Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:043/14
Data do Acordão:11/13/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FERNANDO BENTO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P18219
Nº do Documento:SAC20141113043
Data de Entrada:07/21/2014
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE PENAFIEL E O TRIBUNAL JUDICIAL DE PAREDES (1º JUÍZO) - AUTOR : A......... - RÉU : B..............
Recorrido 1:*
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos

RELATÓRIO
Entre A…………. SA e B………… foi celebrado, em 31-03-2009, um contrato de fornecimento de água e de drenagem de águas residuais, mas esta não pagou os consumos referentes ao período de 04-10-2012 a 06-12-2012.
Por isso, deduziu aquela um requerimento de injunção contra esta com vista à cobrança coerciva de € 162,25 euros, acrescido de juros de mora vencidos - € 0,90 euros - e vincendos sobre o capital de € 42,85 euros.
A correspondência expedida pelo Balcão Nacional de Injunções para notificação da requerida foi devolvida com a informação “falecido”,
E remetido o processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, este julgou a jurisdição administrativa e fiscal materialmente incompetente para dele conhecer, por competente ser o tribunal cível comum.
Em síntese, porque a relação estabelecida entre a requerente e a requerida, com vista ao fornecimento de água por aquela a esta, não seria uma relação jurídica administrativa mas sim uma mera relação contratual de direito privado; logo, visando a requerente a cobrança da dívida nascida com esse fornecimento, os tribunais competentes seriam os da jurisdição comum e não os da jurisdição administrativa e fiscal.
Transitada a decisão, foram os autos remetidos ao Tribunal Judicial de Paredes que, por sua vez, se julgou materialmente incompetente para deles conhecer, por entender serem competentes os tribunais integrados na jurisdição administrativa e fiscal.
Para tanto, louvou-se na natureza pública da actividade de planeamento fornecimento e gestão de equipamentos no domínio da distribuição de água e nos poderes administrativos de que gozam as entidades incumbidas dessas actividades, designadamente e no que concerne às relações com os utentes (consumidores), os de, impor preços e tarifas por elas unilateralmente fixados; para além disso, tais contratos de fornecimento seriam regulados por normas de direito público para salvaguarda dos direitos dos consumidores e sobretudo da saúde e salubridade pública, concluindo que “a natureza da relação material em litígio não é manifestamente privada, porquanto balizada, em várias vertentes, por normas de direito público que lhe são impostas e a desenham, à luz do art. 4º, nº1, al f) do ETAF, sendo que é à jurisdição administrativa que cabe apreciar as questões relativas aos contratos a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo”.
Transitada também esta decisão, foram os autos remetidos ao Tribunal da Relação do Porto onde, a requerimento do MP e com vista à resolução do conflito negativo entre a jurisdição administrativa e a jurisdição comum, foi ordenada a sua remessa ao Tribunal de Conflitos.
Aqui designados os juízes para a solução deste conflito, foram os autos distribuídos, após o que o MP emitiu douto parecer no sentido de o conflito ser solucionado, deferindo-se a competência aos tribunais tributários.
FUNDAMENTAÇÃO
Cumpre deliberar:
Os factos relevantes constam da exposição que antecede.
I - Estamos perante um evidente conflito de jurisdição porque dois tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes - a administrativa e fiscal por um lado, e a comum, por outro - declinam o poder de conhecer da mesma questão - a saber, a competência para a cobrança coerciva das importâncias referentes aos fornecimentos de água efectuados ao abrigo de um contrato celebrado entre esse particular (aqui, a requerida) com uma sociedade privada concessionária do serviço público de fornecimento de água e drenagem de águas pluviais (aqui, a requerente) - imputando-se os tribunais em conflito, reciprocamente, essa competência e negando a própria.
Ocorre, portanto, um conflito negativo de jurisdição (art. 109° n°1 e 2 CPC).
