Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:03/04
Data do Acordão:10/12/2004
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FERNANDA XAVIER
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS TRIBUTÁRIOS.
Sumário:I-A jurisdição competente para apreciar a pretensão da recorrente de entrega do bem que lhe foi adjudicado em execução fiscal pendente na repartição de finanças é a jurisdição administrativa e fiscal e não a jurisdição comum.
II-E dentro da jurisdição administrativa e fiscal, são competentes os tribunais tributários.
Nº Convencional:JSTA00062191
Nº do Documento:SAC2004101203
Data de Entrada:02/27/2004
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE ÍLHAVO E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO.
Objecto:AC TR COIMBRA.
Decisão:DECLARA COMPETENTES OS TRIBUNAIS TRIBUTÁRIOS.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Área Temática 2:DIR JUD - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:ETAF84 ART3 ART8 ART62 N1 I.
CPPTRIB99 ART10 N1 F ART97 N1 ART151 N2.
CPC96 ART901.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC701/02 DE 2002/05/09.; AC STAPLENO PROC41403 DE 1996/10/03.; AC STAPLENO PROC41487 DE 1997/02/26.; AC STAPLENO PROC40247 DE 1998/02/02.; AC STAPLENO PROC285/03 DE 2003/02/27.; AC TC 37/94 DE 1994/05/11.; AC TC 347/97 IN DR DE 1997/07/25.; AC TC 508/94 IN DR DE 1994/12/13.
Referência a Doutrina:TEIXEIRA DE SOUSA ESTUDOS SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL PAG102.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:
I- RELATÓRIO
A...., com os sinais dos autos, interpõe recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido nos presentes autos de embargos de executado, deduzidos por B... e C..., com os sinais dos autos, o qual confirmou a sentença do Mmo. Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Ílhavo, que se declarou incompetente, em razão da matéria, para conhecer da execução para entrega de bem adjudicado em execução fiscal, instaurada pela ora recorrente contra os embargantes e absolveu estes da instância executiva, recurso que foi admitido para o Tribunal de Conflitos, nos termos do artº 107º, nº2 do CPC.
A recorrente termina as suas alegações de recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1. Nos tribunais tributários discutem-se relações jurídico-tributárias ou questões fiscais.
2. O tribunal tributário é incompetente, em razão da matéria, para conhecer de um pedido executivo para entrega de coisa certa.
3. Sendo o tribunal judicial o tribunal regra e de competência genérica, todas as acções que exorbitam da competência dos tribunais especiais, caiem na sua esfera de competência geral.
4. Discutindo-se nos autos a entrega de bem arrematado em execução fiscal, tal pedido de entrega tem que ser deduzido na jurisdição regra ou comum.
5. Logo, o tribunal judicial de 1ª Instância é competente em razão da matéria para conhecer e se pronunciar sobre o pedido de entrega judicial de bem.
6. Portanto, deve ser proferido acórdão por este Venerando Supremo Tribunal a decidir qual o Tribunal competente.
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Contra-alegaram os recorridos, CONCLUINDO assim:
I- Os Tribunais Fiscais são materialmente competentes para todos os actos relacionados com as execuções fiscais – designadamente para a entrega de bens adjudicados em venda judicial ao respectivo adquirente.
II-Embora, como em muitos outros casos e situações do processo tributário, com recurso e aplicação subsidiária do disposto no processo civil.
III-Assim e salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, não devem ser acolhidas as doutas Conclusões da Recorrente.
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O Digno Magistrado do MP junto deste STA, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, por considerar competentes os tribunais tributários.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
O acórdão recorrido deu como provado que:
De acordo com o requerimento inicial da execução instaurada pela aqui embargada, correu termos no serviço de Finanças de Ílhavo execução fiscal, em que eram executados os também ora embargantes e no qual foi arrematado por aquela o identificado prédio urbano, cuja entrega pede no tribunal comum.
