Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:023/15
Data do Acordão:11/17/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:PINTO DE ALMEIDA
Descritores:SERVIDÃO DE PASSAGEM
Sumário:Compete aos tribunais judiciais conhecer da acção em que, ao abrigo de normas de direito privado, o autor pede a condenação de um município a reconhecer a constituição de uma servidão de passagem por destinação de pai de família, a favor de um prédio de que é proprietário, e a repor a situação em que se encontrava anteriormente à realização das obras que obstruíram a passagem.
Nº Convencional:JSTA00069422
Nº do Documento:SAC20151117023
Data de Entrada:05/19/2015
Recorrente:A............, LDA., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DE COIMBRA, INSTÂNCIA CENTRAL, SECÇÃO CÍVEL - J3 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC PRÉ-CONFLITO
Objecto:T REL
Decisão:DECL COMPETENTES TJ
Área Temática 1:DIR ADM CONT.
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:CONST05 ART7 ART209 ART211 N1 ART212 N3.
ETAF02 ART1 ART4.
CPC13 ART64 N1 ART92 N1 ART581 N4.
CCIV66 ART1287 ART1311 ART1315 ART1549.
LOSJ ART40.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC012/08 DE 2008/10/02.; AC TCF PROC023/09 DE 2010/09/28.; AC TCF PROC03/11 DE 2011/09/20.; AC TCF PROC03/12 DE 2012/07/10.; AC TCF PROC04/14 DE 2014/06/05.; AC TCF PROC016/14 DE 2014/09/10.; AC TCF PROC046/14 DE 2014/11/20.; AC TCF PROC01/15 DE 2015/04/22.; AC TCF PROC012/10 DE 2010/06/09.; AC TCF PROC018/13 DE 2013/12/18.
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA VOLII 4ED PÁG566-567.
VIEIRA DE ANDRADE - A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 13ED PAG49.
MANUEL DE ANDRADE - NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL 1976 PÁG90-91.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos (Proc. nº 23/15 F. Pinto de Almeida):

I.

A A…………, LDA, intentou a presente acção ordinária, no Tribunal Judicial de Coimbra (Vara Mista), contra o MUNICÍPIO DE COIMBRA.

Pediu que se declare a A. legítima e exclusiva proprietária do prédio descrito e confrontado no art. 1º da p.i. e constituída uma servidão por destinação de pai de família a favor do mencionado prédio por sobre o prédio descrito e confrontado no art. 16° da p.i., com o trajecto assinalado no doc. 10, condenando-se o Réu a tal reconhecer e, ainda, a repor a situação em que a A. se encontrava antes, reabrindo a passagem que ele tapou ao construir o muro de gavião como demonstram as fotografias juntas sob o doc. 8 e a não obstruir ou perturbar seja sob que forma ou pretexto for o direito de servidão reconhecido à A..

Como fundamento, alegou que o prédio de que é proprietária, com a construção dos acessos à Ponte ……… ficou dividido em quatro parcelas distintas. Em consequência dessa divisão, por contrato de permuta celebrado com o réu, a autora cedeu-lhe a parcela B. Antes da construção da referida Ponte, o prédio da autora acedia à Av. da ……… através de uma parte da parcela B. Porém, com a construção dos acessos à Ponte deixou de ser possível esse acesso, não curando o réu de deixar caminho de e para acesso à parcela C, que continuou a ser propriedade da autora.

Em contestação, veio o réu alegar a excepção de incompetência absoluta deste tribunal alegando em síntese que está em discussão um eventual incumprimento do protocolo celebrado entre os outorgantes. A divisão das parcelas e a construção do muro de gavião foram realizadas no âmbito da execução de uma obra pública, tendo para o efeito sido celebrado, em 22 de Outubro de 1999, um protocolo entre autora e réu, com vista à permuta entre ambos de parcelas de terreno. Tal enquadramento no seu entender levam à incompetência absoluta deste tribunal uma vez que são os tribunais administrativos os competentes para dirimir tais questões.

