Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:024/14
Data do Acordão:12/09/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FERNANDA MAÇÃS
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA.
CONTRATO DE CONCESSÃO.
CONTRATO DE FORNECIMENTO.
Sumário:I - Nas relações entre as entidades gestoras dos sistemas multimunicipais de águas e resíduos com os municípios utilizadores em “alta”, os municípios utilizadores, ainda que ligados à concessionária do sistema por um contrato de fornecimento ou de recolha de efluentes, não podem ser qualificados como utentes para os efeitos da Lei nº 23/96, uma vez que são eles simultaneamente os fornecedores dos munícipes em baixa.
II - Estamos claramente no domínio de relações entre duas entidades públicas que prosseguem interesses públicos relevantes e nessa qualidade assumiram direitos e obrigações recíprocos, cujo regime se rege essencialmente por um contrato de fornecimento, que, por sua vez, assenta e é moldado com base no contrato de concessão de serviço público.
III - Os tribunais competentes para apreciarem a ação resultante do incumprimento do contrato de recolha de efluentes, celebrado entre uma concessionária e um município são os tribunais administrativos, atento o disposto no artº 4º, nº 1, alínea d), do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P18349
Nº do Documento:SAC20141209024
Data de Entrada:04/10/2014
Recorrente:ÁGUAS DO NOROESTE, S.A., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O 3º JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE BARCELOS E O TAF DE BRAGA.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 24/14

Acórdão em conferência no Tribunal dos Conflitos

I- RELATÓRIO

1- ÁGUAS DO NOROESTE, S.A., com os sinais dos autos, vem requer a este Tribunal para julgar o conflito entre o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 23/01/2014, que julgou materialmente incompetentes os Tribunais Comuns para apreciarem a ação resultante de incumprimento de contrato de recolha de efluentes, celebrado entre uma concessionária e um município, por pertencerem tais questões à jurisdição administrativa, e o TAF de Braga que havia decidido em sentido contrário.

2- Admitido o conflito, a Recorrente conclui do seguinte modo:
“1. Apresentou a Recorrente (Rec.te), junto do Balcão Nacional de Injunções, requerimento de injunção contra o Recorrido (Rec.do),
2. Tendo os autos remetidos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga para distribuição.
3. Foi proferida decisão que julgou materialmente incompetente o Tribunal Administrativo, por aí se considerar que o incumprimento de uma obrigação resultante da celebração de um contrato de prestação de serviços configura uma relação de direito privado, absolvendo-se o Réu da instância.
4. Intentou, então, a aqui Rec.te, junto do Tribunal Judicial de Barcelos, ação declarativa com processo ordinário, pedindo a condenação do Rec.do no pagamento da quantia de € 81.477,84, acrescida de juros vencidos e vincendos e até integral pagamento.
5. Foi proferido despacho saneador, julgando o Tribunal Judicial de Barcelos competente em razão da matéria.
6. Inconformado, apelou o Réu para o Tribunal da Relação de Guimarães, o qual decidiu:
O tribunal comum é incompetente em razão da matéria para apreciar uma ação baseada no incumprimento de contratos de fornecimento de água para consumo público e de recolha de efluentes, celebrados entre uma concessionária desses serviços e um município, impróprios de relações de natureza tipicamente privada, como é o sistema multimunicipal de contínuo abastecimento de água e de saneamento, por pertencerem à jurisdição administrativa.
7. Impõe-se dirimir o presente conflito negativo de jurisdição.
8. Salvo o devido respeito, a questão destes autos assenta, entre outras com ela conexos, instrumentais ou complementares, numa prestação de serviços.
9. A relação contratual em causa nos autos é uma relação jurídica de direito privado, no âmbito de um contrato de prestação de serviços - desenvolvimento dos projetos de execução das redes de distribuição de água e de recolha de efluentes em baixa do Rec.do.
10. O crédito que a Rec.te pretende cobrar por meio da ação não surge conexionado com qualquer relação jurídica administrativa, antes com uma relação de direito privado.
11. No caso em apreço, as questões decidendas não emergem de uma relação jurídica administrativa, nem a Rec.te fundamentou o seu pedido em quaisquer normas de direito administrativo.
12. É pacífico o entendimento de que o pressuposto processual da competência se determina em função da ação proposta, tanto na vertente objetiva, atinente ao pedido e à causa de pedir, como na subjetiva, respeitante às partes (entre muitos outros, cfr. os Ac. do Tribunal de Conflitos de 28-09-10, 20-09-11 e 10-07-12, www.dgsi.pt. importando essencialmente para o caso ter em consideração a relação jurídica invocada.
13. Conforme se pode verificar pelo pedido formulado e da causa de pedir que o sustenta, a Rec.te apenas alude a um contrato de prestação de serviços de natureza exclusivamente civil, sem qualquer característica de contrato administrativo, e sem qualquer sujeição a normas de direito administrativo.
14. Ora, salvo o devido respeito, a ação proposta, o seu fundamento essencial e os pedidos nela formulados são típicos de processos que correm e cabem aos tribunais comuns, sendo que a sua resolução não implica a aplicação de quaisquer regimes de direito público.
TERMOS EM QUE
pelo exposto, pelo mérito dos autos e pelo que doutamente será suprido deve o presente conflito negativo de jurisdição ser resolvido, determinando-se qual o Tribunal competente, se o Administrativo e Fiscal de Braga, se o Judicial de Barcelos, para julgar a ação.”