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Vêm os autos, em recurso, a este Tribunal de Conflitos, para decidir qual a jurisdição competente para apreciar o pedido da exequente, ora recorrente, formulado junto do Tribunal Judicial da comarca de Ílhavo, de entrega de um bem, que lhe foi adjudicado em venda efectuada nuns autos de execução fiscal, que contra os ora recorridos corre termos na Repartição de Finanças de Ílhavo.
Trata-se de uma situação de pré-conflito e não de um verdadeiro conflito, uma vez que só os tribunais judiciais se pronunciaram sobre a questão da sua competência para conhecer da pretensão da ora recorrente, pelo que tendo o Tribunal da Relação considerado que a causa pertencia ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, mais precisamente aos tribunais tributários, cabe, efectivamente, a este Tribunal de Conflitos fixar a competência para a causa, nos termos do citado artº 107º, nº2 do CPC.
Apreciemos então:
Decidiu o Mmo juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Ílhavo (1º Juízo), que aquele Tribunal era incompetente, em razão da matéria, para conhecer da pretensão da exequente, ora recorrente, de entrega de um bem vendido em execução fiscal, por ser competente para o efeito o Tribunal Tributário e absolveu os RR, ora recorridos, da instância executiva.
Tal decisão veio a ser confirmada, em recurso, por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que, após concluir que é pela Lei nº15/2001, de 05.06, que se há-de aferir se a questionada competência radica nos tribunais tributários, face ao estatuído no artº64º dessa mesma Lei, que determina se atenda à alteração da lei reguladora da competência quanto aos processos pendentes, fundamenta assim a sua decisão:
« Como já salientamos, está aqui em causa a adjudicação de um bem a um particular, cujo despacho, pela sua natureza decisória e vinculativa, pode ser equiparado a uma sentença. Assim sendo, de harmonia com o estatuído pelo já citado artº157º seria competente para a execução para entrega de coisa certa o tribunal administrativo e que, no caso concreto, por força do já também indicado artº102º, será competente o tribunal tributário.
Todavia, outro argumento se pode invocar a favor de tal competência, se atendermos ser o tribunal o melhor colocado para conhecer dos termos ou do teor das possíveis decisões proferidas no âmbito do processo fiscal e, ainda, da identificação do fiel depositário e seu eventual não cumprimento quanto à entrega da coisa. Efectivamente, prescreve o artº233º, alínea a) ( Lei 15/2001), que “ para os efeitos da responsabilização do depositário pelo incumprimento do dever de apresentação de bens, aquele será executado pela importância respectiva, no próprio processo, sem prejuízo do procedimento criminal.” Desconhece-se se teve lugar ou não tal nomeação, embora se possa inferir pela positiva, pelo que em tal hipótese o exequente deverá fazer uso do direito que lhe concede o mencionado artº233º e tal como estabelece este preceito, “ no próprio processo”, isto é, da execução fiscal. Deste modo e analisando o caso pela vertente acabada de referenciar, chega-se também à conclusão de ser competente o tribunal tributário».
Discorda o recorrente do referido acórdão, porque entende, em síntese, que o Tribunal Tributário é um tribunal de competência limitada às matérias que lhe são especialmente atribuídas, competindo-lhe “dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas fiscais (artº212º da CRP) e a pretensão da recorrente não importa a apreciação de um litígio dessa natureza. Trata-se antes de execução para entrega de um bem na qual não se discute qualquer relação tributária ou questão de direito fiscal. Aliás, no processo executivo tributário não existe previsão para uma tal execução. Logo, sendo o CPC o direito subsidiário (artº2ºCPPT), não sendo da competência da jurisdição tributária a entrega de bens, remetendo-se claramente para o CPC, aplicando-se o artº901º do mesmo, temos que o Tribunal Judicial, como jurisdição regra, é o competente para a execução peticionada.
Falece-lhe, porém, razão.
Com efeito, nos termos do nº3 artº 212º da CRP, « Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais
Este preceito constitucional veio, assim, definir a área própria da nova ordem judicial administrativa e fiscal.
Trata-se de uma cláusula geral, que consagra o núcleo essencial dessa jurisdição.
