Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01543/23.3T8GMR.S1
Data do Acordão:09/27/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o conhecimento de uma acção de indemnização proposta contra um Município e entidades privadas, pedindo a condenação solidária de todos os réus, pois os autores não se limitam a invocar genericamente a solidariedade, antes fundamentando tal pretensão na alegação de factos que a sustentam e dos quais se extrai que todos concorreram para a produção do alegado deslizamento de terras e portanto, para a produção dos prejuízos que sofreram.
Nº Convencional:JSTA000P31405
Nº do Documento:SAC2023092701543
Recorrente:AA E OUTROS
Recorrido 1:VIZELA – MUNICÍPIO
Recorrido 2:GABINETE TÉCNICO DE ARQUITECTURA DE J... ....... ......... . ....., LDA., E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 20 de Julho de 2022, AA, BB e mulher, CC intentaram no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga uma ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra o Município de Vizela, o Gabinete Técnico de Arquitetura de J... ....... ......... . ....., Lda., DD, EE e FF e mulher, GG, pedindo a condenação solidária dos réus:


a) A reconhecerem e a verem declarado que o autor AA é dono e legítimo proprietário do prédio identificado no art 1.°” da petição inicial, “com todas as consequências legais;


b) A reconhecerem e a verem declarado que os autores, BB e mulher, CC, são donos e legítimos proprietários do prédio identificado no art. 4.°” da petição inicial , “com todas as consequências legais;


c) A pagarem ao autor AA a quantia total de 130.150,88€, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescidos de juros legais até integral e efetivo pagamento, com todas consequências;


d) A realizarem obras de construção que se mostre adequada à estabilização do talude de acordo com o que for preconizado pela perícia técnica e a procederem à drenagem das águas pluviais de acordo com os respetivos projetos.


e) A pagarem ao Autor AA, pela privação do uso do prédio para o fim a que se destinava, uma quantia monetária diária a estabelecer pelo tribunal mediante a aplicação de um critério de equidade, a contar de seis meses após a ocorrência do sinistro, até que o autor seja indemnizado pelos danos patrimoniais sofridos.


f) A pagarem aos autores, BB e CC, a quantia total de 17.866,96€, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros legais até integral e efetivo pagamento, com todas as consequências legais.


g) A pagarem aos autores BB e CC no valor dos danos na bomba de água, que vierem a vierem a ser determinados após avaliação dos estragos, relegando-se a sua quantificação para execução de sentença.”.


Para o efeito, e em síntese, alegaram ter sofrido danos causados provocados por “todos os réus, por violação ilícita de um dever a que estavam cometidos”, descrevendo os danos e as actuações (por acção ou omissão) dos diversos réus, em “complementaridade de causas”.


O réu Município de Vizela contestou, pugnando pela improcedência da ação, e requereu a intervenção acessória de C....... . ......... .. ......., SA.


Igualmente contestou o réu EE. Excepcionou a incompetência material do Tribunal e a ilegitimidade passiva do 3.º réu. Na improcedência daquelas excepções, impugnou os factos e requereu a condenação dos autores por litigância de má-fé.


Contestaram também FF e mulher GG, defendendo-se por impugnação e concluindo pela improcedência da ação.


Contestaram ainda o Gabinete Técnico de Arquitetura de .... ....... ......... . ....., Lda,, HH e DD, impugnando os factos e pronunciando-se, a final, pela improcedência da ação. Requereram, ainda, a intervenção principal da Companhia de Seguros A...... ........, SA e da A.... ........ – Companhia de Seguros, SA..


Por decisão de 30 de Novembro de 2022, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga declarou a sua incompetência absoluta, em razão da matéria, para conhecer da presente ação e absolveu os réus da instância.


Sustentou, em suma, que, mostrando-se apenas alegada uma relação entre privados e não estando os réus ligados entre si por vínculos jurídicos de solidariedade, o caso dos autos não é subsumível ao n.º 2 do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais:

In casu, atendendo à causa de pedir, subjacente ao pedido formulado pelos Autores, estes pretendem que os Réus sejam solidariamente condenados a indemnizá-los pelos alegados danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do deslizamento de terras ocorrido no dia 19 de dezembro de 2019 e a executarem uma obra para estabilização do talude e de drenagem das águas pluviais.

