Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:059/13
Data do Acordão:02/26/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ORLANDO AFONSO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - O regime de renda apoiada, decorrente do DL n.°166/93, de 07-05, integra normas de direito público.
II - Compete à jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, al. f) do ETAF, a competência material para conhecer e julgar uma acção em que um Município impugne o depósito de renda de uma habitação social, promovido por um arrendatário, quando a impugnação se fundamenta, além do mais, em divergência interpretativa daquele diploma.
Nº Convencional:JSTA000P18655
Nº do Documento:SAC20150226059
Data de Entrada:11/04/2013
Recorrente:MUNICÍPIO DE FARO, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O 2 JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE FARO E O TAF DE LOULÉ
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal dos Conflitos:

A) Relatório

O Município de Faro instaurou contra A……………., com os sinais nos autos, a presente acção administrativa comum, sob a forma sumária, pedindo que:
a) seja julgado improcedente e ineficaz, para qualquer efeito jurídico, nomeadamente de extinção da obrigação de pagamento da renda devido pelo R. ao A., o depósito de que o R. notificou o A. em 10-10-2011, bem como de todos os subsequentes que o R. vier a efectuar nesse montante ou qualquer outro montante distinto do reclamado pelo A., bem como,
b) seja o R. condenado a pagar ao A. a renda actualizada em débito, nos termos que lhe foram comunicados em 28-07-2011, acrescida das penalidades legalmente devidas pela falta de pagamento pontual das rendas, sendo com esse alcance mandado completar o (s) depósito (s), acrescendo a tudo ainda a condenação nas custas e demais encargos a que houver lugar.
Para fundamentar a sua pretensão, alega, em síntese, que, sendo proprietário do imóvel sito na Urbanização Municipal ………………, lote ……, ..… direito, 8000-….. Faro, deu-o de arrendamento ao R., por contrato de 19-10-2004.
Tal contrato de arrendamento para fins habitacionais — cuja renda mensal foi estabelecida em € 178,02, actualizável nos termos do n.º 2 do art.8.º da Portaria n.º 166/93, de 07-05 — tinha a duração inicial de um ano, considerando-se sucessivamente renovado por iguais e sucessivos períodos se não fosse denunciado por nenhuma das partes, com antecedência mínima de 60 dias, por carta registada com aviso de recepção, antes do seu termo
Em 16-07-2010 foi publicado, em Diário da República, o Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro (cf. DR 2.ª série, n.º 137), entrado em vigor em 21-07-2010, o qual pressupõe que todo o arrendamento de unidade independente dos imóveis construídos para habitação social no concelho de Faro será efectuado ao abrigo e de acordo com as disposições constante do DL n.º 166/93, de 07-05, até à publicação de novos regimes de acordo com o previsto na Lei n.º 6/2006, de 27-02.
Em 10-03-2011 foi publicado nos jornais Jornal do Algarve, Região Sul e Diário de Notícias, o Edital n.º ………., de 07-02-2011, do Senhor presidente da Câmara Municipal de Faro, por via do qual este dava conta que, por deliberação da Câmara Municipal de 26-01-2011, fora decidido aplicar o regime da renda apoiada aos arrendamentos das habitações da Urbanização Municipal ………………, Carreira de Tiro e Avenida …………..…, a partir de 01-06-2011.
O R. foi notificado, em 11-03-2011, com vista a proceder à entrega da documentação necessária ao apuramento da actualização da renda devida, tendo-se apurado, a final, após cálculo da renda apoiada, uma renda devida pelo R. de € 287, a que acresciam mensalmente as despesas comuns do bloco onde o R. residia, no valor de € 16,30, perfazendo um total mensal de € 303,30.
No entanto, em 10-10-2011, o A. foi notificado de que o R. não procedeu ao pagamento da renda devida, antes tendo promovido o depósito da quantia de € 144,49 à ordem do Tribunal da Comarca de Faro, nos termos da consignação de depósito a que alude o art. 17.º da Lei n.º 6/2006.
Não aceitando esse depósito, veio o A. impugná-lo, nos termos do art.21.º daquela Lei, através da presente acção.