3- O Município de Valença apresenta as suas contra-alegações, com as conclusões seguintes:
“(…)
I. Anteriormente à propositura desta ação a A. instaurou contra o R. uma injunção, indicando como tribunal competente, para o caso de a injunção vir a dar lugar a ação judicial, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, sendo que à injunção foi deduzida oposição, pelo que o processo foi remetido para aquele Tribunal, onde deu lugar ao processo nº 1866/12.7BEBRG e onde foi decidida a incompetência material do TAF, por ter sido entendido que a competência pertencia aos tribunais comuns, face ao que foi decidida a absolvição do R. da instância, decisão que transitou em julgado.
II. Atentando-se, todavia, no texto da douta decisão proferida pelo TAF de Braga, logo se intui que a mesma incorreu em manifesto lapso, sendo que toda a lógica da decisão assentou numa relação pretensamente estabelecida entre a A. e um particular (o Sr. B………..) com a celebração de um contrato de prestação de serviços de fornecimento de água e de recolha de resíduos e girou à volta do incumprimento da contraprestação a que o particular se obrigou e do consequente crédito daí resultante para a A.
III. É um facto que a Ma. Juíza que proferiu a decisão, mais tarde veio retificar o nome do R., sendo que, todavia, não atentou em que isso alterava toda a lógica da situação de facto apreciada e que nada tinha a ver com a situação constante da injunção instaurada pela A., porquanto o R. não era nenhum particular, mas antes o Município de Valença, que é uma pessoa coletiva territorial de direito público e também o litígio não assentava, simplesmente, num mero contrato de prestação de serviços, mas antes num contrato de fornecimento contínuo de água "em alta" e de recolhe de efluentes, celebrado entre a concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Minho e Lima (mais tarde, do Noroeste).
IV. Ele assentava, essencialmente, num Protocolo celebrado entre as partes outorgantes no mesmo, a então concessionária Águas do Minho e Lima, S. A. e o Município de Valença, com direitos e obrigações de diferente natureza nele estabelecidos e abrangendo matérias variadas, nomeadamente o desenvolvimento dos projetos de execução das redes de distribuição de água e recolha de efluentes em "baixa" do Município Réu, com a promoção dos respetivos procedimentos pré-contratuais públicos de acordo com o regime previsto para a contratação pública, o desenvolvimento do Plano de Ação para a realização das redes de distribuição de água e de recolhe de efluentes em "baixa" de todo o Sistema, incluindo as do Município Réu, com a definição dos montantes totais do investimento, o cronograma de desenvolvimento e as prioridades, de modo a poderem ser objeto de candidatura aos fundos comunitários previstos para o QREN que vigoraria entre 2007 e 2013, a transferência para o Município dos projetos de execução desenvolvidos no âmbito do Protocolo, a forma do seu pagamento, etc., etc.
V. Por outro lado, a A. foi constituída pelo DL. 41/2010, de 29 de abril, que simultaneamente criou o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste, integrando como utilizadores originários os municípios de Amarante, Amares, Arcos de Valdevez, Barcelos, Cabeceiras de Basto, Caminha, Celorico de Basto, Esposende, Fafe, Felgueiras, Guimarães, Lousada, Maia, Melgaço, Monção, Mondim de Basto, Paredes de Coura, Ponte da Barca, Ponte de Lima, Póvoa de Lanhoso, Póvoa de Varzim, Santo Tirso, Terras do Bouro, Trofa, Valença, Viana do Castelo, Vieira do Minho, Vila do Conde, Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Famalicão, Vila Verde e Vizela, sendo que o mesmo veio substituir o sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água do norte da área do Grande Porto, criado pela alínea d) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto - Lei nº 379/93, de 5 de novembro, o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Minho - Lima, criado pelo Decreto - Lei n.º 158/2000, de 25 de julho (no qual o Réu se integrava), e o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Vale do Ave, criado pelo Decreto - Lei n.º 135/2002, de 14 de maio.