No caso em apreço, os Autores demandam conjuntamente uma pessoa coletiva de direito público (Município de Vizela) e particulares, configurando a acção no pressuposto de que a responsabilidade entre os Réus é solidária, por terem concorrido em conjunto para a produção dos danos.

Importa, por conseguinte, aferir se estamos perante um litígio no qual devam ser demandadas conjuntamente entidades públicas e particulares, ou seja, se os Réus (Município e particulares) estão ligados entre si por vínculos de solidariedade, nos termos do n.° 2 do artigo 4.° do ETAF, caso em que a competência para dirimir o litígio pertence à jurisdição administrativa e fiscal.

Neste sentido, importa chamar à colação o disposto nos artigos 497.°, 512.° e 513.° do Código Civil (CC).

(…) Compulsados os autos, constata-se que os Réus não estão ligados entre si por vínculos jurídicos de solidariedade (sendo que a solidariedade só existe quando decorre da lei ou da vontade das partes, nos termos supra expostos, o que não ocorre no presente caso). Ao invés, a eventual responsabilidade imputada a cada um dos Réus é distinta e autónoma.


Entende-se, assim, que o presente litígio, atenta a forma como foi configurada a acção, não é enquadrável no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do disposto nos artigos 1.°, 4.° e 5.° do ETAF, razão pela qual, há que julgar procedente a exceção da incompetência material deste Tribunal.

Diferente seria, se os Autores apresentassem uma acção contra o Réu Município, invocando a relação jurídica administrativa na qual consideram a intervenção do Município (ou a sua omissão) como responsável pela produção dos danos, com o consequente pedido em conformidade, o que não acontece in casu.

Na situação subjudice, os Autores limitam-se a alegar uma relação entre privados, devido a danos decorrentes com deslizamento de terras por causa de não se ter construído uma "estrutura para contenção das terras dos lotes confinantes que se situam em cota superior".

É apodítico que os factos articulados pelos Autores são insuscetíveis de configurar um litígio decorrente de uma relação jurídica administrativa, aliás, como se denota, do seu libelo petitório.

Assim, em face da forma concreta como é configurada a ação na p.i. estamos perante matéria cuja competência pertence aos tribunais comuns dirimirem.

A incompetência material do Tribunal é uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, cuja verificação obsta ao conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição dos Réus da instância [artigo 89.°, n.°s 1,2 e 4, alínea a) do CPTA] sem prejuízo do disposto no artigo 14.°, n.°2 do CPTA.”

A requerimento dos autores, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga ordenou a remessa do processo ao Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães.


Por decisão de 21 de Março de 2023, o Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz ... julgou verificada a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria, dos tribunais comuns para a preparação e julgamento da causa, absolvendo os réus da instância.


Afirmou o Tribunal que, relativamente ao 1.º réu (Município de Vizela), sendo demandada uma pessoa de direito público e fundando-se a causa de pedir na violação de regras a que a sua actuação está sujeita na prossecução das suas atribuições (públicas), que têm sede legal no domínio do regime jurídico da urbanização e da edificação, a competência para a apreciação da causa compete à jurisdição administrativa, nos termos do art. 4.º, n.º 1, al. f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.


Acrescenta que, no caso sub judice, a solidariedade dos réus decorre do art. 497.º do Código Civil, por advir da existência de vários responsáveis pelos danos, estando, assim, verificada a previsão do art. 4.º,n.º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais:


«No caso em apreço (…), os Autores pediram o reconhecimento do direito de propriedade sobre os prédios e, depois, a condenação solidária dos Réus numa obrigação de indemnização, que foi formulada, sem diferenciação, em relação a todos os sujeitos passivos.


Esses sujeitos passivos têm distinta natureza: enquanto o 1.° Réu é autarquia local, o que constitui uma pessoa coletiva de direito público (cfr. artigos 235.71,2 e 236.71, da CRPort), os demais Réus são sujeitos de direito privado.


No que toca à causa de pedir, os Autores cumulam diferentes fontes de responsabilização: em relação ao 1.° Réu, os Autores imputam-lhe a violação de regras que, no domínio do direito da edificação e do urbanismo, respeitam ao exercício das suas atribuições e competências; quanto aos 2.°s Réus, acusam-nos de, no desenvolvimento das funções para que foram contratados, terem projectado de forma deficiente o muro; e quanto ao 3.° e os 4.°s Réus, alegam que, enquanto proprietário anterior de um dos lotes e proprietários actuais de um outro lote, ou procederem a obras sem o necessário controlo administrativo prévio (o 3.° Réu) ou não realizaram as obras de conservação necessárias (os 4.°s Réus).


