Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:018/06
Data do Acordão:10/26/2006
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ANTÓNIO SAMAGAIO
Descritores:COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL.
ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO.
ACTO DE GESTÃO PÚBLICA
ICERR.
SINALIZAÇÃO DA VIA PUBLICA.
FALTA DE SINALIZAÇÃO.
Sumário:I - Nos termos da alínea g), nº 1, do artigo 4º do actual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 107-D/2003, de 31.XII, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, quer, pois, por actos de gestão pública, (como no ETAF84) quer por actos de gestão privada praticados no exercício da função pública.
II – Daí que sejam competentes os tribunais administrativos para conhecer de uma acção em que se pede uma indemnização a um Município e ao ICERR para ressarcimento de danos resultantes da queda da A. por o passeio público por onde caminhava não se encontrar sinalizado de que estava em obras nem conter guarda ou protecção de uma ravina adjacente.
Nº Convencional:JSTA00063698
Nº do Documento:SAC20061026018
Data de Entrada:10/04/2006
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE MELGAÇO E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC RG.
Decisão:DECL COMPETENTE TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:DL 237/99 DE 1999/06/25 ART3 H ART5 N2.
ESTATUTOS DO ICERR APROVADOS PELO DL 237/99 ART1 N1 ART4 N1 A.
ETAF02 ART4 N1 G.
Jurisprudência Nacional:AC CONFLITOS PROC8/03 DE 2006/04/04.; AC CONFLITOS PROC6/04 DE 2005/10/25.; AC CONFLITOS PROC28/03 DE 2004/11/03.; AC CONFLITOS PROC12/02 DE 2003/06/17.
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO E OUTRO CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA 3ED ANOTAÇÃO AO ART212 N3.
AROSO DE ALMEIDA O NOVO REGIME DO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS 4ED PAG99.
JOÃO CAUPERS INTRODUÇÃO AO DIREITO ADMINISTRATIVO 7ED PAG265.
SANTOS SERRA IN A NOVA JUSTIÇA ADMINISTRATIVA E FISCAL PORTUGUESA.
MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E OUTRO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS VI PAG59.
SÉRVULO CORREIA DIREITO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO VI PAG714.
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DE CONFLITOS
A…, viúva, residente no lugar de …, nº 350, Freguesia de .., concelho de …, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (posteriormente reencaminhado para este Tribunal de Conflitos) do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que, confirmando a decisão do Tribunal Judicial de Melgaço, concluiu pela incompetência desse Tribunal, em razão da matéria, para conhecer da acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário proposta contra o INSTITUTO PARA A CONSERVAÇÃO E EXPLORAÇÃO DA REDE RODOVIÁRIA (ICERR) E MUNICÍPIO DE MELGAÇO, para ser ressarcida dos danos que lhe advieram da queda por uma ravina em consequência de se ter desequilibrado em virtude do passeio público por onde caminhava, na cidade de Melgaço, se ter desmoronado parcialmente, resultando-lhe ferimentos por todo o corpo, não existindo no local e no passeio em causa qualquer guarda ou protecção nem qualquer sinalização que indicasse que o passeio estava em obras, ou que existia perigo de queda para peões.
Alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

“I) Na presente acção apenas contestou o Réu Município de Melgaço, tendo o mesmo invocado a excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria, dos tribunais civis.

II) A excepção invocada foi julgada procedente pelo tribunal de 1ªª instância, que julgando os tribunais comuns incompetentes em razão da matéria para conhecer da presente acção, absolveu os RR. da instância.

111) Ambos os RR. são pessoas colectivas de direito público.

IV) Considerou o tribunal a quo, aderindo aos fundamentos e teor da decisão proferida em 1ª -instância, que sendo ambos os RR. pessoas colectivas de direito público e, estando em causa a efectivação de responsabilidade extracontratual, é aplicável a alínea g) do n° 1. do art. 4° do ETAF, facto que determina que a competência para julgar a acção cabe aos tribunais administrativos.

V) A agravante não se conforma com tal decisão.
VI) Perante a conduta alegadamente atribuível às RR., enquanto órgãos públicos há, desde logo, que saber se as mesmas exerciam ou não um poder público enquanto entidades integradoras da Administração do Estado, ou se agiram despidas dessa qualidade "status" tal como se fosse uma entidade privada.