VI. A A. é, aliás, uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, constituída mediante a fusão das sociedades Águas do Cavado, S.A., Águas do Minho e Lima, S. A., e Águas do Ave, S.A., sendo que, nos termos do artigo 10.º, o membro do Governo responsável pela área do ambiente ficou autorizado a celebrar em nome e representação do Estado o contrato de concessão do sistema com a A., a ser outorgado no prazo máximo de dois meses contados da data de entrada em vigor do diploma, retroagindo os seus efeitos ao 1.º dia útil do mês seguinte àquele em que se viesse a operar a fusão das sociedades, prevista no n.º 3 do artigo 4.º do mesmo e, nos termos do artigo 11.º, a articulação entre o sistema explorado e gerido pela concessionária (isto é, pela A.) e o sistema correspondente de cada um dos municípios utilizadores seria assegurada através de contratos de fornecimento e recolha a celebrar entre a concessionária e cada um dos municípios.
VII. A A. veio a celebrar com o Estado Português, em Guimarães, em 30 de junho de 2010, a referida concessão, mediante a qual lhe foi atribuído, em exclusivo, a concessão, gestão e exploração, que abrangia a conceção, construção das obras e equipamentos, bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção, do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste, ficando, em consequência, investida em várias prerrogativas de direito público, incluindo o direito de recorrer ao instituto das expropriações por utilidade pública, tendo sido nessa qualidade de concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste que a A. e ora recorrida (e a sua antecessora, Águas do Minho e Lima, S.A., que também ela tinha celebrado com o Estado Português um contrato de concessão semelhante), estabeleceram relações com o R. e com os restantes municípios por ele abrangidos, seja no que respeita ao Protocolo de Espinho, que adiante se fará referência, seja em relação aos fornecimentos de água em "alta" e de recolha de efluentes, que constituía sua obrigação nos termos da concessão já referida.
VIII. Estamos, assim, claramente no domínio relações entre duas entidades que prosseguem interesses públicos relevantes e que nessa qualidade assumiram direitos e obrigações recíprocos, daí que as relações entre si estabelecidas são relações administrativas e a resolução dos respetivos conflitos compete, claramente, aos tribunais da jurisdição administrativa, e jamais aos tribunais judiciais.
IX. E mesmo os contratos de aquisição de serviços ou de prestação de serviços (na ótica do prestador) celebrados pelo Município, seja com um particular, seja, por maioria de razão, com um concessionário de serviço público ou de exploração de bens do domínio público, são sempre contratos de direito administrativo, como claramente são definidos nos artigos 1º/6, 278º e 450º do Código dos Contratos Públicos, pelo que, ao contrário daquilo que a A. alega e que o despacho recorrido subscreve, não estamos perante relações de direito privado nem perante contratos de prestação de serviços no âmbito do direito privado, nem muito menos as partes se encontram numa posição de igualdade do ponto de vista contratual.
X. Aliás, a própria A. no ponto 2. da réplica que apresentou nos autos, vem admitir que "É certo que se tem entendido, maioritariamente, que para a matéria como a que neste processo se discute são competentes os Tribunais Administrativos" Por essa razão, indicou a A, anteriormente à propositura desta ação e como tribunal competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga", pelo que dúvidas não podem existir de que o Tribunal competente para apreciar o presente litígio é o TAF de Braga.
XI. O douto Acórdão recorrido não merece, assim, a critica que lhe é feita pela recorrente, que se limita a alegar, sem qualquer substanciação, que estamos perante um contrato de direito privado e que não foi estabelecida qualquer relação jurídica administrativa.(…).”