Concluso o processo à Mma. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF de Loulé), com informação de se suscitarem dúvidas sobre a competência material daquele tribunal para o julgamento da acção – cf. fls. 16 –, foi declarado que o TAF de Loulé era materialmente incompetente para conhecer do objecto do litígio – cf. fls. 17 a 25.
Notificado o A., o mesmo, valendo-se da possibilidade legal facultada pelo art. 14.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo (CPA) requereu a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Faro – cf. fls. 29.
Remetido o processo para o Tribunal Judicial da Comarca de Faro – cf. fls. 29 -, onde entretanto foi distribuído ao 2.º Juízo Cível, seguiram-se os ulteriores termos processuais, e o Mmo. Juiz deste tribunal declarou, igualmente, a incompetência material, absolvendo o R. da instância — cf. fls. 485 a 499.
Tendo transitado aquela sentença em julgado, e aberto o conflito de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos para resolução do conflito – cf. fls. 505 e segs..
A Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de se atribuir a competência material aos tribunais administrativos e, em concreto, ao TAF de Loulé — cf. fls. 512 a 515.
***
Tudo visto,
Cumpre decidir:

B) Os Factos

A factualidade relevante a considerar para dirimir este conflito de jurisdição é a que segue:
1. O A. é proprietário do imóvel sito na Urbanização Municipal …………….., lote …….., …… direito, 8000-……… Faro.
2. Em 19-10-2004 o A. deu de arrendamento aquele imóvel ao R., por via do contrato junto como doc. n.° 1, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido (cf. fls. 7 e segs.).
3. Ao contrato em apreço, denominado Contrato de Arrendamento para Fins Habitacionais de prédios pertencentes à Câmara Municipal de Faro, foi fixada uma duração inicial de um ano, com início em 01-12-2004, “considerando-se sucessivamente renovado por períodos iguais de tempo, se não denunciado por nenhuma das partes, com antecedência mínima de 60 dias, por carta registrada com aviso de recepção, antes do seu termo”.
4. Nos termos aí igualmente previstos, em concreto na cláusula IV, a renda mensal fixada correspondia à quantia de Esc. € 178.02, actualizável nos termos legais.
5. Devendo ser paga no 1.º dia útil a que a prestação respeitar, na secção de Taxas e Licenças da Câmara Municipal (de Faro).
6. Em 16-07-2010 foi publicado o Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro, no Diário da República 2.ª Série, n.° 137, que entrou em vigor em 21-07-2010.
7. O R. foi notificado, em 11-03-2011, com vista a proceder à entrega da documentação necessária ao apuramento da actualização da renda devida (cf. fls. 9).
8. No seguimento da análise da documentação entregue pelo R., veio a apurar-se o agregado familiar composto pelo R., com um rendimento anual bruto de € 20.009, 92.
9. Procedendo nos termos legalmente previstos, ao cálculo da renda apoiada, apurou-se uma renda devida pelo R. de € 287, a que acresciam mensalmente as despesas comuns do bloco onde o R. residia, no valor de € 16,30, perfazendo um total mensal de € 303,30.
10. O A. comunicou ao R. aquele valor em 28-07-2011 (fls. 10).
11. Na mesma data, comunicou-lhe que para assegurar um ajustamento progressivo e gradual das rendas esse aumento seria implementado de acordo com um plano de pagamento repartido pelos anos de 2011 e 2012.

C) O Direito.

Estamos, inequivocamente, em face de um conflito negativo de jurisdição motivado pela pronúncia de duas decisões judiciais, de sentido contrário, emitidas, a primeira, por um tribunal da ordem administrativa e, a segunda, por um tribunal judicial, declinando mutuamente a competência material para dirimir o litígio apresentado em juízo — cf., respectivamente, as sentenças de fls. 17 e segs., e de fls. 485 e segs..
O poder jurisdicional, no ordenamento jurídico português, encontra-se repartido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias das causas suscitadas perante eles - cf arts. 209.° e segs. da Constituição da República Portuguesa (CRP): a existência de várias categorias de tribunais supõe naturalmente um critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objectiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, gerar-se conflitos de jurisdição.