Em resposta veio a autora alegar que o contrato em causa é um caso de aquisição por via do direito privado, celebrada ao abrigo do disposto no art. 11º do C. das Expropriações, cuja matéria é exclusiva dos tribunais comuns. Por outro lado, a causa de pedir invocada é apenas a propriedade da autora sobre um determinado bem imóvel, bem como a existência de uma servidão constituída por destinação de pai de família. E os pedidos formulados são pedidos de direito privado, que nada têm a ver com o direito administrativo.

No saneador, foi julgada procedente a referida excepção dilatória, declarando-se o Tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido formulado contra o réu Município de Coimbra, que foi absolvido da instância.

Discordando desta decisão, dela interpôs a autora recurso de apelação, que a Relação julgou improcedente, mantendo a decisão recorrida.

Ainda inconformada, veio a autora interpor recurso de revista, que se convolou para recurso para este Tribunal dos Conflitos (art. 101° n° 2 do CPC), tendo apresentado as seguintes conclusões:

A) Nos termos do art. 629°., nº. 2 do Cod. Proc. Civil é sempre admissível recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência, com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado, sendo que, no entender da recorrente houve violação das regras sobre a competência em razão da matéria pelo acórdão ora recorrido.

B) Conforme se alcança do acórdão ora recorrido, a ora recorrente na presente acção contra o Município de Coimbra pede que

- se declare a A. legítima e exclusiva proprietária do prédio descrito e confrontado no art. 1º da petição inicial (p.i.)

- se declare constituída uma servidão de passagem por destinação de pai de família a favor do mencionado prédio por sobre o prédio descrito e confrontado no art. 16° da p.i., com o trajecto assinalado no “doc. 10”,

- se condene o Réu a tal reconhecer e, ainda, a repor a situação em que a A. se encontrava antes, reabrindo a passagem que ele tapou ao construir o muro de gavião como demonstram as fotografias juntas sob o doc. 8 e a não obstruir ou perturbar seja sob que forma ou pretexto for o direito de servidão reconhecido à A.

C) A causa de pedir invocada é a situação de facto existente e relatada nos autos:

- os prédios dominante e serviente foram antes parte de um mesmo prédio;

- há sinais visíveis e permanentes que revelam serventia de um para com o outro no momento da separação.

D) O tribunal recorrido, como se alcança do sumário do acórdão, entende que "o A. exige de um Município o cumprimento de obrigações assumidas no exercício de um poder público e na prossecução de um interesse público, nomeadamente, a implantação do acesso a determinada parcela que dele ficou privada em virtude da construção de uma obra pública viária (uma ponte e respectivos acessos), prevendo-se a sua execução nos projectos de construção anexos ao protocolo celebrado entre as partes",pelo que é evidente que o tribunal não entendeu a petição inicial, nem o protocolo a que faz referência, tendo concluído aprioristicamente e de forma intuitiva que o assunto é da competência dos tribunais administrativos.

E) Do protocolo junto pelo R. - porque não fazia parte da causa de pedir invocada pela A., nem sequer foi junto com a petição inicial — resulta evidente que ele nada tem a ver com o prédio da A., pois está alegado na petição inicial - art. 8°. - que o prédio da A. que carece da declaração de constituição da servidão corresponde à parcela C do prédio inicial. Porém,

No protocolo invocado pelo R. e a que o acórdão recorrido se agarrou, não há a menor referência à parcela C,mas apenas às parcelas B e D, referidas no documento 5 junto com a petição inicial e aí denominadas parcelas A1, A2 e A3, devidamente identificadas no documento 1 junto com a contestação, pois a parcela designada pela letra B, no protocolo é um prédio do domínio privado do Município de Coimbra, como resulta desse mesmo protocolo.

F) O acórdão recorrido se tivesse elencado todos os factos relevantes para a decisão da presente causa, e não apenas o dito protocolo, nem sequer enuncia os factos relativos a essa parcela C - agora o prédio descrito e confrontado no art. 1° da petição inicial -, talvez não tivesse cometido o lapso que cometeu.