Em relação ao pedido formulado quanto ao 1.° Réu, e salvo o devido respeito, entende-se que são os tribunais administrativos os competentes para a apreciação instaurada (…).


De notar que a circunstância de os Autores, a par com o pedido de condenação na obrigação de indemnização (através de reconstituição natural ou indemnização por equivalente), terem formulado o pedido de reconhecimento do direito de propriedade não retira à presente ação o propósito de, por seu intermédio, ser efetivada a responsabilidade extracontratual do 1.° Réu.


O pedido de reconhecimento do direito de propriedade é um mero pressuposto da pretensão de os Autores se verem indemnizados nos termos formulados, uma vez que é o direito de propriedade que, na perspetiva dos Autores, foi violado pelo 1,° Réu (e restantes Réus-), sendo por referência ao mesmo que deve ser apreciada a questão da ilicitude os atos e omissões imputadas ao 1.° Réu.


De facto, na presente causa, não está em crise a definição de limites materiais do direito de propriedade, não estando em causa uma pretensão de natureza jurídico-real. Quer isto dizer que o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, autonomizado nas ais, a) e b), do petitório, não altera a natureza da presente ação como destinada à efetivacao da responsabilidade contratual.


(…)A dificuldade que, nesta ação, se coloca é a de saber se deverá ser também a jurisdição administrativa a conhecer dos pedidos formulados contra os demais Réus? A dúvida provém da interpretação que deve ser dada ao artigo 4.º/2, do EATF, onde se preceitua que pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência vara dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.


No caso sub judice, salvo o devido respeito, a fonte da solidariedade tem natureza legal, atento o que prevê o artigo 497.°, do CCiv, em cujo n.° 1 se preceitua que se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade.


A solidariedade advém de haver vários responsáveis pelos danos, independentemente de os danos resultarem de um facto ilícito ou de diferentes factos ilícitos praticados por várias pessoas. Com efeito, a solidariedade tanto existe se houver mais do que um autor do mesmo facto ilícito como quando há vários autores de factos ilícitos autónomos; mister é que estes tenham sido aptos a produzir os mesmos danos, como resulta do teor literal do artigo 497.°/1. do CCiv


Por despacho de 17/05/2023, o Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz ... suscitou oficiosamente a resolução do conflito de jurisdição junto do Tribunal dos Conflitos.


2. O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que se seguissem os termos previstos na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.


O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência aos Tribunais da Jurisdição Administrativa e Fiscal, mais concretamente, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga – Unidade Orgânica ...:


«Pese embora concorrerem autónomas fontes de responsabilização, os danos a reparar são sempre os mesmos, seja por ação ou omissão do 1.° Réu, pessoa coletiva de direito público, seja por ação ou omissão dos restantes Réus, sujeitos de direito privado, sendo que no n.° 2 do art° 4.° do ETAF) não se excetuou o caso de aos demais responsáveis lhes ser imputável a violação de regras de direito privado; antes, a previsão expressa quanto ao contrato de seguro, que consta da parte final do citado artigo 4.°/2, induz a possibilidade de apreciação pela jurisdição administrativa de causas de pedir que não se baseiam em direito público.»


3. Os factos relevantes constam do relatório.


Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar a acção, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição ( “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”) e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.


Esta forma de delimitação recíproca obriga a verificar se a presente acção está abrangida pela competência da jurisdição administrativa e fiscal. Naturalmente que prevalecerá uma lei especial que seja aplicável. Com se escreveu no acórdão do Tribunal de Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18, os tribunais administrativos, “ não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]”.


Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).


Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.


A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.


4. Cumpre, portanto, definir se a competência em razão da matéria para a apreciação do litígio em causa caberá aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.


No caso dos autos, a autora alicerça o seu pedido, em síntese, nos seguintes factos:

– O 1.º autor é dono e legítimo proprietário do prédio urbano designado por Lote 14; os segundos autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano designado por Lote 15; os 4.ºs réus, FF e GG, são donos e legítimos proprietários do prédio urbano designado por Lote 33, que confronta, além do mais, com o Lote 14; todos prédios inseridos no âmbito do mesmo loteamento, localizando-se o Lote 33 numa cota superior aos Lotes 14 e 15.