Existe um conflito negativo de jurisdição quando duas ou mais autoridades pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, declinam, em decisões transitadas em julgado, o poder de conhecer da mesma questão — cf. art. 107.° do Novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei n.° 41/2013, de 26-06.
Os conflitos de jurisdição são resolvidos pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) ou pelo Tribunal dos Conflitos, conforme as situações, sendo o processo a seguir, no caso da resolução caber ao último, regulado pela respectiva legislação.
A circunscrição das jurisdições, correspondentes aos tribunais judiciais, por um lado, e aos tribunais administrativos e fiscais, por outro lado, implica a apreciação das concernentes áreas de competência, constituindo um pressuposto processual que deve ser apreciado antes da questão (ou questões) de mérito, aferindo-se pela forma como o autor configura a acção, e definindo-se pelo pedido, pela causa de pedir e pela natureza das partes. Para esse fim, atender-se-á aos termos em que foi proposta a acção, seja quanto aos seus elementos objectivos — natureza da providência solicitada ou do direito para a qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto de onde teria resultado esse direito, etc. — seja quanto aos seus elementos subjectivos identidade das partes.
Por isso, na determinação da competência material do tribunal, tal como na decisão das excepções dilatórias de natureza processual, a respectiva resolução é efectuada perante a petição ou requerimento inicial, sopesando quer a pretensão formulada ou a medida jurisdicional requerida, quer a relação jurídica ou situação factual descrita nessa peça processual.
O art.212.º, n.° 3, da CRP estatui que: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Por seu turno, segundo o art.211.°, n.° 1, da CRP: “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. Consagra-se, na última parte deste preceito constitucional, o princípio da competência genérica ou residual dos tribunais comuns.
Da leitura do art.212.º, n.° 3, da CRP, resulta que estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico — administrativas (ou fiscais) (n.° 3, in fine), qualificação esta que transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.
Verificando a data da instauração da acção há que ter em atenção o regime vertido no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais — ETAF —, aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19-02, com as alterações introduzidas pelas Declarações de Rectificação n.°s 14/2002, de 20-03 e 18/2002, de 12-04, pelas Leis n.°s 4-A/2003, de 19-02, 107-D/2003, de 31-12, 1/2008, de 14-01, 2/2008, de 14-01, 26/2008, de 27-06, 52/2008, de 28-08, 59/2008, de 11-09, pelo DL n.° 166/2009, de 31-07, e pela Lei n.° 55-A/2010, de 31-12.
Dispõe o art.1.º, n.° 1, do ETAF, que: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Como se assinalou antes, a competência dos tribunais administrativos reconduz-se à questão de saber o que deve entender-se por litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
Jónatas Machado salienta que “a doutrina entende que devem ser consideradas relações jurídico-administrativas as relações interpessoais e inter administrativas em que de um dos lados da relação se encontre uma entidade pública, ou uma entidade privada dotada de prerrogativas de autoridade pública, tendo como objecto a prossecução do interesse público, de acordo com as normas de direito administrativo. Assim entendida, a relação jurídica administrativa pode desdobrar-se num complexo acervo de posições jurídicas substantivas e procedimentais, favoráveis e desfavoráveis, activas e passivas”.
Por sua vez, o art.4.° do actual ETAF define o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos (e fiscais), adoptando “um critério misto para a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, mediante o recurso a uma cláusula geral e a uma enumeração especificada, positiva e negativa, o que é, em si mesmo, uma rotura com o sistema adoptado até então, em que uma cláusula geral era acompanhada de uma enumeração puramente negativa”.
Estatui esse preceito legal, no segmento que nos interessa, que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto” (cf. n.° 1): (...) f) “Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”.