II - Como tem sido pacificamente entendido, a competência do tribunal deve ser aferida à luz da petição inicial (ou peça equivalente), ou seja, da relação jurídico-material subjacente à acção, quer quanto aos respectivos elementos objectivos (causa de pedir e pedido), quer quanto aos seus elementos subjectivos (natureza e qualidade jurídica das partes).
No caso em apreço, a Requerente diz ser uma sociedade comercial anónima que se dedica, entre outras, ao serviço público de fornecimento de água e de drenagem de águas residuais e que no exercício dessa actividade foi contactada pela requerida para a prestação de serviços de fornecimento de água e/ou drenagem de águas residuais, não tendo esta pago os serviços prestados no período de 04-10-2012 a 06-12-2012.
Ora, a distribuição e o fornecimento de água e drenagem de águas residuais são serviços de inequívoco interesse público, razão pela qual “é da competência dos órgãos municipais o planeamento, a gestão de equipamentos e a realização de investimentos nos seguintes domínios: a) sistemas municipais de abastecimento de água” (cfr. art. 26º nº1-a) da Lei 159/99, de 14.09).
E a exploração e gestão deste sistema podem ser atribuídas em regime de concessão a uma entidade privada de natureza empresarial (cfr. art.6º do Decreto-lei 379/93, de 05.11).
E, neste caso, é à concessionária compete efectuar a exploração do serviço concessionado por sua conta e risco, tendo ela, precedendo aprovação pelo concedente, direito a fixar, liquidar e cobrar taxas aos utentes e a estabelecer o regime de utilização, estando também autorizada a recorrer ao regime legal de expropriação, nos termos do Código das Expropriações, bem como aos regimes de empreitada de obras públicas e de fornecimento contínuo (art. 13º nº1 e 2 do DL nº 379/93 citado).
Daqui decorre, sem necessidade de mais divagações, que, nos contratos de fornecimento de água celebrados com os utentes (vulgo, distribuição de água ao domicílio), a concessionária beneficia de prerrogativas de autoridade que desequilibram, em seu beneficio, a posição das partes, não se tratando de uma relação entre “iguais”; esse poder e autoridade de uma das partes relativamente à outra são o traço característico da relação jurídica administrativa e decorre do interesse público que lhe compete prosseguir.
O contrato de fornecimento de água está, por conseguinte, regulado por normas de direito público (Direito Administrativo), justificadas pela necessidade de salvaguardar a saúde pública e a qualidade da agua como bem essencial,
Bem pode, pois, afirmar-se que a concessionária, não obstante ser uma sociedade de direito privado, exerce um poder público, substituindo-se à autarquia.
Sim, porque por via da concessão, a requerente actua em substituição da autarquia (por via de regra, o Município) na prossecução dos fins de interesse público inscritos na órbita da sua competência e munida de poderes de autoridade que a este competiam.
A relação jurídica administrativa é, portanto, aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido (cfr. Vieira de Andrade “in” “A Justiça Administrativa”, Lições, 2000, página 79).
E, incidindo sobre situações, caracteriza-se por “um sistema complexo de situações jurídicas activas e passivas interligadas, regidas pelo Direito Administrativo e tituladas por entidades incumbidas do exercício de uma actividade específica da função administrativa e por particulares ou apenas por diversos pólos finais de imputação pertencentes à própria Administração” (cfr. Sérvulo Correia, As Relações Jurídicas Administrativas de Prestação de Cuidados de Saúde, estudo acessível na INTERNET em http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/616-923.pdf).
Esta definição tem, quanto a nós, a vantagem de congregar todos os elementos que têm sido convocados para delimitar o conceito e o sentido de relação jurídica administrativa:
- o subjectivo - quando refere “tituladas por entidades incumbidas do exercício de uma actividade específica da função administrativa e por particulares ou apenas por diversos pólos finais de imputação pertencentes à própria Administração”;
- o objectivo quando limita a relação jurídica administrativa às “situações jurídicas activas e passivas interligadas, regidas pelo Direito Administrativo”;
- o funcional, quando exige que a entidade determinante da qualificação esteja incumbida do “exercício de uma actividade específica da função administrativa”
A competência dos tribunais judiciais é residual, definindo-se por exclusão, pois que, de acordo com o art. 211º nº1 da Constituição “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”; logo, a sua competência abrange “todas as causas não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (cfr. art. 14º da Lei nº 62/2013).
