Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:08/17
Data do Acordão:06/01/2017
Tribunal:CONFLITOS
Relator:SÃO PEDRO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
PEDIDO CÍVEL.
ACÇÃO PENAL.
Sumário:Nos termos do art 4º, 1, a) do ETAF (2002) a jurisdição administrativa é competente para julgar as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público.
Nº Convencional:JSTA00070218
Nº do Documento:SAC2017060108
Data de Entrada:03/03/2017
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DE LISBOA OESTE, CASCAIS, INSTÂNCIA CENTRAL, 2ª SECÇÃO CÍVEL - J1 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS.
AUTOR: A............
RÉU: ESTADO PORTUGUÊS E OUTROS.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITOS
Objecto:AC RL
Decisão:NEGA PROVIMENTO E DECL COMPETENTE A JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO.
Legislação Nacional:CPC ART101 N2.
ETAF02 ART4 N1 G.
DL 215/2012 ART9 N2.
CPP ART71 ART72.
CPTA ART47.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC014/13 DE 2014/01/21.; AC TCF PROC024/09 DE 2010/01/20.
Referência a Doutrina:MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA - CÓDIGO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS VOLI PAG59.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:
1. Relatório

1.1. A…………… intentou contra o ESTADO PORTUGUÊS, a DIRECÇÃO GERAL DE REINSERÇÃO E SERVIÇOS PRISIONAIS e HOSPITAL PRISIONAL S. JOÃO DE DEUS a presente acção declarativa de condenação com processo comum pedindo a sua condenação a pagar-lhe a título de responsabilidade civil extracontratual diversas quantias, num total de € 136.573, 90, em virtude da morte de B………….., seu filho, na sequência de complicações operatórias face a uma amputação do membro inferior esquerdo efectuada em 3-9-2012, no referido Hospital.

1.2. A acção foi distribuída na Comarca de Lisboa Oeste, Cascais, Instância Central, 2ª Secção Cível, J1, em 13-7-2015

1.3. Por despacho de 29-2-2016 o Tribunal Judicial julgou-se materialmente incompetente para conhecer a acção declarando competentes os Tribunais Administrativos.

1.4. A autora recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que por acórdão de 22-6-2016 confirmou a decisão recorrida.

1.5. A autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça.

1.6. O recurso foi distribuído como revista excepcional, a qual não foi admitida, com o fundamento de que “… o n.º 2 do art. 102º do CPC determina que, se o tribunal da Relação julgar incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal de Conflitos”

1.7. Notificado do acórdão que não admitiu a revista a autora veio requerer, nos termos do art. 99º, n.º 2 do NCPC a remessa do recurso para o Tribunal de Conflitos, o que foi deferido.

1.8. Sem vistos e com prévia remessa do projecto de acórdão aos Ex.mos Conselheiros Adjuntos o recurso é submetido ao Tribunal de Conflitos para julgamento.

2. Fundamentação

2.1. Matéria de facto

Com interesse para o julgamento da questão da competência consideram-se relevantes as seguintes ocorrências processuais:

a) A autora na petição inicial fundamenta os pedidos em factos, dos quais se destacam os seguintes:

- apresentou queixa-crime contra o Estado pelos factos ora em causa que foi arquivada, por o MP ter considerado não existir crime;

- deduziu, por esse motivo, em separado o pedido cível através da presente acção;

- a autora é mãe e herdeira de B…………… que faleceu de complicações pós operatórias após lhe ter sido amputado o membro inferior esquerdo no Hospital Prisional S. João de Deus em 3-9-2012;

- em 4-9-2012,no seguimento dessa delicada operação, B………. sofreu um choque sético e, não obstante lhe ter sido prescrita a terapêutica descrita no processo médico, veio a falecer, pelas 7 horas do dia subsequente, apesar de não se encontrar na fase final da doença;

- Independentemente de ser ou não portador do vírus HIV, considerando a delicadeza da operação a que foi submetido, o quadro médico devia ter monitorizado o paciente de forma quase permanente, o que não aconteceu;

- Existiu abandono, falta de acompanhamento constante, o que constitui má prática médica, sendo que, a ter existido, o acompanhamento omitido teria evitado a morte ocorrida.

b) O Tribunal Judicial declarou-se incompetente em razão da matéria;

c) O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão do Tribunal Judicial;

d) A autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, que não admitiu a revista;

e) A autora perante a não admissão da revista, pediu a remessa do recurso para o Tribunal de Conflitos, que foi deferida.