Conforme se dirimiu no Acórdão do Tribunal dos Conflitos n.° 027/12, de 21-02-2013: “Este normativo, com a redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.° 107-D/2003, de 31-12, atribui à jurisdição administrativa competência para apreciar questões relativas a (i) contratos administrativos típicos (a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam especificamente aspectos de natureza substantiva); (ii) contratos atípicos com objecto passível de acto administrativo (que determinem a produção de efeitos que também poderiam ser determinados através da prática, pela entidade pública contratante, de um acto administrativo unilateral) e de (iii) contratos atípicos com objecto passível de contrato de direito privado que as partes tenham expressa e inequivocamente submetido a um regime substantivo de direito público” (sic).
Para Carla Amado Gomes, “não pode deixar de observar-se que, no âmbito dos contratos a que alude a alínea f) sempre cumprirá averiguar se a utilização do Direito privado surge a título instrumental relativamente à prossecução da função administrativa, de natureza pública e ponderativa de interesses supra-individuais — sendo aí plenamente justificada a intervenção dos tribunais administrativos —, ou se o Direito privado desempenha um papel principal, co-essencial, na regulação da situação jurídica, desde logo pela sua subtracção ao domínio funcional do núcleo de tarefas de natureza pública — devendo a questão ser apreciada junto da jurisdição comum. No caso dos contratos, a interdependência com procedimentos e vinculações de Direito público pode tornar difícil esta destrinça, registando-se uma eventual maior tendência da jurisdição administrativa para absorver a apreciação de relações não materialmente administrativas”.
Em concreto, na acção que deu lugar ao presente conflito negativo de jurisdição, aberto entre o TAF de Loulé e o 2.° Juízo Cível de Faro, o Município de Faro procedeu à impugnação do depósito da renda efectuado pelo R., seu arrendatário de uma habitação social, nos termos do art.21.º do NRAU, aprovado pela Lei n.° 6/2006, de 27-02. Acresce que aquele contrato de arrendamento, datado de 2004, foi submetido ao regime de renda técnica e renda social, actualizável nos termos do n.° 2 do art.8.° da Portaria n.° 166/93, de 07-05.
Por seu turno, de acordo com a pretensão do A., o contrato de arrendamento sub judicio ficou sujeito ao regime da renda apoiada, por aplicação do Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro, publicado no DR 2.ª Série, n.° 137, entrado em vigor em 16-07-2010.
Versando o objecto do litígio sobre a aplicação do “regime da renda apoiada”, plasmado no DL n.° 166/93, de 07-05, é relevante fazer a exegese dos normativos ali consagrados, de modo a verificar se os mesmos são subsumíveis, ou não, nas características das normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo (do invocado contrato de arrendamento), porquanto não se pode subsumir a situação em nenhuma das outras duas hipóteses previstas no art.4.°, n.° 1, al. f), do ETAF. E a resposta, adianta-se, é positiva.
O DL n.° 166/93, de 07-05, veio estabelecer o regime de renda apoiada estabelecendo no seu art. 1.°, n.° 2, que: “Ficam sujeitos ao regime de renda apoiada os arrendamentos das habitações do Estado, seus organismos autónomos e institutos públicos, bem como os das adquiridas e promovidas pelas Regiões Autónomas, pelos municípios e pelas instituições particulares de solidariedade social com comparticipações a fundo perdido concedidas pelo Estado, celebrados após a entrada em vigor do presente diploma”. Por sua vez, o n.° 1 do art.2.° preceitua que “o regime da renda apoiada baseia-se na determinação dos valores de um preço técnico e de uma taxa de esforço”, sendo esse “preço técnico”, segundo o art. 4.º, n.° 1, “calculado nos termos em que o é a renda condicionada”. Para a determinação do valor da renda, o art.6.°, n.° 1, impõe que “os arrendatários devem declarar os respectivos rendimentos à entidade locadora anual, bienal ou trienalmente, conforme opção desta”.