VII) Os RR. mesmo sendo, como são, pessoas colectivas de direito público, podem limitar-se a exercer as suas atribuições em pleno pé de igualdade com os particulares, portanto desprovidos do poder de supremacia que em principio lhes advém da sua qualidade de ente público administrativo. Os actos assim praticados já seriam de qualificar como de "gestão privada"

VIII) O verdadeiro "distinguit", para efeitos da apreciação/avaliação de um certo acto, ou facto, causador de prejuízos a terceiros (particulares) numa ou noutra das aludidas categorias (gestão privada/gestão pública) reside em saber se as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade disciplinada por normas de direito público administrativo.

IX) A "pedra de toque" para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos não reside propriamente na dicotomia "actos de gestão pública - actos de gestão privada -, mas sim no critério constitucional plasmado no art. 212°, n° 3 da Lei Fundamental, ou seja, compete aos tribunais dessa jurisdição especial o "julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas",

X) Âmbito assim definido com apelo ao mesmo critério na legislação Infra-constitucional (conf, arts. 3° do ETAF 84 e 1° do ETAF 2002).

XI) Trata-se nos presentes autos de uma actividade, acto, comportamento ou conduta, vista da perspectiva de um lesado (terceiro) particular, cuja avaliação, para efeitos do apuramento da respectiva responsabilidade civil é regulada, por normas de direito privado, que não por normas, princípios e critérios de direito público.
XII) Ora, a uma tal apreciação/avaliação não subjaz qualquer relação jurídico-administrativa, uma relação jurídica regulada pelo direito público, mas uma mera relação jurídico-privada, como tal regulada pelo direito privado.

XIII) Rege, neste domínio, o princípio de que os tribunais de jurisdição ordinária, na circunstância os tribunais de comarca, são os tribunais-regra por força da delimitação negativa do nº 1 do art. 18° da LOFTJ 99, aprovada pala Lei nº 3/99 de 13/1 e do art. 66° do CPC, nos termos dos quais "são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional",

XIV) Regra/princípio ainda hoje aplicável a titulo subsidiário, tal como resulta do art. 7º do novo ETAF, aprovado pela Lei n° 13/2002 de 19/2.

XV) Trata-se, no fundo, da apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual vasados no art. 483º e segs, do C. Civil.

XVI) Trata-se de uma "questão de direito privado" - aquela que as partes submeteram à apreciação do tribunal - ainda que ambos os RR., alegadamente responsáveis, sejam pessoas de direito público, para utilizar a expressão contemplada na al. f) do nº 1 do art. 4° do ETAF.

XVII) Questão essa que deve ser aferida por normas, princípios e critérios próprios do direito privado, e, como tal, a respectiva dirimência encontrar-se-á, por sua própria natureza, arredada da jurisdição especial dos tribunais administrativos.

XVIII) Acresce que, o n° 1 do art 7° do Dec.-Lei n° 558/99, de 17 de Dezembro (a chamada Lei das Bases Gerais das Empresas Públicas) prescreve que "sem prejuízo do disposto na legislação aplicável às empresas públicas regionais, intermunicipais e municipais, as empresas públicas regem-se pelo direito privado, salvo no que estiver disposto no presente diploma e nos diplomas que tenham aprovado os respectivos estatutos”

XIX) Na ausência de preceito legal expresso de alcance geral (aplicável a todas elas) ou do respectivo estatuto em contrário, as empresas públicas - todas elas - se encontram sujeitas ao direito privado, comungando desta natureza os actos jurídicos que as mesmas levam a cabo nestas circunstâncias.

XX) O tribunal de 1ª instância é competente em razão da matéria para apreciar a matéria em discussão nos autos.

XXI) Não devia proceder a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria dos tribunais comuns.

XXII) Deve ser revogada a Douta Decisão recorrida, porquanto viola, nomeadamente, o disposto no n° 3 do art. 212º da Constituição da República Portuguesa, bem como o art. 4°, nº 1, al. f) do ETAF”.