2.2. Matéria de Direito

Como decorre do art. 101º,n.º 2 do CPC se a Relação tiver julgado incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal de Conflitos. É certo que, no presente caso, a autora recorreu do acórdão da Relação que julgou o tribunal incompetente para o Supremo Tribunal de Justiça. Contudo nada obsta a que esse recurso seja convolado em recurso para o Tribunal de Conflitos, uma vez que foi interposto dentro do respectivo prazo.

A questão a decidir é a de saber se deve ou não manter-se a decisão do Tribunal da Relação que julgou incompetente em razão da matéria o Tribunal Judicial onde a acção fora instaurada.

O acórdão recorrido entendeu que estando em causa uma acção de responsabilidade civil extracontratual do Estado e emergindo o litígio de uma relação jurídica administrativa eram competentes os tribunais administrativos. Considerou ainda irrelevante para afastar a competência a circunstância do processo ter começado numa queixa-crime contra o Estado: “(…)

O princípio da adesão da acção civil à acção penal, instituído no art. 71º do CPP implica, como deste preceito consta, que, quando fundado na prática de um crime, o pedido de indemnização seja deduzido no processo penal. Deixando de funcionar essa regra execional de adesão, nomeadamente, quando o processo é arquivado – art. 72º, n.º 2, al. b) do mesmo diploma – o pedido de indemnização por responsabilidade extracontratual de quem seja civilmente responsável há-de ser deduzido em acção própria a interpor no tribunal judicial ou no tribunal administrativo (…).

(…)” – cfr. fls. 104 e 105 dos autos.

Vejamos a questão.

Está consolidado neste Tribunal de Conflitos o entendimento de que é da competência dos Tribunais Administrativos o julgamento das acções de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado e demais entes públicos, por força do art. 4º, 1, g) do ETAF (na redacção anterior ao DL n.º 214-G/2015, de 02/10, dado que o processo deu entrada em 13-7-2015), segundo o qual compete à jurisdição administrativa o julgamento das “questões em que nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.

A partir do ETAF de 2002, em matéria de responsabilidade civil extracontratual o índice determinativo da competência passou a ser o da natureza da entidade a quem é dirigida a pretensão. Se essa entidade for uma pessoa colectiva de direito público, então, a competência para o julgamento é da jurisdição administrativa, ainda que esteja em causa uma relação jurídica de direito privado.

Neste sentido pode ver-se, entre muitos outros o acórdão do Tribunal de Conflitos de 21-1-2014, proferido no Conflito 014/13:

“(…)

O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) aprovado pela Lei 13/2002 de 19/2 estabelece que os tribunais da jurisdição administrativa são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (cfr art. 1° nº 1) e que lhes compete a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (cfr art. 4° nº 1 al g)).

Como explicam MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, «Segundo a actual redacção desta alínea g) - posta pela Lei nº 107-D/2003 (de 31.XIl) com o propósito de esclarecer pela positiva as dúvidas que a redacção inicial do preceito suscitava em relação à inclusão no âmbito da jurisdição administrativa das acções de responsabilidade por actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito público -, pertencem à jurisdição administrativa, em primeiro lugar, as «questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual" dessas pessoas (...) sempre que essas pessoas devam responder extracontratualmente por prejuízos causados a outrem, o julgamento da respectiva causa pertencerá à jurisdição administrativa, independentemente da qualificação do acto lesivo como acto de gestão pública ou de gestão privada." (cfr Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol I, Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, anotados, reimpressão da edição de Novembro/2004, pág. 59).

Como se conclui no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 23-1-2008, proferido no processo 017/07: “ (…) A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado. (…) ”.