G) Qualquer dos pedidos ou das causas de pedir, não carece da aplicação de quaisquer normas de direito administrativo, nem o contrato de permuta corresponde a qualquer negócio de direito público, antes é um caso de aquisição por via de direito privado, celebrada ao abrigo do disposto no art°. 11º. do Cod. das Expropriações, sendo certo que a matéria de expropriações é exclusiva dos tribunais comuns, nos termos do art°. 38°. do Código das Expropriações.

H) A relação jurídica que se invoca como violada não é manifestamente uma relação administrativa, nem é uma relação fiscal e isto apesar de um dos sujeitos ser uma pessoa colectiva de direito administrativo, mas que actua despido da sua veste de jus imperii.

I) Por tudo quanto se deixa dito, é manifesto que sendo a causa de pedir uma posse ou uma situação de facto com relevância apenas no âmbito do direito privado, as relações dele emergentes são relações de direito privado,que não cabem no âmbito de competência dos tribunais administrativos e isto é assim mesmo que se tenha de recorrer a documentos emanados da administração para a sua interpretação.

J) A citação feita do Prof. Manuel de Andrade conduz exactamente ao resultado contrário constante da sentença, pois se deve atender apenas e tão só ao pedido formulado pelo autor - no caso a declaração da propriedade sobre determinado prédio e a declaração de que existe a favor desse prédio uma servidão de passagem - baseado na relação material concreta por ele invocada - no caso o facto de ao tempo da separação dos prédios existir a servidão de passagem -, abstraindo naturalmente dos meios de prova documentais ou outros a utilizar na interpretação desses factos.

K) Aliás, como é uniformemente entendido na doutrina e na jurisprudência, a competência material dos tribunais determina-se segundo os termos em que foi posta a acção, ou, por outras palavras, de acordo com o pedido e a causa de pedir formulados na acção (cfr., na doutrina, Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1º, pág. 147; na jurisprudência, acórdão do Tribunal de Conflitos de 02-03-2011, processo n.º 9/10, Rel. Maria dos Prazeres Beleza, acórdão do Tribunal de Conflitos de 09-09-2010, processo n.º 011/10, Relator Adérito Santos e acórdão do Tribunal de Conflitos de 16-12-2004, processo n.º 04/04, Relator Edmundo Moscoso, todos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj).

L) Para aferir da competência material da presente acção importa, antes de mais, verificar se o direito que os Autores invocam e os factos que alegam na petição para o fundamentar, emergem de uma relação jurídica administrativa,como escrevem os administrativistas Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, página 55, FREITAS DO AMARAL in Direito Administrativo, volume III, página 439 e JÓNATAS MACHADO in A Reforma da Justiça Administrativa, Breves Considerações em torno do âmbito da Justiça Administrativa, 2005, p. 93, que ora se citam.

M) Resulta das alíneas do artigo 4.° do ETAF que na relação jurídica administrativa há-de existir, pelo menos, um ente público ou um ente privado no exercício de poderes públicos,e que a mesma há-de ser regulada por normas de direito administrativo.

N) Do que se deixa escrito resulta claramente que a decisão ora impugnada é manifestamente contra legem,violando o disposto no artigo 212.°, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, nos artigos 1°. e 4°., n°. 1 do ETAF, no artigo 64.° do CPC e no artigo 18.°, n.º 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n° 3/99, de 13 de Janeiro, pelo que tem de ser revogada e substituída por outra decisão que julgando o tribunal comum competente em razão da matéria, ordene o prosseguimento dos presentes autos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Exmo Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, revogando-se o acórdão recorrido e julgando-se materialmente competente para conhecer e julgar a acção os tribunais judiciais.

Após os vistos, cumpre decidir.

II.

Importa decidir qual é o tribunal competente para julgar a presente acção: se o tribunal judicial ou o tribunal administrativo.

Relevam para o efeito, os elementos que constam do relatório precedente.

III.

De entre as diversas ordens ou categorias de tribunais (cfr. art. 209º da CRP), os tribunais judiciais exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º, nº 1, do mesmo diploma)

A competência dos tribunais judiciais é assim residual, como também resulta do art. 40º da LOSJ e do art. 64° do CPC.