– O lote 14 adveio à propriedade do 1.º autor por venda que lhe foi realizada pelo 3.º réu (EE) que, em data anterior à da celebração do contrato, executou obras de escavação e remoção de terras no referido Lote, sem ter procedido à construção de uma estrutura para contenção das terras dos lotes confinantes.

– No dia 10 de janeiro de 2016, na sequência de intensa pluviosidade, ocorreu um deslizamento de terras do Lote 34 para o Lote 14, que também confinam entre si, que provocou instabilidade no muro do lote 33

– Posteriormente, no Lote 34 foi construído, pelo seu proprietário, um novo muro de retenção e suporte de terras e executada a canalização das águas pluviais, sem que o muro do Lote 33 tenha sido intervencionado ou nele tenham sido desviadas as suas águas pluviais, agravando a instabilidade dos solos de fundação e a sua capacidade de resistência.

– Com a aquisição do Lote 14, o 1.º autor formulou, junto da junto da Câmara Municipal de Vizela, pedido de licenciamento para construção de muro interior e de suporte, em alvenaria, com altura de 4 metros, o que lhe foi deferido/aceite em 20 de Março de 2019.

– Tal pedido de licenciamentos foi elaborado e instruído com projetos da autoria dos técnicos 2.ºs réus, DD e HH, ao serviço do Gabinete Técnico de Arquitetura de J... ......... . ....., Lda.

– No dia 19 de Dezembro de 2019, na sequência de uma forte tempestade acompanhada de chuvas intensas, ocorreu o deslizamento de terras do Lote 33 para o Lote 14, que arrastou consigo uma grande quantidade de terras do logradouro do Lote 33 e o seu muro, que, por sua vez, abalroaram o muro de suporte em alvenaria, executado pelo 1.º autor, no Lote 14, projetando-se contra a habitação ali ainda em construção e provocando o colapso quase total dos elementos estruturais da habitação, causando um prejuízo de € 87.882,88, a que acresce a quantia de € 19.768, a despender para demolição e remoção de entulhos.

– O deslizamento de terras provenientes do Lote 33 causou no prédio dos 2.ºs autores, proprietários do lote 15, a destruição da construção que servia de casa das máquinas, bem como, as ligações e estruturas de pichelaria para condução da água, do sistema de rega do jardim e sistemas elétricos, cuja reconstrução e reparação, ascenderão, respetivamente, às quantias de € 6.790 e € 3.576,96.

Os autores fundam a responsabilidade do Município na circunstância de não ter usado da diligência que se lhe impunha enquanto titular da obrigação de reposição da legalidade urbanística no local, o que concorreu para a verificação do deslizamento de terras e muro do lote 33 para o 14.

Quanto aos 2.ºs réus, sustentam o dever de indemnizar no facto de as soluções técnicas projetadas e calculadas pelo Gabinete e respetivos técnicos subordinados não terem sido adequadas a impedir que o muro em alvenaria servisse para conter os efeitos decorrentes do deslizamento de terras ocorrido em 19 de Dezembro de 2019, para o lote 14, o que sucedeu em violação dos deveres profissionais que lhe são impostos.

Relativamente ao 3.º réu, alegam que procedeu à escavação do terreno sem qualquer licenciamento prévio, sem qualquer controlo e sem proceder à construção de uma estrutura para contenção de terras dos lotes confinantes que se situam em quota superior, criando, assim, uma situação de instabilidade.

No que respeita aos 4.ºs réus imputam-lhe a omissão dos deveres de manutenção e conservação do muro do lote 33, de que são proprietários, e a circunstância de a condução das águas se encontrar a decorrer em violação do projeto de águas fluviais do loteamento turístico e da habitação implantada naquele lote.

Concluem que “todos os réus, por violação ilícita de um dever a que estavam acometidos, concorreram de forma direta, por ação e por omissão, para a ocorrência do facto causador do dano”, “entendendo-se que da atividade dos réus, existe uma complementaridade de causas, decorrentes da prática de factos por vários agentes que, somados entre si, produzem os danos”.

5. Os sujeitos passivos na presente ação têm natureza distinta. O 1.º réu Município de Vizela) é uma pessoa coletiva de direito público (cfr. artigos 235.º e 236.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), sendo os demais sujeitos de direito privado.


