribunal de Conflitos, parece mesmo pretender excluir qualquer outra via para definir a jurisdição competente, quando obtida uma decisão de um tribunal superior, prevenindo, desse modo, que o conflito de jurisdição se suscite, não só entre tribunais de jurisdições diferentes, mas também de hierarquias diferentes e, simultaneamente, garantindo a intervenção do Tribunal de Conflitos.
De qualquer modo, a admitir-se que o interessado, obtida uma decisão de um tribunal superior poderia ainda suscitar o conflito de jurisdição entre essa decisão e uma decisão de 1.ª instância doutra jurisdição, sempre esta via seria a nosso ver, meramente opcional. E mesmo nesse entendimento, pelas mesmas razões de economia e celeridade processuais, não se justificaria, neste momento, rejeitar o presente recurso, para depois do trânsito em julgado do acórdão recorrido, ser então suscitado um conflito de jurisdição para decidir a jurisdição competente para a acção, quando tal pode ser já resolvido no presente recurso.»
Porque concordamos com este entendimento, passamos a conhecer do recurso:
Tem sido reafirmado por este Tribunal, sendo pacífico na doutrina e na jurisprudência, que a competência afere-se pelo pedido e a causa de pedir formulados pelo autor. Mais concretamente pelos termos em que se mostra estruturada e formulada a pretensão/pedido e os seus fundamentos/causa de pedir, entendida esta como o “facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido” (Antunes Varela e Outros, “Manual de Processo Civil, 2ª ed.pág. 245).
A competência dos tribunais comuns é residual, no sentido de que incide sobre “as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (cfr. art. 64º do CPC).
Por sua vez o art. 212º, nº 3 da CRP, prescreve que compete aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Estatuindo o art. 1º, nº 1 do ETAF, que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no art. 4º desse Estatuto.
Refira-se, desde já, face ao alegado pela Recorrente, que aos presentes autos seria aplicável o ETAF na versão do DL nº 13/2002, de 19/2, vigente à data da propositura da acção, atento o que se dispõe no art. 14º, nº 4 do DL nº 214-G/2015, de 2/10 que procedeu à alteração do ETAF e do CPTA e no art. 12º, nº 1 do Código Civil. O que significa que não pode ser considerado aplicável o actual art. 4º, nº 1, al. i) do ETAF, considerando-se a jurisdição administrativa competente para a presente acção, face ao previsto naquele normativo, como entendeu o acórdão recorrido.
O art. 4º do ETAF enuncia exemplificativamente litígios sujeitos ao foro administrativo, tendo eliminado o critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido.
O que permite concluir que compete à jurisdição administrativa o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os litígios regulados por normas jurídicas administrativas e originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribua a outra jurisdição.
Como se escreveu no acórdão deste Tribunal de Conflitos de 27.01.2010, Proc. nº 17/09 (consultável in www.dgsi.pt), “O nº 3 do art. 212º da CRP dispõe que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência do Tribunal afere-se pelo pedido formulado pelo A. e pelos fundamentos que invoca, pelo que a análise da petição dos AA é determinante.” (cfr. no mesmo sentido o acórdão do mesmo Tribunal de 15.10.2015, Proc. 051/14).
Ora, na presente acção visa-se a condenação do Município a “abster-se de executar qualquer obra no Terreno propriedade da Autora (…), sito entre o cemitério de Leça da Palmeira e a Rua ……….., Município de Matosinhos…, bem como que o Réu seja condenado a “adaptar as condutas necessárias a repor o Terreno no estado em que estava antes do início da execução das obras em causa”.
Como causa de pedir, a, ora Recorrente, alegou nomeadamente que: (i) o Município iniciou a execução de obras num terreno propriedade da Recorrente, de construção de um novo arruamento e de parque de estacionamento; (ii) conduta essa do R., ilegal por representar um verdadeiro confisco, violando o art. 62º da CRP, que consagra o direito de propriedade privada e proíbe o confisco; (iii) tal situação configura ainda uma violação do direito de livre iniciativa económica da A., consagrado no art. 61º, nº 1 da CRP, por condicionar, de forma ilegítima, as possibilidades de utilização do terreno; e que (iv) o procedimento do R. viola os mais elementares princípios que devem nortear a atividade administrativa, nomeadamente os princípios da legalidade, da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, da justiça e da boa-fé (arts. 266º CRP e 3º e segs. do CPA), constituindo, ainda, uma violação frontal do Estado de Direito Democrático (art. 2º da CRP).
Numa primeira e mais superficial abordagem, tendo em conta os pedidos formulados, pode parecer estar em causa a legalidade da conduta do ente público, que seria violadora de direitos fundamentais da Autora, nomeadamente, do seu direito de propriedade.
No entanto, aqueles fundamentos que constituem a causa de pedir (mormente i) a iii)), são demonstrativos da existência de um conflito quanto à titularidade do direito de propriedade sobre o terreno em causa. É que a autora na sua petição inicial não só alega factos que permitem aferir do seu direito de propriedade sobre o terreno em causa, como visam excluir o mesmo direito por parte do réu, invocando a existência de “um verdadeiro esbulho” (arts. 18º a 28º da p.i.) e, demonstar a titularidade do seu direito de propriedade (arts. 52º a 70º do mesmo articulado).
Por sua vez o réu reivindica para si a titularidade do terreno em causa, alegando factos que serão, por sua vez, demonstrativos do seu direito de propriedade sobre o mesmo.
Assim, tal como se apresenta, a presente acção constitui uma acção de reivindicação, já que a propriedade do terreno (que o Recorrido questiona alegando que o terreno pertence ao domínio público) surge como o que está em questão a título principal, pedindo-se a restituição integra da coisa indevidamente ocupada (cfr. art. 1311º do Cód. Civil).
O que se constata é que a Recorrente formula pedidos que têm subjacente aquele direito de propriedade, que invoca e pretende fazer prevalecer, sendo certo que tais pedidos impõem como antecedente lógico a procedência na titularidade da autora daquele direito de propriedade.
Assim, a competência material para conhecer da presente acção cabe à jurisdição comum (art. 64º do CPC).

Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso, julgando que os tribunais competentes para o conhecimento do litígio em causa são os tribunais da jurisdição comum.
Sem custas (art. 96º do Decreto nº 19243, de 16.01.1931).

Lisboa, 30 de Novembro de 2017. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - António Pires Henriques da Graça – Jorge Artur Madeira dos Santos – João Moreira Camilo – António Bento São Pedro – Raúl Eduardo do Vale Raposo Borges.