Com base neste preceito constitucional, pode-se hoje afirmar que os tribunais administrativos e fiscais são os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, tendo reserva de jurisdição nessas matérias, excepto nos casos que, pontualmente, venham a ser atribuídos por lei especial a outra jurisdição. Neste sentido, se tem pronunciado este STA e o Tribunal Constitucional, como se vê dos Acs. do STA 03.10.96 (Pleno), rec. 41.403, de 26.02.97 (Pleno), rec. 41 487, de 2.02.98 (Pleno), Rec.40247 e de 27.02.2003, rec. 285/03 e do TC nº 37/94, de 37/94, de 11.05.94, P.372/94, DR 07.09.94, 347/97, DR 25.07.97 e 508/94, DR 13.12.94.
Em concretização dessa norma constitucional, o anterior artº3º do ETAF (ou seja, o ETAF aprovado pelo DL 124/84, de 27.04, com as alterações introduzidas pelo DL 229/96, de 29.11, hoje revogado pela Lei nº13/2002, de 19.02, entrada em vigor em 01.01.2004- cf. artº9º da Lei nº4-A/2003, de 19.02), diploma aqui aplicável, porque a competência se fixa no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente ( cf. artº5º do actual ETAF e arº8º do anterior), dispunha que « Incumbe aos tribunais administrativos e fiscais na administração da justiça assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais» e os artº26º, 30º, 32º, 33º, 40º, 41º, 42º, 51º e 62º desse diploma, distribuíam a competência, em razão da hierarquia, pelos diversos tribunais da jurisdição.
Ora, segundo o artº62º, alínea i) do revogado ETAF « compete aos tribunais tributários de 1ª instância conhecer das questões e incidentes que se suscitem nos processos de execução fiscal para cujo conhecimento não sejam competentes os serviços de administração fiscal
E é assim, porque « aos serviços da administração tributária cabe instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no nº1 do artº151º do presente Código» (cf. artº10º, nº1,f) do CPPT).
E o artº 151º do CPPT dispõe que:
1. «Compete ao tribunal tributário de 1ª Instância da área onde correr a execução, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a graduação e verificação de créditos e as reclamações dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos de execução fiscal.
2. O disposto no presente artigo não se aplica quando a execução fiscal deva correr nos tribunais comuns, caso em que cabe a estes tribunais o integral conhecimento das questões referidas no número anterior
Aliás, nos termos do artº97º, nº1 do CPPT, o processo judicial tributário compreende, além do mais, alínea n) « o recurso, no próprio processo, dos actos praticados na execução fiscal» e alínea o), « a oposição, os embargos de terceiros e outros incidentes e a verificação de créditos».
Dos preceitos legais atrás citados, decorre, com clareza, que todos os incidentes jurisdicionais suscitados em processo de execução fiscal que corra nas repartições de finanças, são da competência dos tribunais tributários da respectiva área.
O que, de resto, não podia deixar de ser, primeiro porque, sendo jurisdicionais, não podem ser conhecidos pelos serviços de administração tributária onde corre a execução fiscal, segundo porque, em processo tributário, vigora também o princípio geral, segundo o qual «o tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa» ( cf. artº96º, nº1 do CPC ex vi do artº2º do CPPT). Este princípio é válido para a execução fiscal, com as devidas adaptações dado a sua estrutura mista.
É, pois, aqui absolutamente irrelevante, que a questão concreta agora sob litígio (o pedido de entrega, pelo adquirente, de um bem vendido em execução fiscal) não seja materialmente uma questão fiscal, no sentido de que não se trata de um litígio onde se discute uma relação jurídica fiscal, como refere a recorrente, pois também o não é o pedido de anulação da venda, por exemplo. É que a competência do tribunal tributário, em sede de execução fiscal, decorre deste processo ter por objectivo primacial a cobrança coerciva de créditos tributários, podendo abranger também outras dívidas ao Estado e a pessoas colectivas de direito público fixadas por acto administrativo, reembolsos e reposições (cf. artº148º do CPPT), ou seja, decorre ainda de uma relação jurídica de natureza fiscal ou administrativa. Aliás, se se tratar de execução por créditos de outra natureza, mas que, por força de lei especial, deva seguir os termos da execução fiscal e correr nos tribunais comuns, caberão a esses tribunais conhecer dos respectivos incidentes, como expressamente se fez constar no já citado nº2 do artº151º do CPPT.