Outra das categorias ali previstas é a dos tribunais administrativos, aos quais compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art. 212°, n° 3, da CRP).

Esta competência é concretizada e regulada nos arts. 1° e 4° do ETAF, reafirmando-se nessa primeira disposição legal que os tribunais da jurisdição administrativa são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (CRP Anotada, Vol. II, 4ª ed., 566 e 567.) “estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (n° 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.

Acrescentam os mesmos Autores: “pretende-se, com o recurso a este conceito genérico, viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações (...) que possam ser reconduzidas à actividade de direito público, cuja característica essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado”.

Neste sentido se pronuncia também VIEIRA DE ANDRADE (Justiça Administrativa, 13ª ed., 49): o entendimento do que seja a relação jurídica administrativa deve partir do conceito constitucional, no “sentido estrito tradicional de «relação jurídica de direito administrativo», com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração”; relação em que “um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido” e onde a Administração “é, tipicamente ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”.

Tem sido reiteradamente decidido por este Tribunal que a competência do tribunal se define pelo pedido formulado pelo autor e pelos respectivos fundamentos (Cfr., entre outros, os Acórdãos de 02.10.2008 (P. 12/08), de 28.09.2010 (P. 23/09), de 20.09.2011 (P. 3/11), de 10.07.2012 (P. 3/12), de 05.06.2014 (P. 4/14), de 10.09.2014 (P. 16/14), de 20.11.2014 (P. 46/14) e de 22.04.2015 (P. 1/15), todos em www.dgsi.pt, como os demais adiante citados.)

Sistematicamente, é invocada, em apoio dessa posição, a lição de MANUEL DE ANDRADE sobre os elementos para tal atendíveis:

“deve olhar-se aos termos em que foi proposta a acção, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal — ensina REDENTI — “afere-se pelo quid disputatum(quid decidendum,em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”, é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes.

A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” (Noções Elementares de Processo Civil (1976), 90 e 91.)

Para aferir da competência em razão da matéria do tribunal, interessa, pois, o modo como vem estruturada a acção, atendendo à factualidade relevante articulada na p.i. e à pretensão jurídica apresentada, ou seja, à causa de pedir alegada e ao pedido formulado, sendo, para este efeito, irrelevante, como tem sido reconhecido “o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma (causa) (por se tratar de questão atinente ao mérito da pretensão)” (Citado Acórdão de 02. 10.2008.)

No caso, vem pedido o reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre o prédio identificado no art. 1° da p.i. e do direito de servidão, por destinação de pai de família, alegadamente constituída aquando da separação desse prédio e do prédio alienado ao réu, através do contrato de permuta celebrado entre as partes; foi ainda pedida a reposição na situação anterior.

Como causa de pedir — o facto jurídico de que deriva o direito real (art. 581°, n° 4, do CPC) —, vem invocada, quanto ao direito de propriedade sobre o prédio, a usucapião (arts. 1287° e segs do CC) e o registo da aquisição derivada a favor da autora (cfr. art. 7º do CRP) e, quanto à servidão, a referida separação dos prédios, a existência de sinais reveladores da serventia de um para o outro prédio e demais requisitos previstos no art. 1549° do CC.

Perante estes elementos, esta acção tem natureza tipicamente real (cfr. arts. 1311º e 1315° do CC), tratando-se de dirimir uma questão que é claramente de direito privado, ou seja, se a autora é titular dos direitos reais invocados e se estes são oponíveis ao réu. Questão para cujo conhecimento não existe no ETAF (cfr. art. 4°) norma a atribuir competência à jurisdição administrativa (Cfr. Acórdãos deste Tribunal de 09.06.2010 (P. 12/10) e de 18.12.2013 (P. 18/13) e, bem assim, os Acórdãos de 10.09.2014 e de 20.11.2014, já acima referidos.).

Pode, com efeito, afirmar-se que a controvérsia não incide sobre relação jurídica disciplinada por normas de direito administrativo.