Além disso, a responsabilidade civil atribuída ao Município de Vizela situa-se no âmbito extracontratual e funda-se exclusivamente em normas de direito público.


Segundo o disposto na al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo”.


Consta da fundamentação do acórdão do Tribunal dos Conflitos de 22 de Novembro de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 7040/22.7T8PRT.S1, o seguinte:


Decidiu-se no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 10 de Março de 2011, www.dgsi.pt., proc. n.º processo n.º 013/10: «De referir ainda que, “o novo ETAF (aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro) unificou a jurisdição no tocante à responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, desinteressando-se da questão de saber se o direito de indemnização provém de acto de gestão pública ou de gestão privada, e, do mesmo modo, integrou no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, bem como a resultante do deficiente funcionamento da administração da justiça, dissipando todas as dúvidas que pudessem colocar-se, no futuro, quanto à fronteira entre a jurisdição dos tribunais administrativos e dos tribunais comuns (cfr. artigo 4°, n.º 1, alínea g)” - acórdão do Tribunal de Conflitos de 18-12-2003, Proc.° n.° 15/03. (…)».


No mesmo sentido, pronunciou-se o Acórdão do STJ, de 1 de Março de 2018, www.dgsi.pt., processo n.º 1203/12.0TBPTL.G1.S1: “III. Com a Reforma do Contencioso Administrativo, operada pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, alterou-se, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.”.


E veja-se, ainda, mais recentemente, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 5 de Maio de 2021, www.dgsi.pt, processo n.º 03461/20.8T8LRA.S1:


“(…) o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, veio trazer para o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal todas as acções de responsabilidade civil extra-contratual instauradas contra entidades públicas, incluindo a responsabilidade resultante do exercício da função jurisdicional, tornando-se desnecessário apurar se o acto indicado como fonte da obrigação de indemnizar, como tal indicado pelo autor, deve ser considerado um acto de gestão pública ou de gestão privada”.


Essa ampliação da jurisdição administrativa, por confronto com a legislação anterior à reforma de 2002, vem aliás explicitada na Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei n.º 93/VIII/2 e da qual veio a resultar a Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: “Ao mesmo tempo, e dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios em que, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns.


A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado; já em relação às pessoas colectivas de direito privado, ainda que detidas pelo Estado ou por outras entidades públicas, como a sua actividade se rege fundamentalmente pelo direito privado, entendeu-se dever manter a dicotomia tradicional e apenas submeter à jurisdição administrativa os litígios aos quais, de acordo com a lei substantiva, seja aplicável o regime da responsabilidade das pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função administrativa.”


Assim, sendo o réu uma pessoa coletiva de direito público e fundando-se a causa em responsabilidade civil extracontratual, a competência para conhecer do presente litígio caberá aos Tribunais Administrativos, nos termos do disposto na al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (…)”.


No que respeita ao 1.º réu (Município de Vizela), a situação dos autos cai no âmbito de aplicação da citada al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.


Resta saber se a competência da jurisdição administrativa e fiscal também abrange – ou não – o conhecimento do litígio, no que respeita aos demais réus; ou seja, se pode ou não considerar-se preenchida a previsão do n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (“Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”).”


Ainda que sobre matéria diversa, o acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 22 de Março de 2023, www.dgsi.pt, processo n.º 04/21, pronunciou-se a propósito do n.º 2 do art. 4.º do ETAF, da seguinte forma:


É certo que, como supra foi relatado, o A formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais. Contudo, não enformou os fundamentos dessa sua pretensão com qualquer espécie de intervenção das entidades públicas nos factos ilícitos imputados às 1ªs RR, pelo que não ressuma da PI o fundamento previsto no citado nº 2 do art. 4º do ETAF para deverem ser demandados conjuntamente todos os RR, porquanto não se vê em que medida aqueles entes poderiam estar ligados por vínculos jurídicos de solidariedade com as demais RR (particulares), designadamente por terem concorrido em conjunto com estas para a produção dos mesmos danos (Mário Aroso de Almeida [Em “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 3ª ed., pp. 253-254] refere que aquela regra procurou obviar a dificuldades que se vinham suscitando «quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de ações de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio».).


Como uniformemente foi ponderado nos arestos deste Tribunal precedentemente referenciados, a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do artigo 513° do CC, só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao Tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos – para os poder vir a demonstrar – «de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária» [cit. acórdão de 22-03-2018 (p. 56/17)].»”. No mesmo sentido, cfr. acórdão do Tribunal dos Conflitos n.º 19/01/2022 (processo n.º 026/21).