De resto, nem poderia ser de outra maneira, sob pena de intromissão de juízes de uma jurisdição, na competência de juízes de outra jurisdição autónoma.
Ora, a venda do bem cuja entrega judicial a recorrente pretende, teve lugar, segundo ela própria alega, na repartição de finanças de Ílhavo, no âmbito de um processo de execução fiscal ali pendente, que, como vimos, é da competência da repartição de finanças, quanto aos incidentes não jurisdicionais e da competência do tribunal tributário da área da repartição, quanto aos incidentes jurisdicionais.
Não restam hoje dúvidas, que a entrega de bem vendido em execução, deve ter lugar no próprio processo executivo, através do incidente previsto no artº901º do CPC, que dispõe, na actual redacção, que «o adquirente pode, com base no despacho a que se refere o artigo anterior» (despacho de adjudicação dos bens), «requerer o prosseguimento da execução contra o detentor dos bens, nos termos prescritos para a execução para entrega de coisa certa». (sublinhado nosso). (vide a este propósito, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, pág. 102)
Tendo o incidente previsto no artº901º do CPC, sem dúvida, natureza jurisdicional, a competência para dele conhecer em processo de execução fiscal pendente na repartição de finanças, cabe ao tribunal tributário da respectiva área, por força dos já citados artº 62º, nº1,i) do ETAF e artº151º, nº1 do CPPT.
Nem sequer é, pois, necessário o recurso à aplicação subsidiária do citado artº901º, uma vez que o artº151º, nº1 do CPPT atribui expressamente ao tribunal tributário competência para conhecer de qualquer incidente de natureza jurisdicional, suscitado em execução fiscal. De qualquer modo, mesmo que assim não fosse, tal preceito do processo civil sempre seria subsidiariamente aplicável no processo tributário ex vi do artº2º do CPPT.
Não faz hoje qualquer sentido invocar que a jurisdição administrativa e fiscal é uma jurisdição limitada e não tem competência para conhecer de um pedido executivo para entrega de coisa certa.
Como é sabido, desde a revisão constitucional de 1997, está consagrado na CRP o princípio da tutela jurisdicional efectiva, o que, além do mais, impõe que os tribunais administrativos e fiscais, como tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, tenham os meios processuais adequados para dar satisfação às pretensões formuladas pelos administrados em processos da sua competência, se necessário com recurso à aplicação subsidiária das normas do processo civil, pelo que as normas processuais administrativas e tributárias devem ser interpretadas em conformidade com aquele princípio constitucional.
Por outro lado, o facto de a recorrente ter usado do processo de execução para entrega de coisa certa, em vez de deduzir a sua pretensão no processo de execução fiscal, através do competente incidente, em nada altera, naturalmente, a competência do tribunal, já que, como é jurisprudência deste STA, a competência do tribunal é questão que se não confunde com a da idoneidade do meio processual e deve ser aferida partindo da análise da relação jurídica processual tal como é apresentada em juízo pela parte e, portanto, independentemente da idoneidade do meio processual de que aquela se socorreu.(cf. Ac. STA de 09.05.2002, P.701/02).
Assim e embora por razões diversas das referidas no acórdão recorrido, entende-se que a jurisdição competente para apreciar a pretensão executiva formulada pela ora recorrente junto do Tribunal Judicial da comarca de Ílhavo é a jurisdição administrativa e fiscal e, dentro desta, os tribunais tributários, pelo que o recurso não pode lograr provimento.
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III- DECISÃO
Termos em que, acordam os juízes deste Tribunal de Conflitos, em negar provimento ao recurso e declarar competente para conhecer do pedido de entrega do bem adjudicado à recorrente em execução fiscal, o tribunal tributário da área onde corre a execução.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Outubro de 2004. – Fernanda Martins Xavier (relatora) - Manuel Maria Duarte Soares – António Bento São Pedro – António Políbio Henriques – José Salreta Pereira.