5- O Exm° Procurador - Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo pela competência da jurisdição administrativa.

6- Sem vistos, mas com distribuição prévia do projeto de acórdão, cumpre decidir.

II- FUNDAMENTOS

1. Constitui pacífico entendimento jurisprudencial e doutrinário que a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respetivos fundamentos (causa de pedir) - cfr., entre outros, os Acórdão do Tribunal dos Conflitos: de 21/10/04 proferido no Conflito 8/04; de 23/5/2013, Conflito nº 12/12; e de 21/1/2014, Conflito nº 44/13.
No caso dos autos, a ora Recorrente começou por intentar, junto do balcão de injunção, requerimento para pagamento de faturas respeitantes ao incumprimento do contrato de fornecimento de água para consumo público e de recolha de efluentes, celebrado entre a então concessionária (Águas do Minho e Lima, S.A.) e o Município de Valença, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia € 81.477, 84, acrescida dos juros moratórios vencidos e os vincendos até efetivo e integral, por via do fornecimento a prestação do referido serviço.
Como ficou dito, no TAF de Braga julgou-se pela competência dos tribunais comuns enquanto o Tribunal da Relação de Guimarães conclui pela jurisdição administrativa como a competente para a apreciação do litígio em causa, decisão assente no pressuposto da natureza administrativa do contrato celebrado entre a Autora e o Município de Valência.
Vejamos.

2. O Decreto-Lei nº 379/93, de 5 de novembro, operou a distinção entre sistemas municipais de titularidade municipal, reservados para a prestação de serviços a utilizadores finais ou em “baixa” (munícipes) e sistemas multimunicipais de titularidade estatal, de importância estratégica, reservados para o segmento de atividade dita em “alta”, cujos utilizadores são essencialmente os municípios (arts. 1º e 2º).
Se bem que no Acórdão do Tribunal de Conflitos nº 44/13, de 21 de janeiro de 2014, se tenha referido que o contrato de fornecimento de água ao domicílio (em “baixa”) que liga o prestador do serviço e o consumidor/utilizador final “não é atingido por uma regulação de direito público”, valendo esta asserção quer o serviço seja fornecido diretamente pelo município, através de um serviço municipal ou municipalizado, quer seja fornecido indiretamente através da criação de uma empresa municipal ou da celebração de um contrato de concessão de serviço público com um particular. Termos em que a apreciação dos litígios sobre o incumprimento destes contratos não caberia aos tribunais da jurisdição administrativa.
A justificar a tese apontada foram adiantados essencialmente dois argumentos: a) A qualificação dos utentes de serviços essenciais como consumidores, nos termos e para os efeitos da aplicação da Lei nº 23/96, de 26 de julho; b) A natureza privada dos contratos celebrados entre os prestadores de serviços essenciais e os utentes, por se tratar de contratos de consumo, contratos de massa essencialmente regulados pela Lei nº 23/96.
Não obstante o exposto, formou-se jurisprudência maioritária deste Tribunal de Conflitos que são os tribunais tributários os competentes para dirimir os litígios derivados do não pagamento de faturas relativas ao fornecimento de água por uma concessionária da exploração e gestão dos serviços municipais de abastecimento a um utilizador (cfr., entre outros, o Acórdão nº 1/14, de 27/3/2014).
Acontece que esta jurisprudência terá, por maioria de razão, de ser aplicada no caso dos autos pelas razões que passamos a expor.