Tal como se escreveu no Acórdão deste Tribunal, n.° 1/13, de 04-06-2013: “Estes normativos afastam, manifestamente, o carácter privatístico inerente à livre fixação do valor da renda, designadamente nos arrendamentos (mormente habitacionais) previstos no RAU (aprovado pelo DL n.° 321-B/90, de 15-10) e, agora, no NRAU (aprovado pela já mencionada Lei n.° 6/2006), à luz da regra-matriz da autonomia privada prevista no art.405.° do Código Civil, impondo um procedimento padronizado e taxativo para o estabelecimento das rendas apoiadas./Trata-se de um regime jurídico uniforme — regime da renda apoiada — a que estão sujeitos todos os imóveis destinados a arrendamento de cariz social, quer tenham sido adquiridos ou construídos pelo Estado, seus organismos autónomos ou institutos públicos, quer pelas autarquias locais ou pelas instituições de solidariedade social, desde que com o apoio financeiro do Estado, conforme decorria do art.82.° do RAU, e agora emerge do art.61.° do NRAU./Acresce que, embora o regime do arrendamento urbano geral e do arrendamento social preconize, em ambas as situações, a criação de um vínculo jurídico, por meio do qual alguém proporciona a outrem o gozo de um bem imóvel, com carácter transitório e mediante o pagamento de uma contrapartida que, quer a legislação civil, quer o DL n.° 166/93, de 07-05, intitulam de “renda”, a causa-função associada ao contrato de arrendamento urbano de direito privado não se confunde com os fundamentos sociais subjacentes aos arrendamentos sociais, visados neste diploma./De resto, o próprio legislador acentuou a diferente natureza jurídica da relação privada subjacente ao arrendamento urbano (geral) e da relação pública subjacente à ocupação temporária de uma habitação social, tal como se alcança, além do mais, dos arts. 5.°, n.° 2, al. f), e 6.° do DL n.° 321-B/90, que instituiu o RAU” (sic).
Glória Teixeira e Mariana Fontes da Costa defendem expressamente: “A atribuição de casas em regime de renda apoiada não consubstancia um contrato de arrendamento de direito privado, mas aproxima-se da relação locatícia pelo seu carácter transitório e pela existência de uma remuneração, ainda que fixada de acordo com critérios legais relacionados com a taxa de esforço financeiro do agregado familiar”, critérios esses de natureza imperativa e carácter ostensivamente público, como se demonstrou. As mesmas autoras escrevem: “As relações a estabelecer entre o município e os titulares de um direito de ocupação das fracções dos conjuntos habitacionais construídos ao abrigo do P.E.R. são relações jurídicas de direito público, reguladas e tituladas pelo direito administrativo. Trata-se de relações em que autarquia local se apresenta imbuída de poderes de autoridade e vinculada à promoção das funções públicas que lhe foram acometidas em matéria de direito à habitação dos mais carenciados. Não há aqui, portanto, um acordo de vontades livre e paritárias, mas antes um acto de autoridade vinculado a fins de interesse público”.
Aliás, esta tem constituído, em casos absolutamente análogos, a jurisprudência pacífica do Tribunal de Conflitos — cf. Processos n.ºs 012/11, de 25-09-2012, 010/13, de 23-05-2013 (este do relator), e 011/13, de 26-09-2013. Conclui-se assim que o litígio em debate é subsumível ao art.4.°, n.° 1, al. f), do ETAF, incumbindo ao foro administrativo a resolução da contenda, deferindo-se a competência material aos tribunais administrativos.

Em resumo, pode-se assim sumariar:
I - O regime de renda apoiada, decorrente do DL n.°166/93, de 07-05, integra normas de direito público.
II - Compete à jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, al. f) do ETAF, a competência material para conhecer e julgar uma acção em que um Município impugne o depósito de renda de uma habitação social, promovido por um arrendatário, quando a impugnação se fundamenta, além do mais, em divergência interpretativa daquele diploma.

Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Tribunal dos Conflitos em resolver o conflito negativo de jurisdição, considerando que a mesma cabe aos Tribunais Administrativos e atribuindo ao TAF de Loulé a competência material para os ulteriores termos da acção.
Sem custas, ex vi do art.96.° do Decreto n.°19 243, de 16-01-1931.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2015. – Orlando Viegas Martins Afonso (relator) –António Bento São Pedro – Isabel Francisca Repsina Aleluia São Marcos – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Paulo Távora Victor – Alberto Augusto Andrade de Oliveira.