No acórdão, também do Tribunal dos Conflitos, de 13 de Julho de 2022, proc. n.º 1974/21.3T8LRA.S1, escreveu-se, a propósito de terem sido demandadas, tal como aqui, entidades privadas “que não exercem poderes de autoridade e que não são abrangidas por nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais”:


« (…) o n.º 2 do mesmo artigo 4.º, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro (…)e que deve ser entendido em conjunto com o n.º 10 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, relativo à legitimidade passiva – traz para o âmbito da jurisdição administrativa o conhecimento de litígios que envolvem entidades privadas, desprovidas de poderes de autoridade, quando estão ligadas a entidades públicas por vínculos de solidariedade, nomeadamente nos exemplos referidos no citado n.º 2. A ampliação da competência da jurisdição administrativa verifica-se relativamente a essas entidades privadas, ou seja, só ocorre quando aquela competência abrange as entidades públicas nos termos das diversas alíneas do n.º 1 do artigo 4.º (ou de outra disposição legal) e justifica-se pela vantagem manifesta de possibilitar o conhecimento global do litígio, sem obrigar à propositura de acções diferentes em diferentes jurisdições, com a duplicação de actividade processual e o risco de decisões contraditórias (“O art. 4.º, n.º 2, do ETAF apresenta-se como uma concretização do princípio da tutela jurisdicional efectiva, designadamente dos sub-princípios da economia e da celeridade processual (…)”, escreve Sandra dos Reis Luís, O artigo 4.º, n.º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: sentido e alcance, in Comentários à Legislação Processual Administrativa, vol. I, 5.ª ed., Lisboa, 2020, pág. 407 e segs.., pág. 434).


No caso, a solidariedade foi invocada pela autora – há que ter sempre presente que a competência se afere pela forma como o autor desenha o litígio – e verifica-se, justamente, que invocou concorrência de causas dos danos que pretende que sejam ressarcidos. É claro que a Companhia de Seguros A...... ........, S.A. foi demandada por ser a seguradora do veículo de mercadorias envolvido no acidente, tendo sido a responsabilidade transferida por virtude desse contrato; a concorrência de causas alegada respeita naturalmente à actuação do respectivo condutor.


(…)


Ora a autora invocou factos aptos a desenhar uma relação de solidariedade entre os demandados, por descreverem uma concorrência de causas (…) que conduziram, sempre na sua configuração da acção, aos danos cuja indemnização pretende; (…)


Como se escreveu no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 17 de Maio de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 052/17, para ser aplicável o n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, “para o efeito de aferir a competência da jurisdição administrativa”, é necessário “que na petição inicial tenham sido articulados factos que permitam, primo conspectu, fundamentar a imputação de responsabilidade solidária às entidades públicas e particulares que nela são demandadas. Não basta, para tal, a mera invocação, «oca de factos», dessa mesma responsabilização solidária (…)”.


A seu tempo”, como no mesmo acórdão se escreveu (…), o tribunal que for competente apreciará, e decidirá, de acordo com o regime jurídico que deva ser aplicado aos factos provados.»


6. Percorrida a Petição Inicial, verifica-se que os autores não se limitam a invocar genericamente a solidariedade dos réus, antes fundamentando tal pretensão na alegação de factos que a sustentam e dos quais se extrai que todos concorreram para a produção do deslizamento de terras ocorrido em 19 de Dezembro de 2019 e portanto, como os autores alegam, para a produção dos prejuízos que sofreram.


Aliás, como se disse, os autores concluem que “todos os réus, por violação ilícita de um dever a que estavam acometidos, concorreram de forma direta, por ação e por omissão, para a ocorrência do facto causador do dano”, “entendendo-se que da atividade dos réus, existe uma complementaridade de causas, decorrentes da prática de factos por vários agentes que, somados entre si, produzem os danos”.


Assim, conclui-se que, de acordo com a relação material controvertida, tal como configurada pelos autores, a situação dos autos se inscreve no n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.


7. A competência para conhecer da presente acção é, pois, dos Tribunais Administrativos e Fiscais (al. f) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais). Concretamente, e de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, com o n.º 1 do artigo 18.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e com a al. a) do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro, ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga


Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).


Lisboa, 27 de Setembro de 2023. - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.