2.1.1. Em primeiro lugar, no caso dos autos, os municípios utilizadores, ainda que ligados à concessionária do sistema multimunicipal por um contrato de fornecimento, não podem ser qualificados como utentes para os efeitos da Lei nº 23/96 (neste sentido, cfr. o estudo da autoria da relatora “São os municípios utentes de serviços públicos essenciais?”, Direito Regional e Local, 4, outubro/dezembro, 2008, pp. 5 ss., que, embora assente no quadro jurídico anterior às alterações introduzidas quer pelo Decreto-Lei nº 195/2009, de 20 de agosto, quer, mais recentemente, pelos decretos-leis nºs 92/2013, de 11 de julho e 96/2014, de 25 de junho, não contende com a solução do caso dos autos, pelo que o seguiremos de perto).
A Lei nº 23/96, de 26 de julho, veio instituir mecanismos de proteção do utente de serviços públicos essenciais, tendo classificado como tal os serviços de fornecimento de água, energia elétrica, gás e telefone (art. 1º, nº 2).
Na sua versão inicial prevê-se apenas a definição de utente de serviços públicos essenciais, dizendo-se que “Considera-se utente, para os efeitos previstos neste diploma, a pessoa singular ou coletiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo.” A lei não identifica o utente com o consumidor, o que significa que o diploma não quis restringir o seu âmbito de aplicação ao conceito de consumidor final constante da Lei nº 24/96, de 31 de julho. Na verdade e conforme consta da exposição de motivos daquela Lei, “A necessidade de proteger o utente é maior quando ele não passa de mero consumidor final. Mas isso não significa que o legislador deva restringir o âmbito este diploma a tal situação. Encara-se o problema em termos gerais, independentemente da qualidade em que intervém o utente de serviços públicos essenciais, sem prejuízo de se reconhecer que é a proteção do consumidor a principal razão que justifica este diploma e de nele se consagrar uma proteção acrescida para o consumidor final quando é caso disso. (…)”- cfr. a Proposta de Lei nº 20/VII, aprovada em Conselho de Ministros, de 28 de março de 1996, e publicada no Diário da República, II Série, nº 33, de 4 de abril de 1996.
O entendimento de que a noção de utente da Lei nº 23/96 consubstancia um conceito mais amplo do que o de consumidor é também o sufragado quer pela Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça quer pela doutrina.
O intuito do diploma foi o de diminuir o crescente desequilíbrio criado pela falta de poder negocial dos consumidores, face às entidades prestadoras deste tipo de serviços, considerados “básicos, universais e essenciais à vida moderna” (cfr. o preâmbulo do Decreto-Lei nº 195/99, de 8 de Junho), possibilitando uma maior transparência e equidade, num mercado em crescente globalização e dominado pela figura das cláusulas contratuais gerais potencialmente mais lesivas dos direitos dos consumidores.
Para esse efeito, confere aos utentes de serviços essenciais, os seguintes direitos: o direito de participação das organizações representativas dos utentes quanto aos atos de definição do enquadramento jurídico dos serviços públicos e demais atos de natureza genérica que venham a ser celebrados entre o Estado, as Regiões Autónomas e as entidades concessionárias (art. 2º); o dever de proceder de boa fé, tendo em conta a importância dos interesses dos utentes (art. 3º); o dever de informação do utente por parte do prestador de serviço das condições em que o serviço é fornecido (art. 4º); a proibição de suspensão da prestação de serviço público sem pré-aviso adequado (art. 5º); o direito a quitação parcial (art. 6º); o dever de obediência a padrões de qualidade (art. 7º); a proibição de imposição e cobrança de consumos mínimos (art. 8º); e o direito à faturação (art. 9º).
No caso das autarquias locais, estas podem relacionar-se com um prestador de serviços essenciais na qualidade de verdadeiras consumidoras, quando, por exemplo, contratam a prestação do serviço de telefone. Neste caso, a autarquia é a beneficiária direta ou consumidora final do serviço, relacionando-se com a entidade prestadora do mesmo na qualidade de utente, nos termos e para os efeitos da Lei nº 23/96.
Mas a autarquia local também pode intervir na qualidade de entidade responsável pela prestação do serviço público. Sendo o município, ele próprio garante e responsável da prestação do serviço, ainda que o tenha concessionado, já não poderá exigir-se a aplicação do regime protetor da Lei nº 23/96, uma vez que utente, neste caso, será o munícipe, seja pessoa singular ou coletiva, destine-se o serviço a uso doméstico ou profissional.
Exemplo paradigmático desta situação é o das relações entre as entidades gestoras dos sistemas multimunicipais de águas e resíduos com os municípios utilizadores em “alta”, uma vez que estes são também eles fornecedores/distribuidores desse mesmo serviço público prestado pelo sistema multimunicipal.

Senão vejamos.