Esta interpretação foi igualmente perfilhada por este Tribunal dos Conflitos nos acórdãos de 2006.10.26 – conflito 18/06 e de 2007.09.26 – conflito nº 13/07.

(…) ”

No presente caso, não há qualquer dúvida sobre a natureza pública da entidade a quem é imputado o facto ilícito: o Hospital S. João de Deus é uma unidade orgânica integrada na Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (art. 9º, n.º 2 do Dec. lei 215/2012, de 28 de Setembro) e esta Direcção Geral está integrada no Ministério da Justiça (Dec. Lei 215/2012, de 28 de Setembro).

Todavia, a autora/recorrente não impugna a natureza pública da pessoa colectiva a quem imputa o facto ilícito, nem sequer a natureza administrativa da relação jurídica subjacente. Sustenta, sim, que por ter denunciado um crime e por ter deduzido em separado o pedido cível, a competência cabe aos tribunais judiciais.

Como já referimos o acórdão recorrido entendeu que “ (…) Deixando de funcionar essa regra execional de adesão, nomeadamente, quando o processo é arquivado – art. 72º, n.º 2, al. b) do mesmo diploma – o pedido de indemnização por responsabilidade extracontratual de quem seja civilmente responsável há-de ser deduzido em acção própria a interpor no tribunal judicial ou no tribunal administrativo (…).

Note-se que, a questão de saber se o tribunal judicial mantém competência para julgar o pedido cível deduzido em processo penal, quando a relação jurídica subjacente seja administrativa ou o demandado seja uma pessoa colectiva de direito público, é uma questão controversa. Quanto a esta matéria o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 20-01-2010, proferido no Conflito 024/09, decidiu que, mesmo no âmbito do pedido cível enxertado no processo penal, “ (…) se a responsabilidade for de assacar a um ente administrativo, o Tribunal criminal deve afirmar a sua incompetência em razão da matéria”; em sentido diverso decidiu o acórdão do STJ de 3-12-1999.

Mas a questão deste recurso não é essa. Não está em causa saber se pode ser julgado no processo penal um pedido de indemnização dirigido contra pessoas colectivas de direito público. Está em causa, sim, saber quais as regras de competência aplicáveis quando não existe adesão ao processo penal.

Ora, a nosso ver, e como disse a Relação, quando o pedido cível não for deduzido no processo penal, e na falta de qualquer disposição legal em sentido contrário, devem valer as regras gerais. O regime previsto, nos artigos 71º e seguintes só é aplicável se efectivamente for deduzido pedido cível no processo penal. Trata-se de um regime excepcional, explicável por razões de celeridade e economia, uma vez que no mesmo processo está a ser julgado o facto ilícito.

É certo que o art. 72º, 1 do CPP nos diz que o “pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil…”. Todavia, o sentido da expressão tribunal civil deve ser o de tribunal não penal. Como refere a Ex.ma Procuradora - Geral Adjunta (no parecer emitido junto do STJ) “ (…) nos casos em que deixa de funcionar o princípio excepcional de adesão previsto naquele normativo, a competência material dos tribunais para conhecer da responsabilidade civil extracontratual rege-se (volta a reger-se) pelas normas previstas na CRP, no ETAF e na Lei da Organização do Sistema Judiciário”.

As regras gerais, como vimos acima, aplicadas ao presente caso atribuem a competência aos tribunais administrativos, uma vez que existe lei atribuindo expressamente essa competência – o art. 4º, 1, g) do ETAF.

Resta acrescentar que, contrariamente ao que sustenta a recorrente, este regime, atribuindo competência à jurisdição administrativa não é inconstitucional por violação do direito a um processo equitativo, uma vez que a tramitação processual seguida na jurisdição administrativa e a do Código de Processo Civil por força da remissão do art. 47º, 1 do CPTA é idêntica.

3. Decisão

Face ao exposto os juízes do Tribunal de Conflitos acordam em negar provimento ao recurso e atribuir a competência à jurisdição administrativa.

Sem custas.

Lisboa, 1 de Junho de 2017. – António Bento São Pedro (relator) – Joaquim António Chambel Mourisco – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – José Inácio Manso Rainho – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Fernando Nunes Ribeiro.