Repare-se que, como se sublinhou no citado Acórdão de 22.04.2015, “não é a circunstância de uma das partes ter feição pública (...) ou ainda a necessidade de o conhecimento do mérito da acção implicar o apuramento da validade da «autorização de utilização» constante do falado «Protocolo de Acordo», que impõem concluir-se que as questões decidendas emergem de uma relação jurídica administrativa (...)

Acresce que a eventual necessidade de a decisão do mérito da lide poder depender do pressuposto conhecimento de uma qualquer vicissitude administrativa — configurando assim uma questão prejudicial de direito administrativo, nos termos previstos no art. 92°/ 1 do CPC -, não constitui circunstância susceptível de afectar a originária competência material do foro comum”.

Na fundamentação do acórdão recorrido afirma-se, no entanto, que "A conclusão a extrair do pedido deduzido e da correspondente factualidade (...), é a de que o Réu actuou, então, na qualidade de ente público e por força do exercício das respectivas funções, estando em causa o eventual incumprimento do protocolo (e respectivos projectos anexos) subscrito no âmbito de uma relação jurídica administrativa (regulada por normas de direito administrativo) e por razões de interesse público (construção da “Ponte ……… e Nó da ………”), que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico- privada.

O protocolo em causa terá de ser visto como um contrato administrativo, traduzindo um acordo de vontades pelo qual é constituída uma relação jurídico- administrativa, tendo sido celebrado pelo Réu Município de Coimbra na sua veste de entidade pública e no exercício de poderes públicos. (...)

No fundo, a causa de pedir configurada nos autos, i. é, o acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que a A. invoca e pretende fazer valer, decorre ou emerge do dito protocolo, o qual compreende, necessariamente, os respectivos «anexos» e, em parte, também se projecta no aludido «contrato de permuta»".

A questão não parece, assim, bem perspectivada, sendo de relembrar o que acima se afirmou sobre os elementos determinativos da competência do tribunal — no caso, indiscutivelmente, com relevância apenas no âmbito do direito privado —, a que é estranha a questão da viabilidade da pretensão deduzida, nem interferindo nessa determinação e ponderação a necessidade de ser apreciada eventual questão de outra natureza, designadamente administrativa.

De todo o modo, importa sublinhar que, no caso, como é patente, o aludido “protocolo” não integrava a causa de pedir invocada, não lhe sendo feita qualquer referência na p.i., nem em qualquer parte dele se alude ao prédio identificado no art. 1º desse articulado — o prédio dominante no âmbito da servidão alegada.

Esse “protocolo” foi apenas junto com a contestação e, como enfatiza a recorrente, nada tem a ver com prédio referido. Por seu turno, o contrato de permuta tem evidentemente natureza privada, tendo o réu nele intervindo desprovido de ius imperii.

Deve, pois, reconhecer-se, acompanhando o que se afirma no douto parecer, a fls. 122, que “o litígio em apreço não é reconduzível a uma questão relativa ao incumprimento do protocolo e, consequentemente, à execução do contrato administrativo fundador de uma relação jurídica administrativa em que ele se traduzirá”.

Tendo em conta os termos em que foi posta a acção — os pedidos formulados e os respectivos fundamentos — a questão a dirimir é de natureza privada, sendo regulada por normas de direito privado, não envolvendo a sua resolução a convocação e aplicação de regras de direito público; a controvérsia, como se referiu, não incide sobre uma relação jurídica disciplinada por normas de direito administrativo.

Fica, assim, excluída a competência da jurisdição administrativa.

IV.

Em face do exposto, na procedência do recurso, revoga-se o acórdão recorrido e julgam-se materialmente competentes para julgar esta acção os tribunais judiciais.

Sem custas.

Lisboa, 17 de Novembro de 2015. - Fernando Manuel Pinto de Almeida (relator) - Alberto Augusto Andrade de Oliveira - Nuno de Melo Gomes da Silva - Mário Belo Morgado - Vítor Manuel Gonçalves Gomes.