Como vimos, em 1993, através do Decreto-Lei nº 379/93, de 5 de novembro, foram criados os sistemas multimunicipais, também denominados sistemas em “alta”, de importância estratégica, que abrangem pelo menos dois municípios e exigem um investimento predominante a realizar pelo Estado. No seguimento deste diploma, foram, posteriormente, emanados os Decretos-Leis nºs 294/94, de 16 de novembro, e 319/94, de 24 de dezembro, que vieram estabelecer o regime jurídico e aprovar as bases dos contratos das concessões dos sistemas multimunicipais de resíduos sólidos e de águas para consumo humano, respetivamente, quando atribuídos por concessão a empresa pública ou a sociedade de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos. Diplomas, por sua vez, alterados pelo Decreto-Lei nº 195/2009, de 20 de agosto, que reproduz em anexo, entre outros, o Decreto-Lei nº 319/94, de 24 de dezembro.
De acordo com o mencionado quadro, as atividades de captação, tratamento e distribuição de água para consumo humano têm natureza de serviço público e são exercidas em regime de exclusivo com base num contrato de concessão celebrado entre o Estado e uma empresa concessionária.
Por outro lado, no que se refere às relações com os municípios utilizadores, consagra-se a obrigação de os sistemas multimunicipais assegurarem o abastecimento de água nos termos dos contratos de fornecimento. Para esse efeito – relações entre a concessionária e os municípios utilizadores - refere o art. 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº 319/94, que os municípios utilizadores devem efetuar a ligação ao sistema multimunicipal gerido pela concessionária; e o nº 3 do mesmo preceito dispõe que a articulação entre cada sistema multimunicipal e os sistemas municipais abrangidos pela respetiva área é assegurada através de contratos de fornecimento a celebrar entre a concessionária e cada um dos municípios utilizadores. Este contrato de fornecimento rege-se essencialmente pelo regime jurídico constante das bases da concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público, republicadas no anexo ao Decreto Lei nº 195/2009 e o respetivo contrato de concessão.
No contexto apontado, os municípios utilizadores, ainda que ligados à concessionária do sistema multimunicipal por um contrato de fornecimento, não podem ser qualificados como utentes para os efeitos da Lei nº 23/96.
Com efeito, no quadro do arranjo institucional criado para cada sistema multimunicipal, os municípios utilizadores não deixam de ser os responsáveis pela prestação do serviço público de distribuição de água aos respetivos munícipes, que emergem aqui como consumidores finais. O que se pode dizer é que, por razões estratégicas, relacionadas com os vultosos investimentos exigidos, a concretização da prestação de serviço público exige o concurso da contribuição do Estado que, através da concessionária, assume a responsabilidade das obras necessárias à captação com vista a assegurar a oferta de água para consumo público adequada à satisfação da procura nos municípios utilizadores, sob os aspetos quantitativos e qualitativos (cfr. o nº 2 do art. 2º do Decreto-Lei nº 379/93). O que significa que a relação entre municípios utilizadores e empresa concessionária, ainda que regulada pelo contrato de fornecimento previamente outorgado entre ambos, é mais uma relação de parceria (e não de dependência) na prestação do serviço público essencial ao prestador final.
Assim sendo, uma primeira ilação que pode retirar-se é que na relação entre entidade gestora de sistemas multimunicipais e utilizadores do sistema em “alta” não se verifica a tal fragilidade que caracteriza a relação entre consumidor e fornecedor de serviço, que vimos estar presente na relação entre utente e prestador de serviços essenciais.

2.1.2. Em segundo lugar, segundo o quadro legal dos sistemas multimunicipais, o regime do contrato de fornecimento, que rege as relações entre entidade gestora e os municípios utilizadores, há de ser o que resulta fundamentalmente do clausulado do contrato de concessão, que constitui a matriz em que assenta um dado sistema multimunicipal. Clausulado aquele cujo regime obedece a preocupações de natureza diversa das que subjazem à Lei nº 23/96, tais como a necessidade de garantir a conclusão das infraestruturas da “baixa” e o equilíbrio económico das concessões.
De entre esse regime destaca-se o relativo às relações com os utilizadores, em especial a Base XXVIII que, sob a epígrafe, “obrigação de fornecimento”, refere designadamente que a concessionária se obriga a fornecer a cada um dos utilizadores, mediante contrato, a água necessária para alimentar os respetivos sistemas municipais, fixando os contratos de concessão e de fornecimento o volume de água para consumo público que cada utilizador se propõe adquirir à concessionária com referência a um valor máximo que a concessionária se obriga a garantir (cfr. nºs 1 e 2).
Segundo o nº 3, “Os contratos de concessão e de fornecimento, de forma a garantir o equilíbrio da concessão, fixamos valores mínimos anuais que cada utilizador se compromete a pagar à concessionária sempre que o valor resultante da faturação da utilização do serviço seja inferir àquele”.
Por sua vez, a Base XXIX refere-se aos ajustamentos extraordinários da oferta de água ao consumo e a Base XXXI trata da medição e faturação da água fornecida.
Ora, o regime apontado torna impraticável a aplicação da generalidade das disposições da Lei nº 23/96, nomeadamente o art. 2º (que consagra o direito de participação, fazendo apelo a associações representativas de utentes), o art. 4º (que regula o direito de informação, tendo em vista a posição de dependência do utente, conferindo-lhe mais garantias nesta matéria) e o art. 5º (quanto à suspensão do fornecimento). Tudo se conjugando, no fundo, para confirmar que a Lei nº 23/96 não teve em vista este tipo de relacionamento.
Atentas as razões apontadas, além de os municípios utilizadores de um sistema multimunicipal não poderem ser considerados utentes (no mesmo sentido, cfr. o Acórdão do STA, de 3/11/2004, proc nº 33/04), nos termos e para os efeitos da Lei nº 23/96, o regime a aplicar nas relações entre o município utilizador e a entidade gestora é essencialmente o do respetivo contrato de fornecimento, que por sua vez é enquadrado pelo contrato de concessão, não seguindo o regime que decorre daquele diploma. Por último, imporá salientar que a definição de utente depois da entrada em vigor da Lei 12/2008, de 26 de fevereiro, não alterou o acabado de expor, como se conclui no estudo que temos vindo a seguir (cfr. ob. cit., pp. 9 ss).