Ora, de acordo com os art.s 209º nº1-b), 212º nº3 da Constituição, os tribunais administrativos e fiscais são uma categoria de tribunais a quem compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
De igual modo, o art. 1º nº1 do ETAF prescreve que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”.
Como se referiu, no Acórdão deste mesmo Tribunal de Conflitos de 05-11- 2013, “o conceito de relação jurídica administrativa é, assim, erigido, tanto pela Constituição como pela lei ordinária, como operador nuclear da repartição de jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais”.
E depois de o art. 1º nº1 colocar o conceito de relação jurídica administrativa no cerne da delimitação de competências jurisdicionais, o art. 4º do ETAF (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.2, alterada pela Lei n.º 10/D/2003, de 31.12) concretiza, nas suas várias alíneas, alguns dos tipos de litígios susceptíveis de serem suscitados no âmbito da relação jurídica administrativa; e dizemos “alguns” porque o termo “nomeadamente” utilizado na redacção do nº1 do art. 4º citado inculca a natureza meramente exemplificativa e não exaustiva da enunciação aí contida:
“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
….”
A relação jurídica não deixa de ser de natureza administrativa pelo facto de os (ou um dos) respectivos sujeitos serem entidades de direito privado, desde que um deles exerça um poder público, prosseguindo interesses públicos.
É o caso do contrato de fornecimento de água ao domicílio por uma sociedade (de direito privado) concessionária desse serviço e um particular.
Aquela, como concessionária de serviço público, é uma sociedade de interesse colectivo, definida como “empresa privada de fim lucrativo que por exercerem poderes públicos ou serem submetidas a uma fiscalização especial da Administração Pública, ficam sujeitas a um regime jurídico específico traçado pelo Direito Administrativo"(cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 1990, p.558).
E, como já dissemos, a concessionária de serviços públicos de gestão e exploração da distribuição de água, têm direito, mediante aprovação pelo concedente (pressuposto de aprovação este que evidencia a tutela administrativa a que, apesar de tudo, continuam sujeitas) a, unilateralmente, fixar, liquidar e cobrar taxas aos utentes - que entidades privadas e que actuem segundo o direito privado poderão criar e impor taxas (privilégio típico das entidades públicas) aos seus clientes? - e a estabelecer - entenda-se unilateralmente e sem prévia discussão ou negociação - o regime de utilização, estando também autorizada a recorrer ao regime legal de expropriação, nos termos do Código das Expropriações bem como aos regimes de empreitada de obras públicas e de fornecimento contínuo (art. 13º nº1 e 2 do DL nº 379/93 citado).
Ou seja, tais sociedades gozam de prerrogativas e de privilégios de que as privadas não beneficiam (cfr. Freitas do Amaral, ob cit, p. 560).
Assente que gozam de poderes administrativos de autoridade, importará agora saber qual a sua natureza jurídica, ou seja, determinar se fazem parte da Administração Pública, em sentido orgânico ou subjectivo.
Isto porque, exercendo funções públicas coincidentes com as atribuições da Administração, importa saber se são ou não elementos desta.
A este propósito defrontam-se duas teses, uma defendendo que, por ser entidade privada, não integraria a Administração, apenas colaboraria com ela, exercendo funções públicas que, por via da concessão, para ela foram transferidas, continuando, contudo, no sector privado, e a outra, entendendo que, pelo facto de exercerem funções públicas, tais sociedades seriam órgãos indirectos da Administração.
A concessão não será um acto de descentralização dos poderes públicos, mas sim um acto de concentração, através do qual se investe uma entidade privada na qualidade de órgão da Administração, perdendo o seu carácter privado.