Os RR não contra-alegaram.
O Ex.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do recurso ser improvido, e, em consequência, julgarem-se os tribunais administrativos como os materialmente competentes para o conhecimento da acção, por os actos imputados aos RR serem de gestão pública.

A) A A. interpôs, para o STJ, recurso do acórdão da Relação de Guimarães, que, confirmando a decisão do tribunal judicial de Melgaço sobre a sua incompetência em razão da matéria, por competente ser o tribunal administrativo, negou provimento ao recurso. Tratando-se, porém, de um pré-conflito, nos termos do nº 2 do art. 107º do CPC, segundo o qual “Se a Relação tiver julgado incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal de Conflitos”, pelo que não se deveria ter recorrido para o STJ.

Tal não obsta ao conhecimento do recurso em causa por este Tribunal de Conflitos dado tratar-se de erro na sua espécie, face ao disposto no nº 3 (2ª parte) do art. 687º do CPC no qual se estatui que “(… ) tendo-se interposto recurso diferente do que competia, mandar-se-ão seguir os termos do recurso que se julgue apropriado”.

B) A A. intentou a presente acção contra o Município de Melgaço e o ICERR sendo certo que a responsabilidade de um exclui a do outro. Aqui e agora, porém, apenas está em causa determinar qual o tribunal competente para julgar a causa pelo que será aquele a decidir a questão da legitimidade dos RR.

C) O ICERR, que sucedeu à JAE, foi extinto e integrado no IEP pelo art. 1º, nº 1, do DL nº 227/02, de 30/10. Os factos pelos quais a A pede indemnização aos RR ocorreram em 21 de Abril de 2002 e a acção deu entrada no tribunal a 15/04/2005, numa altura, pois, em que aquele Instituto já não tinha existência legal. Esta é, porém, outra questão com que este Tribunal não tem de ocupar-se pelas razões já expostas, pois será, por certo, objecto de apreciação pelo tribunal competente.

D) A competência dos tribunais determina-se pela forma como o A, configura a acção, recortada esta pela respectiva causa de pedir e do pedido.
No caso vertente, a A. formula um pedido de indemnização contra os RR. por danos causados numa queda por uma ravina em consequência de se ter desequilibrado em virtude do passeio público por onde caminhava, na cidade de Melgaço, se ter desmoronado parcialmente, resultando-lhe ferimentos por todo o corpo, não existindo no local e no passeio em causa qualquer guarda ou protecção nem qualquer sinalização que indicasse que o passeio estava em obras, ou que existia perigo de queda para peões. Trata-se, assim, de responsabilidade civil extracontratual imputada aos RR pela A.

O acórdão recorrido, estribando-se no disposto na alínea g), nº 1, do art. 4º do novo ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, segundo o qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto “Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (…) “ concluiu que, sendo os RR pessoas colectivas de direito público, eram os tribunais administrativos os competentes para julgar a presente acção.

Anote-se, contudo, que o acórdão recorrido, concordando com a decisão do tribunal da 1ª instância, também concluiu que a conduta imputada aos RR, ou seja, falta de sinalização que indicasse que o passeio público estava em obras ou que existia perigo de queda para peões, nem existindo no mesmo qualquer guarda ou protecção relativamente à ravina, consubstanciava actos de gestão pública, pelo que competentes para conhecer da acção igualmente seriam os tribunais administrativos à luz do critério que toma por base os actos de gestão pública e actos de gestão privada.

Contra o assim decidido reagiu a A., ora Recorrente para quem, em síntese, os tribunais cíveis são os competentes em razão da matéria por a conduta dos RR ser regida por normas de direito privado – art. 483º e segs. do C.C. sobre os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual - que não por normas, princípios e critérios de direito público à qual não subjaz qualquer relação jurídica administrativa, como estatui o art. 212º, nº 3 da Constituição da República, sendo a existência desta o traço distintivo entre a competência, em razão da matéria, dos tribunais cíveis e os tribunais administrativos, pela responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público.
Acrescenta, ainda, que o critério diferenciador da competência em razão da matéria entre a jurisdição civil e administrativa é a existência de relação jurídica administrativa, pelo que não ocorrendo esta no caso vertente a competência é dos tribunais cíveis, por serem estes “os tribunais–regra por força da delimitação negativa do nº 1 do art. 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) aprovada pela Lei nº 3/99, de 13/01, segundo o qual são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurídica.