2.2. Aplicando o exposto ao caso dos autos, temos que, como argumenta o Recorrido, “não estamos na presença de um litígio entre a concessionária e um particular, mas antes o Município de Valença, que é uma pessoa coletiva territorial de direito público”, por um lado, e, por outro lado, o litígio não assenta, simplesmente, num mero contrato de prestação de serviços, mas antes “num contrato de fornecimento contínuo de água "em alta" e de recolhe de efluentes, celebrado entre a concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Minho e Lima (mais tarde, do Noroeste).
Regime que, segundo o Recorrido, “assentava, essencialmente, num Protocolo celebrado entre as partes outorgantes no mesmo, a então concessionária Águas do Minho e Lima, S. A. e o Município de Valença, com direitos e obrigações de diferente natureza nele estabelecidos e abrangendo matérias variadas, nomeadamente o desenvolvimento dos projetos de execução das redes de distribuição de água e recolha de efluentes em "baixa" do Município Réu, com a promoção dos respetivos procedimentos pré-contratuais públicos de acordo com o regime previsto para a contratação pública, o desenvolvimento do Plano de Ação para a realização das redes de distribuição de água e de recolhe de efluentes em "baixa" de todo o Sistema, incluindo as do Município Réu, com a definição dos montantes totais do investimento, o cronograma de desenvolvimento e as prioridades, de modo a poderem ser objeto de candidatura aos fundos comunitários previstos para o QREN que vigoraria entre 2007 e 2013, a transferência para o Município dos projetos de execução desenvolvidos no âmbito do Protocolo, a forma do seu pagamento, etc., etc.”
Por outro lado, a Autora, constituída pelo Decreto-Lei nº 41/2010, de 29 de abril, que simultaneamente criou o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste, integrando vários municípios como utilizadores originários celebrou com o Estado Português, em Guimarães, em 30 de junho de 2010, o contrato de concessão, mediante a qual lhe foi atribuído, em exclusivo, a concessão, gestão e exploração, que abrangia a conceção, construção das obras e equipamentos, bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção, do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste, “tendo sido nessa qualidade de concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste que a A. e ora recorrida (…) estabeleceu “relações com o R. e com os restantes municípios por ele abrangidos, seja no que respeita ao Protocolo de Espinho, (…), seja em relação aos fornecimentos de água em "alta" e de recolha de efluentes, que constituía sua obrigação nos termos da concessão já referida.(…)”.
Estamos claramente no domínio de relações entre duas entidades públicas que prosseguem interesses públicos relevantes e nessa qualidade assumiram direitos e obrigações recíprocos, cujo regime se rege essencialmente por um contrato de fornecimento, por sua vez assente num contrato de concessão de serviço público.
Por tudo o que vai exposto, estando em causa uma relação jurídico administrativa, não podemos deixar de concluir que a jurisdição competente para conhecer do litígio em apreciação é a jurisdição dos tribunais administrativos, atento o disposto no artº 4º, nº1, alínea d), do ETAF.

III- DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes que compõem este Tribunal, acordam em declarar os Tribunais Administrativos os competentes para conhecer da presente ação.

Sem custas.

Lisboa, 9 de Dezembro de 2014. – Maria Fernanda dos Santos Maçãs (relatora) – António Alberto Moreira Alves Velho – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego – Alberto Augusto Andrade de Oliveira – Raul Eduardo do Vale Raposo Borges.