Independentemente da opção que, nesta controvérsia, se faça por qualquer das teses em confronto, ambas parecem estar de acordo em, pelo menos, dois pontos: por um lado, a concessionária exerce funções públicas e, por outro, quer o contrato de concessão, quer os contratos de fornecimento que celebra com os utentes / consumidores contêm normas de carácter administrativo, conferindo poderes e prerrogativas especiais à concessionária, típicas das entidades de direito público.
Ora, no elenco de questões que cabe à jurisdição administrativa e fiscal conhecer, incluem-se na alínea f) as relativas a “contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo”.
E quanto a nós o caso em apreço.
Como observa o douto parecer do MP, “enquanto concessionária do serviço de fornecimento de água aos munícipes de Paredes, prossegue a A. fins de interesse público, liquidando e cobrando quantias (equivalentes a tarifas), fixadas, ao abrigo de poderes conferidos por instrumentos normativos de direito administrativo, actos que a lei prevê como estando incluídos no âmbito de aplicação do Código de Procedimento Administrativo, competindo a fiscalização da sua legalidade aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal (DL 379/93, de 5 de Nov. e arts. 2º, nº 3 e 178º, ambos do CPA). E, se bem que a lei não preveja, no caso, a possibilidade da concessionária poder obter a cobrança coerciva das prestações em dívida através do processo de execução fiscal, o que seria um sinal evidente da sua natureza tributária, não se vê como não incluir na categoria de actos geradores de relações jurídico-tributárias aqueles que impõem aos utilizadores uma prestação pecuniária cuja formação, como refere o Acórdão do T. Conflitos de 25.06.2013 - Conf. 033/13, “assenta em tarifas, encargos e eventualmente taxas que são a final estabelecidas pelo detentor do exclusivo do serviço, o Município (...), segundo poderes e normas de direito administrativo”. É de referir a este propósito que o poder conferido a cessionária pelo art. 13.º, nº 2 do DL 379/93, de 5 de Nov. de “fixar, liquidar e cobrar uma taxa aos utentes” é um poder condicionado pela prévia aprovação da autoridade administrativa concedente o que, salvo melhor entendimento, conforma uma realidade jurídica que releva de uma ambiência de direito público e não de um exercício de direito privado.
No caso em apreço, como se salienta no Acórdão do T. Conflitos de 26-06-2014 - 021/14, a autora é concessionária do serviço público de fornecimento de água do concelho de Paredes e nessa medida, "actua em substituição do Município e munida dos poderes que lhe são atribuídos nessa área”.

E no mesmo sentido, ou seja de deferir a competência à jurisdição administrativa e fiscal, também a jurisprudência claramente maioritária do Tribunal de Conflitos como o evidenciam os acórdãos de 25 de Junho de 2013 (Proc. n.º 033/13), de 26 de Setembro de 2013 (Proc. n.º 030/13), de 5 de Novembro de 2013 (Proc. n.º 039/13), de 18 de Dezembro de 2013 (Proc. n.º 038/13) e de 18 de Dezembro de 2013 (Proc. n.º 053/13), de 29 de Janeiro de 2014 (Proc. n.º 61/13), de 27 de Março de 2014 (Proc. n.º 054/13), de 19 de Junho de 2014 (Proc. n.º 022/14), de 26 de Junho de 2014 (Proc. n.º 21/14).
ACÓRDÃO

Pelo exposto, acorda-se neste Tribunal de Conflitos em declarar competentes para apreciar a questão os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Sem custas.

Lisboa 13 de Novembro de 2014. - Fernando da Conceição Bento (relator) - Vitor Manuel Gonçalves Gomes - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - António da Silva Gonçalves - Alberto Augusto Andrade de Oliveira - José Augusto Fernandes do Vale(vencido: atribuiria a competência aos Tribunais comuns, conforme voto de vencido aposto no Proc. n.º 45/13).