A A., porém, elabora em manifesto equívoco não obstante o seu esforço, ao longo de várias páginas de alegações e de conclusões, para convencer da credibilidade da sua argumentação.

O critério diferenciador da competência entre a jurisdição administrativa e a jurisdição cível arrancava, na vigência do ETAF84, da existência, respectivamente, dos actos de gestão pública e de gestão privada, até à data em que entrou em vigor o actual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro. Esta era a jurisprudência pacífica e abundante deste Tribunal de Conflitos. A título de exemplo cfr. Acs. de 4.4.2006, proferido no Proc. nº 08/03, de 25.10.2005, Proc. nº 06/04, de 3.11.2004, Proc. nº 028/03 e de 17.06.2003, Proc. nº 012/02, in www. dgsi.pt. Na Doutrina, cfr., igualmente, por todos, Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao nº 3 do art. 212º “in” “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed.
Outro, porém, é o critério legal consagrado na alínea g), nº 1, do art. 4º do ETAF actualmente em vigor, desde 1 de Janeiro de 2004, quanto à competência dos tribunais administrativos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, que passou a abranger não só os actos de gestão pública como os actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito público.

Estatui, efectivamente, esta norma sobre o âmbito da jurisdição administrativa que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto. “ Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.
Com a consagração deste critério no domínio da responsabilidade civil extracontratual (que não também da contratual) o legislador pretendeu acabar com a morosidade processual resultante da determinação do tribunal competente pois a distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada nem sempre foi fácil de fazer pelos tribunais administrativos e tribunais cíveis, originando inúmeros recursos para este Tribunal de Conflitos.

Mário Aroso de Almeida, em “O NOVO REGIME DO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVO”, 4ª ed., revista e actualizada, a págs. 99, salienta que: “a) Compete à jurisdição administrativa apreciar toda e qualquer questão de responsabilidade civil extracontratual emergente da actuação de órgãos da Administração Pública. É o que claramente decorre do artigo 4º, nº 1, alínea g) do ETAF, que confere aos tribunais administrativos uma competência genérica para apreciar as questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público”.
E, mais adiante salienta: “ Todos os litígios emergentes de actuações da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade civil extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos”, invocando no mesmo sentido, em nota de rodapé (65) João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 7ª ed., Lisboa, 2003, pág. 265.

Também Santos Serra, Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, numa intervenção em “A Nova Justiça Administrativa e Fiscal Portuguesa”, no Congresso Nacional e Internacional de Magistrados, VI Assembleia da Associação Iberoamericana dos Tribunais de Justiça Fiscal e Administrativa, Cidade do México, 28 de Agosto de 2006, refere, depois de descrever a evolução do nosso contencioso administrativo e tendo em mente o actual ETAF que ” Existindo agora uma cláusula positiva de demarcação da competência da jurisdição administrativa, a fronteira entre justiça administrativa e a dita justiça comum sai clarificada, e os tribunais administrativos, esses, ganham um espaço privativo de actuação – um conjunto nuclear de tarefas que os torna, finalmente, verdadeiros e próprios tribunais, compondo uma jurisdição administrativa e fiscal autónoma, em tudo equivalente à chamada jurisdição comum, inclusive no nível de garantias prestadas a quem se lhe dirige em busca de protecção.
Assim, e para dar apenas um exemplo, no plano da responsabilidade civil extracontratual, esse espaço de actuação inclui hoje: 1) todas as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração, independentemente dessa responsabilidade emergir de uma actuação de gestão pública ou de gestão privada; 2) as questões em que haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.

Igualmente em “Código do Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados”, vol, I, pág. 59, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, sustentam que “Segundo a actual redacção desta alínea g) – posta pela Lei nº 107-D/2003 (de 31.XII) com o propósito de esclarecer pela positiva as dúvidas que a redacção inicial do preceito suscitava em relação à inclusão no âmbito da jurisdição administrativa das acções de responsabilidade por actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito público -, pertencem à jurisdição administrativa, em primeiro lugar, as “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual” dessas pessoas.”
E mais adiante: “(…) diremos então (respeitando a intenção da lei atrás referida e a vontade expressa na “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei que veio dar origem ao ETAF) que, sempre que essas pessoas devam responder extracontratualmente por prejuízos causados a outrem, o julgamento da respectiva causa pertencerá à jurisdição administrativa, independentemente da qualificação do acto lesivo como acto de gestão pública ou de gestão privada”

Finalmente, Sérvulo Correia, in Direito do Contenciosa Administrativo I, a pág. 714, salienta que “No tocante à responsabilidade civil extracontratual, o ETAF adoptou critérios distintos para determinar o âmbito da jurisdição administrativa. Em relação às pessoas colectivas públicas e aos respectivos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos, privilegiou um factor de incidência subjectiva. Independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos”.

Anote-se que, e ao contrário do que defende a A., mesmo os actos de gestão privada praticados no quadro de actividades funcionalmente administrativas pelas pessoas colectivas de direito público, ou pelos titulares dos seus respectivos órgãos, tais como os descritos na petição inicial, dão lugar à existência de uma relação jurídico-administrativa, disciplinada pelo direito público, como, por exemplo, o DL nº 58 081, de 21/11/1967, isto é, esta relação emerge de actos de gestão pública e actos de gestão privada.

Forçoso é, pois, concluir que, após a entrada em vigor do actual ETAF, os tribunais administrativos são os competentes para apreciar as questões de responsabilidade civil extracontratual, como é o caso, emergentes da actuação de órgãos ou respectivos titulares de pessoas colectivas de direito público no exercício da função pública.

É evidente que o Município contra quem a A. intentou a presente acção é uma pessoa colectiva de direito público.

Quanto ao ICERR, contra quem a A. também demandou nestes autos, igualmente não subsistem dúvidas que é uma pessoa colectiva de direito público, pois é dotado de autonomia administrativa e financeira e de património próprio – nº 1 do art. 1º dos seus Estatutos, in anexo ao DL nº 237/99, de 25/06 –, que representa o Estado como autoridade nacional de estradas em relação às infra-estruturas rodoviárias nacionais não concessionadas, competindo-lhe zelar pela manutenção permanente de condições de infra-estruturação e conservação e de salvaguarda do Estatuto da Estrada, que permitam a livre e segura circulação – nº 2 do art. 5º daquele DL - , que tem como atribuições fundamentais, entre outras, “Assegurar a conservação e exploração das estradas e pontes nacionais sob a sua jurisdição” – a), nº 1 do art. 4º, do seu referido Estatuto - o qual para o exercício das suas atribuições detém poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis quanto, “inter alia”, “À responsabilidade civil extracontratual , nos domínios dos actos de gestão pública” – h), nº 3, ainda daquele diploma legal.

Por outro lado, a presente acção foi proposta a 15 de Abril de 2005,pretendendo a A., através dela, fazer valer, a seu favor, a responsabilidade civil extracontratual dos RR, porquanto pede uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de ferimentos vários que lhe advieram da queda por uma ravina em consequência de se ter desequilibrado em virtude do passeio público por onde caminhava, na cidade de Melgaço, se ter desmoronado parcialmente, tendo aqueles violado o dever de sinalização de obras em que se encontrava ou que existia perigo de queda para os peões, violando ainda o dever de colocação de guarda ou protecção da ravina.

Consequentemente, sendo os RR. pessoas colectivas de direito público e pretendendo a A. accionar a responsabilidade civil extracontratual dos mesmos, face ao disposto na alínea g), nº 1, do art. 4º do actual ETAF, é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da presente questão, como o seria na vigência do ETAF84, por se tratar de acto ou actos de gestão pública.

Pelo exposto, e sem necessidade de mais desenvolvidas considerações, acordam em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, confirmando o acórdão recorrido, e declarar competentes os tribunais administrativos para conhecer da presente acção.

Sem custas.
Lisboa, 26 de Outubro de 2006. António Fernando Samagaio (relator) – António Fernando da Silva Sousa Grandão – José António de Freitas Carvalho – Manuel Maria Duarte Soares – Edmundo Moscoso.